ARTIGO DA SEMANA – Base de cálculo do ITBI: solução para o problema é o lançamento por homologação

João Luís de Souza Pereira. Advogado. Mestre em Direito. Professor convidado da Pós-graduação da FGV Direito Rio. Professor convidado do IAG/PUC-Rio

De acordo com o artigo 38, do CTN, a base de cálculo do ITBI é o valor venal dos bens ou direitos transmitidos.

A legislação dos municípios detalha o conceito de valor venal. O art. 14, parágrafo único, da Lei Municipal do Rio de Janeiro nº 1.364/88, por exemplo, afirma que Entende-se por valor venal o valor corrente de mercado do bem ou direito.

Não raro, os municípios adotam, para efeito de ITBI, o mesmo valor venal utilizado como base de cálculo do IPTU, daí resultado grave problema.

O Superior Tribunal de Justiça, através do Tema 1.113 dos Recursos Repetitivos, analisando as controvérsias acerca da base de cálculo do imposto, definiu que a) a base de cálculo do ITBI é o valor do imóvel transmitido em condições normais de mercado, não estando vinculada à base de cálculo do IPTU, que nem sequer pode ser utilizada como piso de tributação; b) o valor da transação declarado pelo contribuinte goza da presunção de que é condizente com o valor de mercado, que somente pode ser afastada pelo fisco mediante a regular instauração de processo administrativo próprio (art. 148 do CTN); c) o Município não pode arbitrar previamente a base de cálculo do ITBI com respaldo em valor de referência por ele estabelecido unilateralmente.

Portanto, para o Tribunal da Cidadania a base de cálculo do ITBI é o valor da operação declarado pelas partes, cabendo, obviamente, avaliação contraditória pelo município mediante regular processo administrativo.

Todavia, em razão de tratar-se de imposto submetido ao lançamento por declaração, a orientação decorrente do Tema 1.113 não tem resolvido o problema.

Nos termos do art. 13, da Lei nº 1.364/88, “O Lançamento do imposto será efetuado na repartição fazendária competente”. Embora possa parecer que o ITBI no Rio de Janeiro será lançado de ofício, a verdade é que a emissão da guia de recolhimento depende de prévias informações prestadas pelo contribuinte ou por terceiros, daí não havendo dúvida de que se trata de imposto sujeito ao lançamento por declaração.

À luz do que restou pacificado no Tema 1.113, uma vez recebidas as informações/declarações do interessado, cabe ao fisco ao municipal tomar uma das seguintes providências: (a) emitir a guia do ITBI calculando o imposto pelo exato valor da base de cálculo informada ou (b) dar início a procedimento de ofício, assegurando ampla defesa e contraditório, com vistas a arbitrar a base de cálculo do imposto.

Porém, para os municípios nada mudou. O valor declarado pelo interessado para efeito de cálculo do ITBI continua sendo ignorado pela municipalidades e as guias do imposto continuam a ser emitidas por valor diverso daquele objeto da declaração.

É bem verdade que, não concordando com a base de cálculo adotada pelo município por ocasião da emissão da guia de pagamento do ITBI, o contribuinte pode apresentar impugnação com o objetivo de ser revista da base de cálculo.

Mas o problema é que a impugnação, que suspende a exigibilidade do ITBI (art. 151, III, do CTN) e por isso mesmo viabiliza a expedição de certidão de regularidade fiscal (art. 206, do CTN), não permite que o contribuinte obtenha o registro da escritura pública junto ao Cartório competente. 

Isto porque os oficiais de registro, numa interpretação equivocada do artigo 289[1] da Lei de Registros Públicos (Lei nº 6.015/73), entendem que a “rigorosa fiscalização do pagamento dos impostos devidos por força dos atos que lhes forem apresentados em razão do ofício” não lhes permite realizar o registro mediante a prova de que o lançamento do ITBI está sendo objeto de tempestiva impugnação.

