É inegável o gigantesco prejuízo econômico que as empresas e os profissionais que prestam serviços essencialmente dependentes da presença física de seus clientes sofreram com as medidas de restrição de circulação de pessoas durante a pandemia do coronavírus, sobretudo durante o período de março de 2020 até o final de 2021. Como poderiam restaurantes, salões de festas, por exemplo, manterem o mesmo nível de receita que auferiam anteriormente ao período pandêmico se a recomendação mundial era para que todos permanecessem em suas casas?
Com o intuito de compensar esse rombo financeiro, que invariavelmente reflete em substancial diminuição na arrecadação de tributos, entendeu por bem o Congresso conceder alíquota zero para o Imposto de Renda, PIS/Pasep, Cofins e CSLL a todas as empresas pertencentes ao setor de eventos, bem como aos bares e restaurantes durante o período de cinco anos, contados da publicação da Lei Federal nº 14.148/2021, instituidora do denominado “Programa Perse — Programa Emergencial de Retomada do Setor de Eventos”.
Apesar das razões positivas que estruturaram essa benesse fiscal, a sensível repercussão na perda de arrecadação imediata, levou o Poder Executivo a impor resistência à implantação da medida.
O primeiro obstáculo enfrentado pela medida foi o veto realizado pelo presidente da República, em que pese este reconhecer o motivo legítimo do benefício pretendido. Nas razões do veto presidencial argumentou que haveria óbice jurídico por não haver a estimativa de impacto orçamentário, bem como por supostamente violar a isonomia tributária [1]. Em razão disso, para o desgosto dos contribuintes que seriam beneficiados pela alíquota zero, a Lei Federal nº 14.148/2021 foi publicada em 4/5/2021 sem conceder o benefício originariamente presente no projeto de lei.
Todavia, o apelo do setor empresarial pertencente a tais setores para a criação de maiores benefícios fiscais em contrapartidas às perdas financeiras decorrentes das medidas públicas de lockdown, em razão dos efeitos da Covid-19 — que levou várias atividades empresariais à falência — provocou a movimentação do Congresso para derrubar o mencionado veto presidencial e restabelecer a alíquota zero aos referidos tributos federais.
Dessa forma, as partes vetadas da lei foram finalmente publicadas em 18/3/2022, momento no qual passou a vigorar a alíquota zero para os referidos tributos federais incidentes sobre lucro e faturamento, a serem aplicadas automaticamente a diversas empresas dos setores de eventos, bares e restaurantes, conforme códigos da Classificação Nacional de Atividades Econômicas (Cnae) a ser definidos por Ato do Ministério da Economia (artigo 2º, §2º).
Entretanto, ausentes demais mecanismos constitucionais para impedir o prosseguimento da concessão da alíquota zero a tais contribuintes, haja vista que o veto já havia sido derrubado, o Poder Executivo passou a se valer de estratégia ilegal para perseguir seu intento de obstar a concessão do benefício. É que o Poder Executivo, impondo um novo obstáculo à alíquota zero perseguida pelo Poder Legislativo, dessa vez por intermédio da Portaria nº 7.163/2021, editada pelo Ministério da Economia, resolveu restringir ilegalmente o benefício, por meio desse ato regulamentar.
Embora o §1º, do artigo 2º, da Lei nº 14.148/2021, seja expresso em listar todos aqueles que poderão se valer do benefício, o Poder Executivo optou por restringir alguns contribuintes listados no “Anexo 2” da Portaria do Ministro da Economia nº 7.163/2021, nos termos de seu artigo 1º, §2º.
Isso porque essa Portaria condicionou a concessão do benefício apenas para empresas que estivesses regularmente inscritas no Cadastur (Cadastro de Prestadores de Serviços Turísticos) na data da publicação da Lei Federal nº 14.148/2021, mesmo não sendo esse cadastro uma condição para o exercício da atividade. Assim, o Poder Executivo terminou em excluir, à míngua da Lei, quem não tivesse a mencionada inscrição no Cadastur.
