Para efeito de definição da base de cálculo do ITBI, podem os municípios ignorar o valor constante do título de domínio, com cláusulas resolutivas, expedido pelo Instituto Nacional da Colonização e Reforma Agrária (Incra), obedecidas as regras legais e regulamentares que determinam o Valor da Terra Nua (VTN) federal, no bojo do processo de regularização de terras federais através de legitimação de posses?
A pretexto de atribuir “valor de mercado” para efeito de exigência do ITBI, devido no processo de regularização fundiária promovido pelo órgão federal competente, podem legitimamente os municípios desconsiderar o valor atribuído à terra pública federal (VTN) pelo Incra?
Compete ao Incra a tarefa de promover a regularização jurídica de terras federais, devendo, nos termos do Estatuto da Terra (Lei 6.504/64), promover a discriminação das áreas ocupadas por posseiros, para a progressiva regularização de suas condições de uso e posse da terra, providenciando, nos casos e condições previstos nesta lei, a emissão dos títulos de domínio (artigo 97, I).
Ainda segundo o Estatuto da Terra, a transferência do domínio ao posseiro de terras devolutas federais efetivar-se-á no competente processo administrativo de legitimação de posse (artigo 99); o título de domínio expedido pelo Incra será, dentro do prazo que o Regulamento estabelecer, transcrito no competente Registro Geral de Imóveis (artigo 100) e as taxas devidas pelo legitimante de posse em terras devolutas federais, constarão de tabela a ser periodicamente expedida pelo Incra, atendendo-se à ancianidade da posse, bem como às diversificações das regiões em que se verificar a respectiva discriminação (artigo 101)
Na regularização de terra pública federal através do reconhecimento da legitimação de posse, o Incra adota o Valor da Terra Nua (VTN), conforme critérios estabelecidos pela Lei n° 11.952 de junho de 2009:
Art. 12. Na ocupação de área contínua acima de um módulo fiscal e até o limite previsto no § 1o do art. 6o desta Lei, a alienação e, no caso previsto no § 4o do art. 6o desta Lei, a concessão de direito real de uso dar-se-ão de forma onerosa, dispensada a licitação (Redação dada pela Lei nº 13.465, de 2017).
§ 1o O preço do imóvel considerará o tamanho da área e será estabelecido entre 10% (dez por cento) e 50% (cinquenta por cento) do valor mínimo da pauta de valores da terra nua para fins de titulação e regularização fundiária elaborada pelo Incra, com base nos valores de imóveis avaliados para a reforma agrária, conforme regulamento.
2o Na hipótese de inexistirem parâmetros para a definição do valor da terra nua na forma de que trata o 1o deste artigo, a administração pública utilizará como referência avaliações de preços produzidas preferencialmente por entidades públicas, justificadamente.
Vale dizer, a regularização de terras públicas federais obedece a critérios legalmente definidos e o título de domínio conferido pelo órgão federal é o resultado da aplicação destes critérios à realidade fática. O valor do título de domínio expedido pelo Incra em favor do posseiro não constitui ato discricionário, mas ato vinculado às normas legais e regulamentares que estabelecem o preço da terra pública (artigo 12, Lei 12.952/09, supra citada).
Registre-se, desde logo, que o título de domínio é expedido sob um conjunto de condições resolutórias (artigo 15, Lei 11.952/2009), entre os quais o pagamento do valor definido pelo Incra no próprio título. A disciplina legal do tema, notadamente as condições resolutórias impostas pela lei, deixam claro que não se trata venda de terra pública (o que exigiria, entre outras condições, autorização legal expressa e licitação pública), mas de processo de legitimação de posses pelo seu proprietário (União Federal).
No entanto, a plena regularização do domínio junto ao Registro de Imóveis depende do recolhimento do ITBI, de competência dos municípios, nos termos do artigo 156, II da Constituição Federal.
Ocorre que vários municípios, a pretexto de arbitrar o valor de mercado do bem imóvel transferido para efeito de cobrança de ITBI, vêm desconsiderando o valor do negócio jurídico fixado pelo órgão federal (Incra) no título de domínio, equiparando o processo de regularização fundiária federal a uma simples transferência imobiliária entre dois agentes privados. Este procedimento afigura-se claramente inconstitucional e ilegal, por diferentes razões.
Primeira razão: ao desconsiderar o Valor da Terra Nua (VTN) fixado pelo Incra no título de domínio, para efeito de exigência de ITBI, os municípios invadem a competência federal exclusiva para legislar privativamente sobre direito agrário (artigo 22, I), bem como promover a regularização de terras federais. Por determinação constitucional, a destinação de terras públicas deve ser compatível com o plano nacional de reforma agrária (artigo 188).