Os oficiais de registro dão a mesma interpretação, restritiva e equivocada, ao art. 30, XI, da Lei nº 8.935/94: 

Art. 30. São deveres dos notários e dos oficiais de registro:

XI – fiscalizar o recolhimento dos impostos incidentes sobre os atos que devem praticar;

Para piorar, o caput do art. 20[2], da Lei nº 1.364/88, contrariando jurisprudência histórica do STF, estabelece como regra o pagamento antecipado do ITBI e o arts. 23, I[3] e 24[4], impõem solidariedade do tabelião, escrivão e demais serventuários pelo pagamento do imposto e imposição de multa de 50%.

Consequentemente, o comprador que tenha a intenção e o justo direito de ver a escritura rapidamente registrada não tem a apresentação de impugnação do ITBI como uma opção.

Prevalecendo a orientação do Tema 1.113 e as equivocadas interpretações dadas pelos oficiais de registro às leis federais, a solução é o ingresso no Judiciário, submetendo o contribuinte ao pagamento de Taxa Judiciária, Custas Judiciais e, eventualmente, honorários periciais.

No entanto, há solução muito mais simples que depende exclusivamente do legislador municipal e do Poder Executivo: basta que a Lei nº 1.364/88 passe a dispor que o imposto será submetido ao lançamento por homologação e, ato contínuo, que a Secretaria Municipal de Fazenda adote as providências necessárias para que a guia de pagamento do ITBI seja preenchida e paga pelo próprio contribuinte/interessado, por sua conta e risco, sempre ressalvada a possibilidade de arbitramento da base de cálculo pelo Município, mas após o pagamento e sempre respeitados a ampla defesa e o contraditório.


[1] Art. 289. No exercício de suas funções, cumpre aos oficiais de registro fazer rigorosa fiscalização do pagamento dos impostos devidos por força dos atos que lhes forem apresentados em razão do ofício. 

[2] Art. 20 – O imposto será pago antes da realização do ato ou da lavratura do instrumento, público ou particular, que configurar a obrigação de pagá-lo, exceto nos seguintes casos:

[3] Art. 23 – O descumprimento das obrigações previstas nesta lei sujeita o infrator às seguintes penalidades:

I – de 50% (cinqüenta por cento) do valor do imposto devido, na prática de qualquer ato relativo à transmissão de bens ou de direitos sobre imóvel, sem o pagamento do imposto nos prazos legais;

[4] Art. 24 – Os tabeliões, escrivães e demais serventuários de ofício respondem solidariamente com o contribuinte pelos tributos devidos sobre os atos praticados por eles e perante eles, em razão de seu ofício, quando seja impossível exigir do contribuinte o cumprimento da obrigação principal.

O sistema tributário melhorou após 34 anos da Constituição de 1988?

Dois assuntos se destacarão na semana que hoje se inicia: o resultado do primeiro turno das eleições, que infelizmente não será analisado neste texto, pois escrito antes do resultado, e a comemoração, no dia 5 de outubro, dos 34 anos de nossa Constituição, que comento sob o prisma tributário.

Na versão original do capítulo tributário de nossa Constituição, a União tinha competência para arrecadar impostos sobre (1) importação, (2) exportação, (3) renda, (4) IPI, (5) IOF, (6) ITR e (7) Imposto sobre Grandes Fortunas (IGF). Também tinha competência para instituir taxas, contribuições de melhoria e empréstimos compulsórios, além de contribuições: sociais, de intervenção e no interesse de categorias profissionais.

Após 34 anos, constata-se que no âmbito da competência para a cobrança dos impostos pouco foi alterado, exceto: (a) a possibilidade de cobrança do ITR, que passou a ser permitia aos municípios (artigo 153, §4º, CF – EC 42/03), e (b) o IGF, que jamais foi implementado, a despeito de incontáveis projetos de lei em trâmite pelo Congresso.

Ainda no âmbito da União, não há nenhum registro relevante sobre contribuições de melhoria durante esse período, bem como sobre taxas, embora essas tenham sido cobradas em situações específicas, sem grande vulto. Houve uma experiência horrível durante o confisco do Plano Collor, que vários autores caracterizaram como empréstimo compulsório.

