Aspectos controvertidos da falsidade na compensação tributária

O artigo 89, § 10, da Lei nº 8.212/91 prevê: “Na hipótese de compensação indevida, quando se comprove falsidade da declaração apresentada pelo sujeito passivo, o contribuinte estará sujeito à multa isolada aplicada no percentual previsto no inciso I do caput do art. 44 da Lei no 9.430, de 27 de dezembro de 1996, aplicado em dobro, e terá como base de cálculo o valor total do débito indevidamente compensado”.

Apesar de prever a conduta ilícita (falsidade na declaração) e a sanção correspondente (multa isolada de 150% sobre o valor do débito indevidamente compensado), o referido dispositivo é uma norma em branco, pois não dispõe quais atos praticados pelo contribuinte são considerados como falsidade na declaração. Isso tem repercutido, nos casos concretos, em subjetivismos e arbitrariedades das autoridades fiscais na análise das contribuições previdenciárias.

Em geral, a auditoria previdenciária tende a considerar “falsidade na declaração” todo aquele crédito utilizado pelo contribuinte que não decorra de previsão legal expressa e cristalina, sendo falsas as informações prestadas em razão de ter se valido de crédito “sabiamente inexistente”. Contudo, há diversas possibilidades de o contribuinte utilizar créditos não tão evidentes sem que, com isso, cometa qualquer ilicitude.

Alguns exemplos são esclarecedores.

O artigo 19, VI, a c/c art.igo 19-A, III, da Lei nº 10.522/01 prevê que as matérias definidas pelo Supremo Tribunal Federal sob a sistemática da repercussão geral e pelo Superior Tribunal de Justiça em sede de recurso repetitivo devem ser observadas pela Secretaria da Receita Federal do Brasil, que ficará impedida de exigir, a qualquer título, créditos tributários contrários à decisão, cabendo à Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional manifestar-se quanto às matérias abrangidas pelo precedente. Sem o pronunciamento da PGFN, a Receita Federal continua a entender exigível a obrigação tributária correspondente e, via de consequência, a não compensar as compensações realizadas.

Isso significa que caso o STJ tenha firmado precedente vinculante favorável aos contribuintes em determinada matéria, mas houve a interposição de recurso extraordinário pela Fazenda Nacional de modo a evitar o trânsito em julgado da sentença, se alguém vier a apurar créditos fundamentados neste pronunciamento, corre o risco de ter a sua compensação considerada fraudulenta, visto que o crédito, além de não ser cristalino — tanto que houve a necessidade de propositura de demanda judicial para reconhecê-lo —, a discussão sobre este direito permanece sub judice, sendo necessário aguardar o posicionamento do STF.

Em outro exemplo, o STJ, no REsp 1.230.957/RS, afetado como recurso repetitivo, firmou precedente de que não incide contribuição previdenciária sobre o valor pago pela empresa a título de aviso prévio indenizado. Apesar de não ter havido qualquer modulação desta decisão, o artigo 6º, parágrafo único, I, da IN RFB nº 925/09, em sentido totalmente contrário, mantém hígida a incidência tributária até a competência 05/2016, sujeitando o contribuinte à imposição da multa de 150% caso tenha apurado crédito, espontaneamente, para além deste limite estabelecido, por violar legislação expressa.

Ainda, há créditos que, embora não previstos expressamente na legislação, decorrem de interpretação das normas aplicáveis, de forma que, se por um lado não são autorizados, de outro também não são vedados. Nada obsta que o contribuinte opte por travar a discussão envolta à tese tributária perante a Administração Pública em detrimento do Poder Judiciário — desde que não se revista de caráter constitucional —, mormente porque o Carf é um órgão judicante com autonomia para decidir, podendo acatá-la.

Assim, como está evidente, o simples fato de a legislação não prever determinado crédito de forma límpida não impede que o contribuinte, sob o seu entender e interpretação da legislação, o apure e compense, sem que essa conduta consubstancie qualquer falsidade.

Em verdade, o próprio artigo 89, § 10, da Lei nº 8.212/91 traz alguns elementos que direcionam a sua interpretação para preenchimento da lacuna apontada.

Primeiro. Como qualquer conduta penal tipificada, a modalidade culposa deve ser expressamente prevista; no silêncio, somente a modalidade dolosa configura crime. No caso da Lei nº 8.212/91 não há qualquer previsão de que a “falsidade da declaração” deve decorrer de ato intencional do contribuinte. O sujeito passivo deve, propositalmente, realizar a compensação mediante informação falsa.

Segundo. O dispositivo exige a comprovação da falsidade; logo, não ela pode ser presumida. O dever da prova cabe ao Fisco.

Esses dois pressupostos acabam por excluir a falsidade de uma série de condutas possíveis do contribuinte. O erro não intencional, por exemplo, é livre de dolo, portanto não configura falsidade. À sua vez, divergência na interpretação da legislação também não configura fraude, pois aqui, igualmente, não se verifica o intuito de escamotear o adimplemento da obrigação tributária por meio de compensação indevida.

Reforça essa ideia a circunstância de que, atualmente, toda a pragmática tributária é organizada de modo a atribuir ao contribuinte toda a responsabilidade pela apuração e recolhimento da grande maioria dos tributos. É o contribuinte quem deve, a partir das suas escriturações fiscais, contábeis e trabalhistas, efetuar classificações ficais, apurar o fato gerador das obrigações tributárias, calcular os tributos devidos, preencher um sem-número de declarações fiscais e entregá-las ao Fisco (artigo 150, caput, do CTN). Mesmo na compensação, o contribuinte deve apurar o crédito, por sua conta e risco, e informá-lo ao Fisco, que somente após, irá validá-lo. O dever de o contribuinte interpretar a legislação tributária configura hoje o cerne de toda a prática tributária brasileira.

Nesse contexto, é válido afirmar que falsidade da declaração é aquela na qual se utiliza crédito falso, ou seja, inexistente, que o contribuinte sabe não possuir e, ainda assim, o compensa deliberadamente. Por exemplo, realiza compensação expressamente vedada pela legislação, ou informa valor decorrente de pagamento indevido ou a maior que sabe não possuir. Não se confunde com divergências na interpretação da lei — que, se muito, podem levar apenas e tão-somente à não homologação da compensação, mas não à multa isolada qualificada —, mormente quando esta é atribuída ao contribuinte.

Estes parâmetros devem ser observados pela Secretaria da Receita Federal do Brasil ao analisar as compensações previdenciárias, cabendo aos contribuintes se atentarem para eventuais autuações de modo a evitar que sofram a imposição arbitrária de multas indevidas.

Fellipe Fortes é tributarista do Balera, Berbel e Mitne Advogados.

Revista Consultor Jurídico, 14 de setembro de 2022, 16h09

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