Inconstitucionalidade do tratamento dado à Tusd/Tust pela LC n° 194/2022

Como já defendi em artigo publicado nesta ConJur[1], acerca de alterações promovidas pela Lei Complementar n° 194, de 2022, e que se configuram como um verdadeiro golpe à federação brasileira, neste artigo passarei a analisar a questão relativa ao tratamento a ser conferido aos valores pagos a título de Tusd, Tust e encargos setoriais, especificamente no que pertine à incidência do ICMS.

Não se pode perder de vista que se trata de questão há muito conflituosa e que mereceu entendimentos absolutamente dissonantes no âmbito do STJ: em um primeiro momento, dentre todos cite-se o REsp 1.649.658, define-se que tais tarifas não integrariam a base de cálculo do ICMS e, mais recentemente, em 2017, muda-se o entendimento, afirmando-se que tais valores devem compor a base de cálculo do imposto estadual (Resp 1.163.020). Na atualidade, em sede de repetitivos (Resp 1.692.023 e 1.699.851 e EResp 1.163.020), encontram-se centenas de processos, com cifras astronômicas em jogo, e fruto de uma questão jamais resolvida definitivamente, por um motivo fundamental: aqui se tem, em verdade, legítima controvérsia constitucional, pelos motivos a seguir dispostos.

Com a Constituição de 1988 são desenhados os contornos constitucionais das materialidades que podem ser afetadas pelos entes políticos o que, para os impostos, é feito por meio dos artigos 153, 155 e 156. Nas lições de Roque Carrazza (2015, p. 36), “as competências tributárias das pessoas políticas foram desenhadas, com retoques à perfeição, por grande messe de normas constitucionais”, o que implica que os contornos dos critérios da Regra-Matriz de Incidência Tributária são de índole constitucional, derivando-se no estabelecimento das regras gerais para cada um dos tributos, por meio de leis complementares nacionais exaradas pelo Congresso Nacional, bem como por cada um dos entes políticos, a partir de leis ordinárias aprovadas em suas casas legislativas respectivas, mas sempre em consonância com o texto maior.

E até antes da LC nº 194/2022, no que pertine ao ICMS, todo o processo de derivação se deu de forma harmônica e respeitosa com a autonomia administrativa e financeira dos estados e do DF. Como restou delimitado no texto constitucional, o ICMS incide sobre “operações relativas à circulação de mercadorias” (artigo 155, in. II, CF), sendo a sua base de cálculo, como afirma Geraldo Ataliba (2008, p. 108), “a perspectiva dimensível do aspecto material da h.i [hipótese de incidência]” e, em assim sendo, mera decorrência desse critério material desenhado na CF/88: no caso do ICMS, a base de cálculo só pode ser o valor dessa operação relativa à circulação de mercadoria, não cabendo ao legislador nacional, a pretexto de estabelecer normas gerais, usurpar a competência plena do legislador estadual e, por conseguinte, vilipendiar a arrecadação potencial, como ocorreu, recentemente, a partir da publicação do artigo 7º da LC nº 192/2022 [2].

E foi o próprio legislador constitucional, na transição para a nova constituição de 1988, que encerrou as discussões relativas à energia elétrica, ao deixar assente no artigo 34, §9º, do ADCT, que “até que lei complementar disponha sobre a matéria, as empresas distribuidoras de energia elétrica, na condição de contribuintes ou de substitutos tributários, serão responsáveis, por ocasião da saída do produto de seus estabelecimentos, ainda que destinado a outra unidade da Federação, pelo pagamento do imposto sobre operações relativas à circulação de mercadorias incidentes sobre energia elétrica, desde a produção ou importação até a última operação, calculado o imposto sobre o preço então praticado na operação final e assegurado seu recolhimento ao Estado ou ao Distrito Federal, conforme o local onde deva ocorrer essa operação”.

A lei complementar que se seguiu, LC nº 87/1996, manteve, como não poderia de deixar de ser, a mesma base de cálculo nestas mesmas operações, isto é, o valor da operação de circulação de energia elétrica, em estrito alinhamento ao desenho constitucional originário. 

Isso fica evidenciado por Carrazza (2016, p. 337) ao afirmar que “a base de cálculo possível do ICMS incidente sobre energia elétrica é o valor da operação da qual decorra a entrega desta mercadoria (a energia elétrica) ao consumidor. Noutro giro, é o preço da energia elétrica efetivamente consumida, vale dizer, o valor da operação da qual decorra a entrega desta mercadoria ao consumidor final. Isto corresponde, na dicção do art. 34, §9º, do ADCT, ao ‘preço então praticado na operação final'”.

A despeito de tudo isso, traduzo que a LC nº 194/2022 nada mais representa do que o resultado dos arroubos autoritários do Congresso Nacional que aprovou, sem prévio diálogo com os Estados e com o DF, e sem qualquer estudo técnico estruturado sobre as consequências do quanto decidira, bem como de seus fundamentos, alterações gravíssimas no ICMS. E o mote central, que parecia ser o conceito de essencialidade, acabou se revelando ainda mais grotesco, com a inserção desse “cavalo de troia”, que é a eliminação da TUSD/TUST da base de cálculo do ICMS Energia.