O problema na esfera federal ocorreu com as contribuições, que se multiplicaram e se transformaram em uma fonte de arrecadação originalmente impensável. Foram estabelecidas Cides (Contribuições de Intervenção no Domínio Econômico), com múltiplas incidências setoriais; e as contribuições sociais foram amplamente disseminadas, destacando-se o vetusto Pis, ao qual foi aliada a Cofins (sucessora do anterior Finsocial). Originalmente tinham alíquotas baixas, que foram paulatinamente aumentadas, até que foram criadas as incidências não-cumulativas, com alíquotas escorchantes e sem nenhuma organicidade, que acabaram por dinamitar o sistema, invadindo o campo de tributação sobre o consumo, reservado aos estados. O foco era arrecadar sem compartilhar com estados e municípios, quebrando a estrutura de federalismo cooperativo inicialmente organizada — projeto tristemente exitoso, a despeito de ínfima parcela de uma das Cides ter passado a ser destinada aos estados e ao DF (artigo 160, III, CF — EC 44/04).

Outra contribuição social federal que foi muito impactada foi a previdenciária referente aos servidores públicos, que originalmente incidiria apenas sobre os servidores que estivessem na ativa e passou a incidir também sobre os proventos dos aposentados e pensionistas (artigo 149, §1º, CF — EC 41/03), o que alcançou todos os entes federados.

No que se refere à competência dos estados, a Constituição originalmente previa para os impostos: (1) ITCMD, (2) ICMS e (3) IPVA, além de (4) um esdrúxulo Adicional do IR federal. Previa também a possibilidade de cobrar taxas e contribuições de melhoria, além de contribuições previdenciárias de seus servidores.

No âmbito dos impostos estaduais, o primeiro a ser limado foi o inadequado Adicional do IR (EC 3/93), que não deixou saudades. Em compensação, o ICMS passou a ser objeto de diferentes movimentos aparentemente contraditórios. Por um lado, surgiu uma guerra fiscal com arrojada renúncia de receitas de ICMS, visando a atração de investimentos, o que gerou incontáveis ADIs, que passaram por diversas fases, desde a singela concessão de liminar seguida de revogação da norma atacada e a consequente perda de objeto da ação, até a manutenção da ADI, mesmo sendo revogada a norma. Ao fim e ao cabo, a guerra fiscal foi amplamente reduzida em razão da LC 160/17. Por outro lado, como contrapartida à renúncia fiscal, foi fortemente aumentado o ICMS sobre bens essenciais, como energia elétrica, combustíveis e comunicações, violando o princípio da essencialidade, nos quais a fiscalização ocorre com muito mais facilidade e a possibilidade de sonegação é baixíssima. Isso foi encerrado pelo STF em 2022, através do RE 714.139 (Tema 745 da Repercussão Geral), concedendo prazo até 2024 para que os estados reorganizassem suas finanças, o que foi literalmente atropelado pela LC 194/22, ao determinar que tal redução ocorresse de imediato, dinamitando as finanças estaduais e, por decorrência do desarranjo federativo-fiscal ocasionado, estiolando as finanças municipais. A consequência, ainda não sentida, é que a fiscalização estadual e municipal sobre as empresas será intensificada a partir do próximo ano.

Deve ainda ser destacado sobre o ICMS que a necessária desoneração das exportações permanece inconclusa, pois houve a vedação à cobrança desse imposto na exportação, mas não foi assegurada “a manutenção e o aproveitamento do montante do imposto cobrado nas operações e prestações anteriores (artigo 155, §2º, X, “a”, CF – EC 42/03), o que deve ser deliberado pelo STF, à míngua de deliberação dos estados.

No que se refere ao IPVA, o ponto de destaque é a decisão do STF (RE 134.509 e RE 255.111, ambos de 2002), desconsiderando a possibilidade de sua incidência sobre aeronaves e embarcações, o que merece ser reanalisado pela corte. 

