Dois caminhos, um destino: natureza não remuneratória do bônus de contratação

Assim como Alice [1], aquelas e aqueles que desempenham a função judicante, marcada pela imparcialidade, diuturnamente questionam “qual o caminho seguir?”. Entretanto, diferentemente da personagem da obra de Lewis Carroll, sabem bem as conselheiras e os conselheiros do Carf onde querem chegar: “contribuir para a segurança jurídica na área tributária, para aperfeiçoamento da legislação tributária e para reduzir os litígios judiciais e administrativos” [2].

Já há alguns anos, a discussão acerca da natureza do bônus de contratação (hiring bonusou signing bonus) — também conhecido como “luvas” no mundo desportivo — ganha destaque na jurisprudência e recebe a inquietude dos doutrinadores que decidem se enveredar sobre o tema. Isso porque a definição do cariz da verba é essencial para determinar se, sobre ela, há de incidir (ou não) a contribuição previdenciária.

O bônus de contratação, como a própria nomenclatura sinaliza, é montante pago no momento em que o empregado ou o atleta, ambos de alta performance e notório diferencial, via de regra, rompe com a relação justrabalhista anterior para o estabelecimento de uma nova. Sob um aspecto teleológico, o pagamento do bônus de contratação se dá de forma a estimular o abandono do vínculo laboral anterior para que o profissional seja encorajado a se aventurar noutro local de trabalho. Consabido que, quando é o obreiro que dá ensejo à ruptura do vínculo, perde o direito de efetuar o saque dos valores depositados no Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) relativos ao contrato de trabalho, bem como deixa de fazer jus à indenização de 40% (quarenta por cento) sobre o montante depositado no retromencionado fundo. Além das evidentes perdas financeiras, se comparada à demissão sem justa causa, há aspecto psicológico a ser considerado. Mudanças, ainda que objetivamente pareçam ser para melhor, causam angústias por romper com o status quo, implicando em perda de estabilidade outrora adquirida.

Nos termos da al. “a” do inciso I do artigo 195 da CRFB/88, as contribuições sociais do empregador, da empresa e da entidade a ela equiparada na forma da lei, recairão sobre “a folha de salários e demais rendimentos do trabalho pagos ou creditados, a qualquer título, à pessoa física que lhe preste serviço, mesmo sem vínculo empregatício”. O ponto nodal repousa, portanto, em determinar se a verba paga a título de bônus de contratação ostentaria (ou não) feição retributiva da prestação de serviços. Se estiver o trabalhador recebendo o bônus de contratação em decorrência do labor que foi – ou que será – desenvolvido, deve sobre ele incidir a contribuição previdenciária. Por outro lado, caso ausente demonstração de que o bônus de contratação fora pago em decorrência da prestação de serviço, escapa o montante à tributação.

As mudanças recentemente ocorridas na composição da Câmara Superior do Carf já sinalizam implicações em posicionamentos antes tidos como dominantes, dentre os quais incluía-se a submissão do bônus de contratação à tributação. Em sessão realizada em 24 de agosto p.p., a Câmara Alta, ao percorrer duas trilhas díspares, desembocou num só lugar: no de que o montante pago a título de bônus de contratação não exibe, em regra, natureza remuneratória e, por isso, não se sujeita ao recolhimento de contribuições previdenciárias.

Ao apreciar recurso especial, interposto pela Fazenda Nacional, nos autos do Processo Administrativo Fiscal de nº 16327.001665/2010-78, o colegiado entendeu, por unanimidade de votos, que, no caso concreto, descaberia a incidência de contribuições sobre a aludida rubrica [3].