Mas por que a lei complementar não é o locus adequado para a solução desse problema, consubstanciando mais uma inconstitucionalidade promovida pelo Poder Legislativo? Porque, ao inserir no artigo 3º da LC nº 87/1996, que trata da não incidência do ICMS, o legislador derivado feriu o desenho constitucional da redação originária da CF/88. E uma lei complementar, a pretexto de estabelecer normas gerais, não poderia ultrajar esse desenho. E isso pode ser evidenciado a partir da diferenciação dos conceitos de não incidência, de isenção, e da proibição constitucional de concessão de isenção heterônoma.

A priori, apesar de custoso, entendo necessário aqui, como forma de clarificar a questão, perpassar os fundamentos de cada um dos incisos constantes do artigo 3º da LC nº 87/1996, constatando o óbvio: cada um deles é mera repetição de imunidades trazidas na redação originária da CF/88 ou, quando muito, pertinem a situações que desde sempre reconhece-se como fora da incidência do ICMS. Um a um, os incisos do artigo 3º da LC nº 87/1996, atualmente vigentes, que tratam da não incidência do ICMS: 

a) Inciso I – operações com livros, jornais, periódicos e o papel destinado a sua impressão: decorrência da imunidade cultural, prevista no artigo 150, inciso IV, alínea d, CF/88;

b) Inciso II – operações e prestações que destinem ao exterior mercadorias, inclusive produtos primários e produtos industrializados semi-elaborados, ou serviços: decorrência da imunidade prevista no artigo 155, §2º, inciso X, alínea a, CF/88;

c) Inciso III – operações interestaduais relativas a energia elétrica e petróleo, inclusive lubrificantes e combustíveis líquidos e gasosos dele derivados, quando destinados à industrialização ou à comercialização: decorrência da imunidade prevista no artigo 155, §2º, inciso X, alínea b, CF/88;

d) Inciso IV – operações com ouro, quando definido em lei como ativo financeiro ou instrumento cambial: decorrência da imunidade prevista no artigo 155, §2º, inciso X, alínea c, CF/88;

e) Inciso V – operações relativas a mercadorias que tenham sido ou que se destinem a ser utilizadas na prestação, pelo próprio autor da saída, de serviço de qualquer natureza definido em lei complementar como sujeito ao imposto sobre serviços, de competência dos municípios, ressalvadas as hipóteses previstas na mesma lei complementar: evitar conflitos de competência com os municípios, conforme disposto no artigo 146, inciso I, CF/88; 

f) Inciso VI – operações de qualquer natureza de que decorra a transferência de propriedade de estabelecimento industrial, comercial ou de outra espécie: fora do âmbito de incidência do ICMS pelo fato destes estabelecimentos não poderem ser enquadrados no conceito de mercadoria;

g) Inciso VII – operações decorrentes de alienação fiduciária em garantia, inclusive a operação efetuada pelo credor em decorrência do inadimplemento do devedor: fora do âmbito de incidência do ICMS pelo fato de que a alienação fiduciária não promove efetiva operação de circulação;

h) Inciso VIII – operações de arrendamento mercantil, não compreendida a venda do bem arrendado ao arrendatário: fora do âmbito de incidência do ICMS pelo fato de que a alienação fiduciária não promove efetiva operação de circulação; e

i) Inciso IX – operações de qualquer natureza de que decorra a transferência de bens móveis salvados de sinistro para companhias seguradoras: estes bens salvados não se enquadram no conceito de mercadoria quando são transferidos dos seus legítimos proprietários, que não os vendem às seguradoras.

Neste elenco, fica claro que todas as hipóteses de não incidência previstas até antes da LC nº 194/2022 decorrem direta ou indiretamente do Texto Constitucional, seja por meio de imunidades nele previstas, seja porque estão fora do desenho do critério material estabelecido no artigo 155, inciso II, CF/88.

A seguir, o outro conceito importante para compreender o equívoco do Congresso Nacional relaciona-se ao desconhecimento do que representa a isenção tributária. Trata-se de mera retirada do âmbito de abrangência do imposto, por meio da mutilação de um dos critérios da Regra-Matriz de Incidência Tributária (CARVALHO, 2015), e o mais importante: realizada pelo próprio ente competente para instituí-lo, dado que o legislador constitucional deixou assente a impossibilidade das chamadas isenções heterônimas, tão comuns antes da CF/88: é vedado à União, por meio do Congresso Nacional, instituir isenções de tributos de competência dos estados, do Distrito Federal ou dos municípios (artigo 151, inciso III), isto é, diminuir o campo de abrangência dos impostos destes entes, sob pena de flagrante ofensa ao princípio federativo, o que nos afigura como sendo a alteração engendrada pela LC nº 194/2022, relativamente à Tusd/Tust.