Outro aspecto da tributação estadual a ser destacado é o uso abusivo das taxas, várias delas declaradas inconstitucionais, porém outras ultrapassando o crivo do STF, como ocorreu nas taxas minerárias

No âmbito dos municípios, a Constituição, em sua versão original, previa que eles poderiam cobrar os seguintes impostos: (1) IPTU, (2) ITBI, (3) IVVC — imposto sobre a venda a varejo de combustíveis líquidos e gasosos, exceto diesel, e (4) ISS), além de taxas e contribuições de melhoria.

O primeiro a ser cortado foi o IVVC (EC 3/93), o que revela o desacerto da tributação sobre os combustíveis na versão original da Constituição, pois o sistema de impostos únicos, previsto na Constituição anterior (1967/1969) deveria ter sido mantido, evitando assim diversos problemas também com o ICMS.

O destaque foi a criação de outra tributação esdrúxula, a CIP — Contribuição para o Custeio de Iluminação Pública (artigo 149-A, CF – EC 39/02), cujo enquadramento teórico permanece sendo objeto de acirradas discussões jurisprudenciais e acadêmicas. Isso trouxe consequências positivas por um lado, pois possibilitou que as cidades se tornassem mais iluminadas; porém com um aspecto negativo, uma vez que gerou empoçamento de recursos, uma vez que o montante arrecadado não pode ser usado em outra finalidade.

Em síntese: após 34 anos de vigência do sistema constitucional tributário, algumas alterações foram efetuadas, mas ele permanece íntegro e funcionando. Existem muitos problemas, sem dúvidas, mas não exatamente no âmbito constitucional, pois este sistema nos permitiu ser a sétima economia mundial em 2011, aspirando chegar à sexta posição; hoje estamos em 13º lugar

Essa constatação aponta para dois aspectos: (1) o grande problema não está no âmbito constitucional, mas no infraconstitucional, seja no legal, seja no infralegal. Estes âmbitos devem ser aperfeiçoados, com respeito à segurança jurídica dos envolvidos (contribuintes e entes federados). E (2) as atuais reformas constitucionais em debate visam criar outro sistema tributário, o que não é ruim em si, embora as propostas em curso sejam péssimas — para seu aproveitamento será necessária uma enorme cirurgia nos textos que tramitam no Congresso (PEC 45 e PEC 110).

Embora não conheça os resultados das eleições no momento em que este texto está sendo escrito, grande parte dos próximos governos já foram eleitos no domingo, 2/10/22. Temos nova composição na Câmara dos Deputados, em um terço do Senado e nas Assembleias Legislativas, e grande número de chefes do Poder Executivo foram eleitos no primeiro turno de votação. Esse grupo de pessoas, incumbentes da administração pública brasileira, terão muito a discutir e a fazer, inclusive no âmbito tributário. Espero que também sejam capazes de ouvir a sociedade na urgente tarefa de (re)organizar o Brasil, que é de todos nós.

Fernando Facury Scaff é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP), advogado e sócio do escritório Silveira, Athias, Soriano de Mello, Bentes, Lobato & Scaff Advogados.

Revista Consultor Jurídico, 3 de outubro de 2022, 8h00

O ITBI no divã? Efeitos do acórdão proferido no RE 1.937.821 (parte 1)

1) Introdução
Três decisões recentes dos tribunais superiores têm provocado uma espécie de “crise de personalidade” no Imposto sobre Transmissões de Bens Imóveis (ITBI), gerando questionamentos capazes de abalar a sua trajetória histórico-constitucional e a sua higidez no ordenamento jurídico brasileiro vigente.

A primeira decisão dos tribunais a ser analisada nesta série de artigos é a mais recente e mais polêmica. Trata-se do acórdão proferido pela 1ª Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ) no Recurso Especial nº 1.937.821 (Tema 1.113), com caráter repetitivo, interposto contra decisão colegiada do Tribunal de Justiça de São Paulo, decidindo um Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas.