Sob o ponto de vista jurídico, sabe-se que os atos infralegais, ainda que normativos, só podem regular e especificar dentro da moldura legal estabelecido na Lei de referência. Por isso, sabe-se que não é cabível ao Poder Executivo dispor, condicionar, ou impor aquilo que não foi previamente delimitado pelo Poder Legislativo, sob pena daquele fazer as vezes deste, em evidente afronta ao princípio da separação de poderes consagrado no artigo 2º da CRFB/88 [2], bem como ao núcleo essencial do princípio da legalidade administrativa.
Com efeito, se o legislador não exigiu, na Lei Federal nº 14.148/2021, o requisito de prévio cadastro no Cadastur, não poderia o ministro da Economia fazê-lo, sob pena de grave violação ao sentido democrático essencial que rege o Estado de Direito, que é a legalidade.
No caso de bares e restaurantes, esse prévio cadastro sequer é obrigatório pela legislação de regência (artigo 22, da Lei 11.771/2008). Nesse sentido, de forma surpreendente, os bares e restaurantes foram informados de que aquilo que outrora era facultativo, passou a ser obrigatório, sem lhes conceder, contudo, quaisquer oportunidades de enquadramento, visto que a exigência é retroativa — nos termos do decreto, os bares e restaurantes deveriam ter o Cadastur na data da publicação da Lei Federal nº 14.148/21.
Nesse contexto de entraves institucionais criados pelo Poder Executivo para viabilizar a legítima fruição do benefício fiscal de alíquota zero por parte de certas empresas, resta saber como será a posição do Poder Judiciário frente a essa evidente violação aos limites do poder regulamentar.
Nesse cenário, vislumbra-se o ajuizamento crescente ações judiciais visando resguardar tais empresas quanto ao direito de não recolher os referidos impostos federais pelo prazo 60 meses, a contar da publicação dessa Lei, ainda que não preencham o requisito formal e ilegal imposto pela Portaria Ministerial, qual seja, de possui inscrição regular no Cadastur quando da publicação da lei que concedeu o benefício.
Tendo em vista se tratar de matéria recente, ainda não é possível afirmar qual é o posicionamento dominante no Poder Judiciário, sobretudo pela ausência de decisões definitivas dos Tribunais sobre o tema. Todavia, já temos alguns posicionamentos em sede de tutela provisória, como do eminente tributarista e desembargador Leandro Paulsen, que nos autos do agravo de instrumento nº 5022229-45.2022.4.04.0000/RS, analisando pedido liminar de antecipação de tutela recursal, na qualidade de relator, decidiu favoravelmente aos contribuintes [3].
Por outro lado, é possível vislumbrar algumas decisões que se posicionam desfavoravelmente ao contribuinte, também em sede de tutela provisória, como a proferida pela eminente juíza federal da 14ª Vara Federal Cível da Seção Judiciária da Bahia, no âmbito do Mandado de Segurança nº 1035143-90.2022.4.01.3300 [4].
É importante acompanhar o entendimento jurisprudencial sobre o tema, reforçando sempre a evidente ilegalidade da exigência de prévia inscrição no Cadastur, especialmente para empresas do ramo de bares e restaurantes, tal como prevaleceu no entendimento exposto pelo eminente desembargador Leandro Paulsen, no sentido de que faria jus ao enquadramento no Programa Perse todos aqueles que efetivamente fazem parte do setor de turismo, independentemente do requisito de terem, ou não, o Cadastur na data da publicação da Lei Federal nº 14.148/2021.
Resta agora aguardar para ver se o Poder Judiciário seguirá o caminho da proteção da legalidade administrativa, pilar do Estado de Direito, ou se favorecerá entendimentos que buscam apenas homenagear as razões políticas e financeiras do Poder Público.
[1] Conforme contou nas razões de veto: “[…] apesar de meritória a intenção do legislador, a medida encontra óbice jurídico por acarretar renúncia de receita, sem o cancelamento equivalente de outra despesa obrigatória e sem que esteja acompanhada de estimativa do seu impacto orçamentário e financeiro, por violar o inciso II do artigo 150 da Constituição da República, uma vez que institui tratamento desigual entre os contribuintes em afronta à isonomia tributária e, também, por contrariar o artigo 113 do ADCT, o artigo 14 a 16 da Lei Complementar nº 101, de 2000 (LRF) e os artigo 125 e 126 da Lei nº 14.116, de 2020 (LDO/2021)”.Mensagem nº 186, de 3 de maio de 2021. Link disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2021/Msg/VEP/VEP-186.htm. Acesso em 26/08/2022.