Assim, dado que os valores relativos à Tusd/Tust e encargos setoriais vinculados às operações com energia elétrica compõem o preço final desta mercadoria, a sua retirada do campo de incidência do ICMS só poderia se dar por aprovação unânime dos Estados e do DF no âmbito do Conselho Nacional de Política Fazendária (Confaz), nos termos do artigo 155, §2º, inciso XII, alínea g, CF/88. 

E este colegiado, por meio do Convênio ICMS nº 16/2015, já reconheceu este poder ao criar norma isentiva do ICMS incidente sobre a energia elétrica fornecida pela distribuidora à unidade consumidora, na quantidade correspondente à soma da energia elétrica injetada na rede de distribuição pela mesma unidade consumidora com os créditos de energia ativa originados na própria unidade consumidora no mesmo mês, em meses anteriores ou em outra unidade consumidora do mesmo titular (cláusula primeira), mas expressamente exclui desta isenção o custo de disponibilidade, à energia reativa, à demanda de potência, aos encargos de conexão ou uso do sistema de distribuição, e a quaisquer outros valores cobrados pela distribuidora (inciso II, §1º, Cláusula Primeira).

Um exemplo simples pode ajudar na visualização deste equívoco do Congresso: o caso do frete cobrado em virtude da circulação física das mercadorias. Trata-se de valor individualizado ou individualizável nas notas fiscais, e que normalmente aparece destacado do custo das mercadorias. Nas aquisições destas mercadorias, não é incomum que o preço das mesmas contemple não apenas o do valor relativo ao objeto da mercancia, mas os custos necessários para que esta mercadoria alcance o seu destinatário (frete). 

Assim, desde sempre e em obediência ao desenho constitucional do ICMS que deve incidir sobre operações de circulação de mercadoria e os valores componentes no preço final desta operação, o frete compõe a base de cálculo do ICMS. 

Identicamente, tem-se nas operações com energia elétrica, pois esta de nada serve ao seu adquirente se não for “distribuída” e “transmitida” a ele. No que pertine ao frete, que normalmente é valor baixo em comparação ao preço do item, jamais pairou qualquer dúvida de que deve integrar a base de cálculo do ICMS, o que é cristalino desde a redação original da LC nº 87/1996: a se admitir a inserção promovida no inciso XI do artigo 3º da LC 87/1996, poder-se-ia admitir que semelhante iniciativa pudesse ser aprovada pelo Congresso Nacional, de forma a diminuir o campo de incidência do ICMS, indicando que os valores do frete estariam fora do campo de incidência do ICMS? Jamais!

Por fim, nas experiências internacionais de impostos semelhantes ao ICMS, incidentes sobre energia elétrica, tem-se que todas as taxas, despesas, custos, que sejam computados no preço final, devem ser inseridos na composição da base de cálculo dos respectivos impostos (veja o exemplo do IVA canadense).

Na atualidade o assunto encontra-se em debate no âmbito do Acordo de Cooperação na ADPF nº 984 e na ADI nº 7.191, de relatoria do ministro Gilmar Mendes, bem como na ADI nº 7.195, de relatoria do ministro Luiz Fux, ambos no STF.

O que justifica tamanha sede da Tust/Tusd é algo extremamente simples: apostou-se em uma construção de tese jurídica para esgotar quase metade das arrecadações estaduais relativas à energia elétrica, sem que qualquer base constitucional houvesse para isso, e em afronta ao desenho do imposto que foi feito em 1988. O que está em jogo? R$ 34 bilhões por ano, com a possibilidade de restituição de cinco vezes esse valor, caso a tese se sagre vitoriosa e um tremendo golpe nos estados, por meio da redução radical da materialidade do ICMS, inserta na redação originária na CF/88. Esta, contudo, não tem preço!


Referências:
ATALIBA, Geraldo. Hipótese de incidência tributária. São Paulo: Malheiros, 2008.
CARRAZZA, Roque Antonio. ICMS. São Paulo: Malheiro, 2015.
CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributário: fundamentos jurídicos da incidência. São Paulo: Saraiva, 2015.


[1] Disponível em: https://www.conjur.com.br/2022-jun-29/fernanda-pacobahyba-maior-golpe-federacao-brasileira. Acesso em 25 set. 2022.

[2] “LC 192/2022. Art. 7º A base de cálculo do imposto, para fins de substituição tributária em relação às operações com diesel, será, até 31 de dezembro de 2022, em cada Estado e no Distrito Federal, a média móvel dos preços médios praticados ao consumidor final nos 60 (sessenta) meses anteriores à sua fixação”. Tal redação, no entendimento dos Estados, é inconstitucional, visto que fere o desenho da materialidade impresso na CF/88 e seu correlato critério quantitativo, o que está sendo objeto de apreciação por parte do STF, na ADI nº 7191, de relatoria do min. Gilmar Mendes.

Fernanda Mara Macedo Pacobahyba é doutora em Direito Tributário pela PUC-SP, secretária de Fazenda do Estado do Ceará e professora do Ibet.

Revista Consultor Jurídico, 26 de setembro de 2022, 19h21

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