Antes de passar ao caso concreto, vale acentuar que a análise de decisões judiciais num sistema (que se pretende) de precedentes exige que se percorra algumas etapas na pesquisa e compreensão da jurisprudência e dos julgados individualmente considerados.

Em primeiro lugar, deve-se aferir a situação processual do caso examinado antes de se enveredar pelo seu mérito. Essa etapa é importante porque esse iter analítico tem sido, cada vez mais, solapado por notícias abreviadas ou resumidas sobre a “jurisprudência dos tribunais” nas mídias tradicionais e sociais, que se equivocam sobre as matérias decididas pelos tribunais, ao ponto de serem quase “fake news” jurídicas.

Em segundo lugar, é preciso examinar e compreender alguns elementos que delimitam o campo de cognição do caso, tais como: o objeto da ação originária, os tipos de instrumentos recursais utilizados e o conteúdo dos respectivos julgamentos. Somente assim se poderá compreender o alcance e os limites das decisões recorridas.

2) Aspectos processuais
O caso em foco tem origem em ação judicial de repetição de indébito de ITBI proposta pela empresa Fortress Negócios Imobiliários contra o Município de São Paulo (MSP). Na petição inicial, a empresa requereu a devolução da diferença entre o valor do imposto calculado pela Secretaria Municipal de Fazenda paulistana e o que seria, segundo ela, devido com base no preço pago pela arrematação do imóvel em hasta pública judicial. Na mesma época, outras duas ações semelhantes de repetição de indébito de ITBI foram movidas pela empresa nos municípios paulistas de Bertioga e Itu.

A sentença julgou procedente a ação contra o município de São Paulo, determinando o recálculo do ITBI e adotando como valor venal do imóvel aquele fixado para fins de incidência de IPTU ou o valor da arrematação, “o que fosse maior” — no caso, o último, diante de uma base de cálculo bastante defasada de IPTU. O MSP apelou (13/12/2017) e a empresa, então, requereu a instauração de IRDR. Fez, contudo, uma delimitação ampla para o IRDR, sem mencionar casos semelhantes com necessidade de uniformização, apenas “casos futuros”, indo muito além dos limites processuais estabelecidos pelo artigo 976 do CPC. Apesar disso, o pedido foi deferido.

Esse foi, então, recebido e processado pela Turma Especial de Direito Público do TJ-SP, que determinou a suspensão do curso processual da Apelação (23/04/2018), sem suspender nenhum recurso relativo ao tema. Até mesmo a apelação entre a Fortress e o município de São Paulo acabou julgada pela 14ª Câmara do TJ-SP (28/6/2018) — que não enfrentou a matéria tratada no IRDR, apenas a incidência ou não de juros no indébito pleiteado.

Contra esse Acórdão, foi interposto REsp pelo MSP (8/5/2019), que foi inadmitido na origem, mas acabou sendo conhecido após agravo de instrumento em REsp. Por falta de “pré-questionamento”, o ARESP nº 1.493.616 foi rejeitado em decisão monocrática. A matéria, então, precluiu em 28/2/2020.

Neste ínterim, o 7º Grupo de Direito Público do TJ-SP julgou o IRDR (em 23/05/2019) e seus julgadores:

“FIXARAM A TESE JURÍDICA DA BASE DE CÁLCULO DO ITBI, DEVENDO SER CALCULADO SOBRE O VALOR DO NEGÓCIO JURÍDICO REALIZADO E, SE ADQUIRIDO EM HASTAS PÚBLICAS, SOBRE O VALOR DA ARREMATAÇÃO OU SOBRE O VALOR VENAL DO IMÓVEL PARA FINS DE IPTU, AQUELE QUE FOR MAIOR, AFASTANDO O VALOR DE REFERÊNCIA”

Ao final, do voto-vencedor, o desembargador Burza Neto assinalou que:

“Por essas razões, a base de cálculo do ITBI deve corresponder ao valor venal do bem imóvel transferido e, caso este valor seja inferior ao da negociação, deve prevalecer este último.