[2] “Artigo 2º São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário”.
[3] Na ocasião, fundamentou-se o seguinte: “Logo, a Lei 14.148/2021 delegou ao ato do Ministério da Economia apenas a designação dos códigos da Classificação Nacional de Atividades Econômicas (CNAE), sendo que a exigência de situação regular no Cadastur foi estipulada somente pelo ato infralegal, ao arrepio do princípio da legalidade que rege as normas tributárias. No caso, a exigência de cadastro regular no Ministério do Turismo pegou a agravante de surpresa, pois estipula um requisito temporal retroativo, exigindo condição que era facultativa para a agravante até então e que tal condição estivesse cumprida em 03/05/2021, data da publicação da lei que instituiu o Perse. Tanto é que a agravante já obteve o cadastro no Ministério do Turismo, mas é impedida de ingressar no programa de benefícios, pois não o teria feito antes, sendo que só tomou ciência da obrigatoriedade com a publicação da Portaria, em 21/06/2021. Assim, estando o código Cnae da agravante previsto na Portaria, inquestionável que suas atividades vinculam-se ao setor de turismo. Assim, a impetrante faz jus à adesão ao Perse, de modo que sua exclusão de programa especialmente criado para tal setor, em razão da ausência de um cadastro facultativo até a publicação da Portaria ME, viola o princípio da isonomia tributária. Criado um programa de benefícios fiscais para o setor turístico, os contribuintes vinculados a tal setor devem ser tratados igualitariamente, não se sustentando a recusa da autoridade coatora em realizar a adesão ao respectivo programa”. (TRF-4 – AG: 50222294520224040000 5022229-45.2022.4.04.0000, relator: LEANDRO PAULSEN, Data de Julgamento: 03/06/2022, PRIMEIRA TURMA. Link de acesso: https://consulta.trf4.jus.br/trf4/controlador.php?acao=consulta_processual_resultado_pesquisa&selForma=NU&txtValor=50222294520224040000&chkMostrarBaixados=S&todasfases=&todosvalores=&todaspartes=&txtDataFase=&selOrigem=TRF&sistema=&txtChave=. Acesso em 31/08/2022.)
[4] Segue trecho da decisão: “Infere-se, a princípio, que a intenção da norma era atender ao setor que foi fragilizado pelos efeitos da retração econômica acarretados pela Covid-19, mas atribuindo ao ato infralegal a possibilidade de indicar de forma mais especificada aqueles que efetivamente se enquadrassem nesta situação. Na portaria vergastada pelo impetrante ficou regulamentado: ‘Artigo 1º Definir os códigos da Classificação Nacional de Atividades Econômicas — Cnae que se consideram setor de eventos nos termos do disposto no §1º do artigo 2º da Lei nº 14.148, de 3 de maio de 2021, na forma dos Anexos I e II. §1º As pessoas jurídicas, inclusive as entidades sem fins lucrativos, que já exerciam, na data de publicação da Lei nº 14.148, de 2021, as atividades econômicas relacionadas no Anexo I a esta Portaria se enquadram no Programa Emergencial de Retomada do Setor de Eventos – Perse. §2º As pessoas jurídicas que exercem as atividades econômicas relacionadas no Anexo II a esta Portaria poderão se enquadrar no Perse desde que, na data de publicação da Lei nº 14.148, de 2021, sua inscrição já estivesse em situação regular no Cadastur, nos termos do artigo 21 e do artigo 22 da Lei nº 11.771, de 17 de setembro de 2008′.
Observa-se, portanto, que a exigência de prévia inscrição no Cadastur está em consonância com o objetivo visado pela Lei 14.148/2021, não se extraindo, em juízo sumário, qualquer ilegalidade que possa ser erigida ao seu teor”.
Lucas Teixeira Muro é acadêmico em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e integrante da equipe de Direito Tributário do escritório Tavernard advogados.
Murilo Melo Vale é doutor e mestre em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), pós-graduado em Direito Público e Tributário, professor na área de Direito Público, advogado, sócio do escritório Tavernard Advogados e coordenador da área de Direito Público e Tributário Contencioso.
Revista Consultor Jurídico, 15 de setembro de 2022, 13h14