O entendimento externado pelo conselheiro relator foi o de que, nos autos, inexistiria comprovação de que a verba paga estaria atrelada à contraprestação pelo trabalho. No caso, o bônus, acertado na fase pré-contratual, teria sido percebido uma única vez, não restando condicionada à prestação laboral. Ao sentir do conselheiro relator falhou a fiscalização em trazer detalhamento minudente sobre a avença firmada para pagamento do bônus de contratação, mormente no que tange à existência de multa, na hipótese de rescisão. Caso houvesse a previsão de multa, com a consequente necessidade de devolução do montante recebido, sinalizou o conselheiro relator que entenderia pelo oferecimento da verba à tributação, porquanto vislumbraria a vinculação entre a percepção da verba e a prestação de serviços.

A argumentação apresentada pelo conselheiro relator afasta-se do entendimento que, pelo voto de qualidade, sagrava-se vencedor na Câmara Superior. Isso porque, outrora sustentado que “[p]ela análise da legislação previdenciária, qualquer rendimento pago em retribuição ao trabalho, qualquer que seja a forma de pagamento, enquadra-se como base de cálculo das contribuições previdenciárias. (…) Não há dúvida de que o pagamento de bônus de contratação (hiring bonus), ou mesmo, gratificação em razão da admissão do empregado (utilizados por algumas empresas) tem relação direta com o vínculo contratual estabelecido entre as partes, e o seu principal objetivo é atrair profissionais para o quadro funcional da empresa, representando, a bem da verdade, um pagamento antecipado pela futura prestação de serviço do trabalhador. Assim sendo, observa-se que o referido bônus, nada mais é que um artifício para atrair trabalhadores valorizados em seu segmento profissional, funcionando como um diferencial em relação aos concorrentes. Por esse motivo, mesmo que a recorrente tente rotulá-la como mera liberalidade, a rubrica em questão ostenta, no seu âmago, uma ponta de contraprestação, posto que tem por desiderato oferecer um atrativo econômico ao obreiro para com este firmar o vínculo laboral” [4].

A despeito de o voto apresentado pelo conselheiro relator já significar uma guinada no que antes prevalecia, quatro membros do colegiado o acompanharam apenas pelas conclusões [5]. Isso significa que, embora anuíssem com o afastamento da autuação, o fizeram por fundamentos jurídicos diferentes e menos restritivos dos declinados no voto do conselheiro relator.

Se, para o relator, a verba paga a título de bônus de contratação não poderia sofrer a incidência da contribuição previdenciária, ante a carência de comprovação da retributividade no caso concreto; para outros quatro conselheiros o montante escaparia à tributação por ostentar natureza mercantil. É dizer: o bônus de contratação não representa um benefício pago ao futuro empregado pelo trabalho prestado ao empregador, sendo um contrato de natureza mercantil, por meio do qual o empregado recebe montante para que seja estimulado desligar-se voluntariamente, perdendo as parcelas que faria jus caso demitido sem justa causa.

Nos termos do inciso I do artigo 28 da Lei nº 8.212/91, para o empregado e para o trabalhador avulso, será o salário-contribuição “a remuneração auferida em uma ou mais empresas, assim entendida a totalidade dos rendimentos pagos, devidos ou creditados a qualquer título, durante o mês,destinados a retribuir o trabalho, qualquer que seja a sua forma, inclusive as gorjetas, os ganhos habituais sob a forma de utilidades e os adiantamentos decorrentes de reajuste salarial, quer pelos serviços efetivamente prestados, quer pelo tempo à disposição do empregador ou tomador de serviços nos termos da lei ou do contrato ou, ainda, de convenção ou acordo coletivo de trabalho ou sentença normativa”. Em síntese, para afastar a natureza remuneratória do bônus de contratação, asseveram os defensores da corrente que “i) não apresenta caráter de contraprestação pelo contrato de trabalho; ii) também não decorre do tempo à disposição do empregador; iii) não é recebido em razão de interrupção do pacto laboral; iv) por fim, não é pago em razão de ajuste constante do contrato individual ou coletivo de trabalho”[6].