Ocorrendo isto, pelo meu voto, no julgamento do incidente, FIXO A TESE JURÍDICA DA BASE DE CÁLCULO DO ITBI, DEVENDO CORRESPONDER AO VALOR VENAL DO IMÓVEL OU AO VALOR DA TRANSAÇÃO, PREVALECENDO O QUE FOR MAIOR.”

Um novo REsp foi interposto pelo MSP contra o acórdão do IRDR (8/8/2019), mas foi inadmitido na origem (4/9/2019). Todavia, após interposição de agravo pelo ente, foi conhecido e convolado pelo STJ em REsp (em 11/5/2021), sob o nº 1.937.821. Em 5/10/2021, esse recurso foi afetado ao regime dos recursos repetitivos. Em 24/2/2022, a 1ª Seção do STJ deu parcial provimento ao recurso do município de São Paulo, com as seguintes conclusões:

a) a base de cálculo do ITBI é o valor do imóvel transmitido em condições normais de mercado, não estando vinculada à base de cálculo do IPTU, que nem sequer pode ser utilizada como piso de tributação;

b) o valor da transação declarado pelo contribuinte goza da presunção de que é condizente com o valor de mercado, que somente pode ser afastada pelo fisco mediante a regular instauração de processo administrativo próprio (artigo 148 do CTN);

c) o Município não pode arbitrar previamente a base de cálculo do ITBI com base em valor de referência estabelecido unilateralmente.

O MSP opôs Embargos de Declaração em 27/4/2022, alegando que o IRDR não resolveu as demandas repetitivas, pois sequer se referiu aos três casos da mesma empresa; que os demais casos apontados como repetitivos (Bertioga e Itu) foram julgados em sentido contrário ao do IRDR pelo TJSPque não havia interesse processual na continuidade do REsp do MSP, contra o acórdão do IRDR; e que a parte do acórdão que desproveu o REsp promoveu uma reformatio in pejus na medida em que adotou o preço do negócio jurídico como base de cálculo do ITBI em detrimento do valor venal de mercado (próprio dos impostos sobre o patrimônio) sem sequer se referir ao critério adotado pelo IRDR – para que se aplicasse o valor maior. Os embargos foram rejeitados sob a alegação genérica de que não havia omissão, obscuridade ou contradição no acórdão do repetitivo.

Em 23/06/2022, o MSP interpôs Recurso Extraordinário ao STF alegando que o REsp seria descabido por força da disciplina constitucional (artigo 105, III, CRFB), na medida em que teria sido interposto contra IRDR decidido em abstrato, o que não seria possível segundo entendimento do próprio STJ (no RE nº 1.798.374). Além disso, diz ter havido agressão ao devido processo legal constitucional (artigo 5º, LIV, CRFB), na medida da reformatio in pejusque teria ocorrido contra o recorrente quando o acordão afastou o critério do IPTU e trouxe critérios abstratos que sequer estavam em discussão. Vale ressaltar que o Recurso Extraordinário ainda não foi julgado, não havendo, assim, trânsito em julgado da decisão do STJ.

2) Efeitos das decisões proferidas no caso
a) Limites Processuais do Acórdão do REsp 1.937.821.
Para além da falta do trânsito em julgado, cumpre observar que, por ser oriundo de um RE interposto contra Acórdão de IRDR de Tribunal Estadual, só pode ser considerada válida e eficaz se estiver vinculada a um caso concreto (“causa decidida”). Do contrário, não seria sequer cabível o seu processamento como apelo especialíssimo, como já assentou o próprio STJ em recente decisão da sua Corte Especial, ao julgar procedente o incidente de inconstitucionalidade suscitado no Recurso Especial 1.798.374 (18/5/2022).

Ainda, é necessário circunscrever a vinculatividade do Acórdão proferido no REsp nº 1.937.821 ao objeto do caso concreto julgado pelo TJ-SP. A repetição de indébito proposta pela Fortress se limita à discussão da base de cálculo do ITBI em arrematações de imóveis ofertados em hastas públicas judiciais. Nesse sentido, a doutrina abalizada de Antônio do Passo Cabral [1], nos comentários do artigo 987, e a de Cássio Scarpinella Bueno [2]assim também entendem na medida em que trazem que apenas um caso concreto a ser julgado (e não um incidente formado a partir de um punhado) seria capaz de legitimar o cabimento daqueles recursos na perspectiva constitucional (artigos 102, III e 105, III, CRFB). 

Com efeito, ainda que o IRDR e o voto do ministro Gurgel de Faria tenham se arvorado em digressões abstratas sobre a base de cálculo e modalidades de lançamento cabíveis na gestão fiscal do ITBI pelos municípios brasileiros, não se pode extrair destes Acórdãos um caráter de norma geral, transcendente dos limites do caso concreto e da res in iudicio deducta. Do contrário, seria uma ultrapassagem dos limites do artigo 976, CPC, e, sobretudo, da competência recursal do STJ, delimitada pelo artigo 105, III, CRFB, conforme confirmado pela Corte Especial do STJ e pelo STF (RE 581. 947). Isso poderia sustentar a inconstitucionalidade suscitada pelo MSP.

Nesse sentido, frisa-se: O entendimento fixado pelo STJ no REsp 1.937.821 só pode ser interpretado como aplicável aos casos de aferição da base de cálculo do ITBI relativos a arrematações de imóveis em hastas públicas e não a todas as hipóteses de alienação sujeitas ao ITBI. Somente essa matéria vinha sendo decidida pelo STJ nesse sentido. Não havia jurisprudência sua que sustentasse editar um tema de Repetitivo para a discussão de base de cálculo de ITBI em outras hipóteses de alienação de imóveis, sobretudo em negócios jurídicos particulares!

O preço pago na arrematação em hasta pública (salvo se “preço vil”) já era o valor adotado nas legislações de vários municípios brasileiros [3]. Optavam pela praticidade fiscal na definição do elemento quantitativo do fato gerador abstrato do imposto. Pela publicidade e formalidade dos atos, essa modalidade de alienação imobiliária (em sede judicial) dá segurança jurídica suficiente para que as autoridades fiscais tenham, nesse valor, um indicador objetivo, confiável, do valor venal do imóvel para fins de incidência do ITBI, já que insujeito à livre disposição das partes negociantes. 

b) A decisão de mérito e seus fundamentos (RE 1.937.821): matérias não integrantes da “causa decidida”só podem ser entendidas como obiter dicta
O imperativo processual da “causa decidida” limita o pedido do REsp e o campo de cognição do STJ no caso. Por força do princípio da non reformatio in pejus, a conclusão do julgado só poderia determinar a adoção dos valores fixados pela Prefeitura ou a manutenção do critério alternativo: o valor venal declarado (assumido como indício do valor de mercado efetivo e atual) ou a base de cálculo do IPTU — o que fosse o maior. Neste sentido, a 1ª Seção do STJ jamais poderia derivar os debates para outras hipóteses que não foram objeto do caso concreto e muito menos julgar o caso em desfavor do único recorrente.

A abordagem geral sobre base de cálculo e modalidades de lançamento só pode ser entendida como obiter dicta. Isto é, como manifestaçõescircunstanciais sobre outras hipóteses de incidência do ITBI, diversas das alienações de imóveis decorrentes de arrematações em hastas públicas, em relação às quais o Acórdão não possui teor vinculativo algum. Isso afrontaria os limites constitucionais que balizam a sua competência recursal, a divisão de Poderes e o federalismo fiscal.

c) Limites processuais do acórdão: aplicação restrita ao Poder Judiciário, conveniência ou não, de sua adoção pelas administrações públicas municipais
Por fim, é relevante a discussão sobre a vinculatividade da decisão às administrações públicas municipais. Os municípios que possuírem leis prevendo a incidência do ITBI sobre o valor venal do imóvel (calculado pela prefeitura) estão obrigados a acatar a decisão do STJ? Pode-se adiantar que não.