Calha mencionar, por derradeiro, que, nos debates ocorridos no julgamento do Processo Administrativo Fiscal de nº 16327.001665/2010-78, exaltada a prevalência da natureza mercantil, ainda que houvesse previsão de devolução de parte ou de todo o valor do bônus, na hipótese de descumprimento de eventual prazo de permanência mínimo do trabalhador na empresa. Embora inexistisse no caso concreto qualquer sinalização nesse sentido, membros da Câmara Superior frisaram que, mesmo na hipótese de aplicação de multa por rescisão antecipada ao previso, não transmudaria o contrato civil em laborativo, mantendo-se o afastamento da incidência das contribuições previdenciárias. Tal entendimento igualmente distancia-se do apresentado pelo relator.

Seja por um caminho, seja por outro, marcha o Carf rumo à superação do entendimento outrora firmado em sua Câmara Superior. Por ser um ponto de inflexão nos julgados acerca da tributação do bônus de contratação, certamente as lições ali contidas reverberarão não só na jurisprudência do Carf, como também na dos tribunais de norte a sul do país.

Este texto não reflete a posição institucional do CARF, mas, sim, uma análise dos seus precedentes publicados no site do órgão, em estudo descritivo, de caráter informativo, promovido pelos seus colunistas.


[1] Menção ao célebre diálogo entre Alice e o Gato Cheshire na obra de Lewis Carroll. 

[2] Para conhecer a missão, os objetivos e a visão de futuro do Carf, confira: http://idg.carf.fazenda.gov.br/perguntas-frequentes. Acesso em: 1 de set. 2022. 

[3] CARF. Processo nº 16327.001665/2010-78, cons. rel. MARCELO MILTON DA SILVA RISSO, sessão de 24 de ago. de 2022 (unanimidade). Registre-se que, pelas conclusões, votaram os conselheiros ANA CECILIA LUSTOSA DA CRUZ, JOÃO VICTOR RIBEIRO ALDINUCCI, RITA ELIZA REIS DA COSTA BACCHIERI E CARLOS HENRIQUE DE OLIVEIRA.

[4] CARF. Acórdão nº 9202-005.156, cons.ª rel.ª ANA PAULA FERNADES, redatora designada cons.ª ELAINE CRISTINA MONTEIRO E SILVA VIEIRA, sessão de 25 de jan. de 2017 (voto de qualidade). Em igual sentido: CARF. Acórdão nº 9202-008.600, Cons. Rel. PEDRO PAULO PEREIRA BARBOSA, sessão de 17 de fev. de 2020 (voto de qualidade); CARF. Acórdão nº 9202-004.308, cons. rel. LUIS EDUARDO DE OLIVEIRA SANTOS, sessão de 20 de jul. de 2016 (voto de qualidade).

[5] Pelas conclusões votaram os conselheiros ANA CECILIA LUSTOSA DA CRUZ, JOÃO VICTOR RIBEIRO ALDINUCCI, RITA ELIZA REIS DA COSTA BACCHIERI E CARLOS HENRIQUE DE OLIVEIRA.

[6] OLIVEIRA, Carlos Henrique de. Aspectos Trabalhistas e Tributários do Bônus de Contratação e de Retenção. In: NETO, Halley Henares; SOUZA, Alex Matos de; VILELA, Mariana Coutinho (coord.) Temas Atuais de Tributação Previdenciária. São Paulo: Cenofisco, 2017, p. 167-198, p. 183.

Ludmila Mara Monteiro de Oliveira é doutora em Direito Tributário pela UFMG, com período de investigação na McGill University, conselheira titular integrante da 2ª Turma Ordinária da 2ª Câmara da 2ª Seção do Carf e professora de Direito Tributário da pós-graduação da PUC-Minas.

João Victor Ribeiro Aldinucci é conselheiro titular da Segunda Turma da Câmara Superior de Recursos Fiscais do Carf.

Revista Consultor Jurídico, 7 de setembro de 2022, 8h00

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