A decisão do REsp Repetitivo não tem alcance e grau de vinculatividade do Poder Executivo ou das administrações públicas no Brasil. Entretanto, há diversos preceitos processuais insertos no Código de Processo Civil brasileiro determinando a vinculação automática de todos os graus do Poder Judiciário à matéria decidida em recursos repetitivos, inclusive devendo ser deferida tutela da evidência (artigo 311, inciso III do CPC).

No entanto, as municipalidades não estão obrigadas a alterarem a sua legislação. Deve-se ponderar, contudo, em em juízo de conveniência e oportunidade, quanto ao seguimento ou não da decisão do STJ, inclusive em vista de eventual busca pela superação total (overruling) ou parcial (overriding) do precedente por decisão futura do próprio STJ e, especialmente, do STF.

3) Conclusão
A análise do acórdão permite concluir:

1) O Acórdão proferido no REsp nº 1.937.821 não transitou em julgado, sendo objeto de Recurso Extraordinário interposto pelo município de São Paulo, cujo pedido de anulação se baseia, principalmente, em dois fundamentos:

a. O RESP em foco violou a hipótese de cabimento prevista no inciso III, do artigo 105 da Constituição, não podendo versar sobre tema genérico, abstraindo-se da causa decidida, nos termos do que foi recém assentado pela Corte Especial do STJ no julgamento do incidente de inconstitucionalidade nº 1.798.374;

b. O referido RESP não poderia realizar um julgamento extra petita e muito menos promover uma reformatio in pejus, uma vez que o único recorrente era o próprio município de São Paulo, e o julgamento do IRDR ateve-se a critério totalmente distinto e limitado às arrematações;

2) Ainda que houvesse transitado em julgado, o Acórdão proferido em Recurso Especial repetitivo não tem efeitos vinculantes para as administrações públicas tributárias, nem mesmo para a do município de São Paulo – havendo, todavia, o risco de maior velocidade de futuras decisões em litígios judiciais, acolhendo automaticamente os critérios adotados neste acórdão — caso transitado em julgado – ainda que os seus efeitos sejam compreendidos de forma bem mais restrita da que está sendo difundida nas mídias especializadas, restringindo-o aos casos de arrematações em hastas públicas.

3) Diante das limitações processuais impostas pelo critério da “causa decidida”, nos termos do inciso III do artigo 105 da Constituição de 1988, o Acórdão do RESP 1.937.821 só pode ser entendido como válido e eficaz para as discussões acerca da base de cálculo do ITBI para arrematações em hastas públicas, inclusive porque o entendimento pretérito do STJ e de diversas legislações municipais já apontavam o montante do lance vencedor do praceamento do imóvel como valor seguro para fins de fixação da base de cálculo, considerando-o um procedimento formal realizado em sede judicial, capaz de fornecer um valor objetivo e seguro, não disponível à livre negociação e às subjetividades das partes, ainda possa ser criticado por ser uma espécie de “venda forçada”.

Continua parte 2

[1] Cf. In: CABRAL, Antônio do Passo; CRAMER, Ronaldo (coord.). Rio de Janeiro: Forense, 2015, p. 1.452-1.453.

[2] Cf. Manual de Direito Processual Civil. 8 ed., 2002, São Paulo: SaraivaJur.

[3] Cite-se, como exemplo, as seguintes legislações municipais: Porto Alegre (Lei Complementar Municipal n. 197/89); Florianópolis (Lei Complementar nº 007/1997, com a redação dada pela LC 683/2019); Belo Horizonte (Decreto n. 17.026/2018 (regulamenta a Lei nº 5.492/88); Curitiba (Lei Complementar nº 108/2017); Porto Velho (Lei Complementar nº 878/2021).

Ricardo Almeida Ribeiro da Silva é professor da pós-graduação em Direito Tributário da Uerj/Ceped e do PJT/ABDF (Associação Brasileira de Direito Financeiro), mestre em Direito Público pela Uerj, procurador do município do Rio de Janeiro, assessor jurídico da Abrasf e advogado.

Revista Consultor Jurídico, 12 de setembro de 2022, 6h14

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