Além da execução da reforma agrária e da colonização, é missão do órgão fundiário federal (Incra) promover o ordenamento e a regularização de terras devolutas federais (Portaria Incra nº 531, de 23 de março de 2020).
Ao desconsiderar o valor do título de domínio definido pelo Incra, com base em critérios legais e regulamentares (Lei 12.952/09), arbitrando a base de cálculo do ITBI em valores muito superiores, os municípios, a claras luzes, invadem a competência federal para promover a regularização jurídica das suas terras e frustram o objetivo maior pretendido pela Constituição que é a promoção de segurança jurídica no campo.
A segurança jurídica almejada pela regularização fundiária pressupõe a regular averbação do título de domínio expedido pelo Incra no Ofício do Registro de Imóveis, o que somente é possível após o recolhimento do ITBI devido na operação de transmissão imobiliária. Ao majorar absurdamente a base de cálculo tributária do ITBI — em valores até dez vezes superiores ao valor do negócio translativo — os Fiscos municipais acabam por comprometer o processo de regularização fundiária promovido pelo Governo Federal, em evidente inconstitucionalidade.
Assim, manifesta a inconstitucionalidade das leis municipais que exigem o ITBI com base de cálculo superior ao VTN constante do título de domínio expedido pelo Incra, no bojo do processo de regularização de terras federais, o qual é resultado de aplicação de regras legais e regulamentares federais.
Segunda razão: a transmissão imobiliária, objeto da incidência do ITBI, pressupõe um negócio jurídico praticado entre alienante e adquirente, onde o preço (elemento essencial) é resultado da liberdade de negociação e da vontade das partes.
Por outro lado, no caso da regularização fundiária promovida pela Incra não ocorre um negócio jurídico stricto sensu (como aquele realizado entre dois sujeitos privados), mas um negócio jurídico sui generis, na medida em que o elemento essencial do ato translativo (preço) não decorre de uma negociação entre o poder público (emissor do título de legitimação de posse) e o posseiro (adquirente); aqui, não há o elemento “vontade das partes”, mas mero ato de aplicação das regras legais e regulamentares. O preço do negócio jurídico (valor do título de domínio) não é resultado de um acordo de vontades entre o governo federal e o adquirente (posseiro), mas mero ato de aplicação concreta e obediência aos ditames legais e regulamentares que fixam o VTN federal.
A transferência imobiliária, objeto de incidência do ITBI, resultante do processo de regularização fundiária federal não pode ser juridicamente equiparada aos negócios translativos imobiliários praticados entre dois sujeitos privados, onde o preço (base de cálculo do ITBI) é o resultado de um pacto negocial e podem ser ajustados ao alvedrio da vontade.
Assim, evidente a ilegalidade da cobrança de ITBI com base de cálculo arbitrada pelos municípios em valores superiores ao fixado pelo Incra no título de domínio expedido em consonância com as regras federais de regularização fundiária uma vez que o preço do negócio jurídico de alienação da terra pública não resulta de um ato de vontade das partes, mas de mera aplicação das regras legais e regulamentares que estabelecem o Valor da Terra Nua.
Terceira razão: o Superior Tribunal de Justiça (STJ), quando do Julgamento do Recurso Especial Repetitivo nº 1.937.821/SP, analisado em março de 2022, definiu que os Fiscos municipais não podem fixar previamente a base de cálculo do ITBI com base em valores de referência por eles criados.
Segundo as teses fixadas pelo STJ no Tema 1.113:
- “A base de cálculo do ITBI é o valor do imóvel transmitido em condições normais de mercado, não estando vinculada à base de cálculo do IPTU, que nem sequer pode ser utilizada como piso de tributação;
- O valor da transação declarado pelo contribuinte goza da presunção de que é condizente com o valor de mercado, e essa presunção somente pode ser afastada pelo fisco mediante a instauração de processo administrativo próprio (art. 148 do CTN) e
- O município não pode arbitrar previamente a base de cálculo do ITBI com respaldo em valor de referência por ele estabelecido unilateralmente”.
Na dicção do Superior Tribunal de Justiça, os municípios devem obedecer ao valor do negócio jurídico atribuído pelas partes para fins de tributação pelo ITBI, o qual presume-se refletir o valor de mercado do bem imóvel. Presume-se a validade do valor declarado pelas partes no negócio jurídico translativo. Trata-se de presunção juris tantum que pode ser afastada pelo Fisco municipal através da instauração de processo administrativo próprio.
Diferentemente, no caso de regularização fundiária, o valor da base de cálculo tributável (valor do título de domínio expedido pelo Incra) não resulta de uma presunção juris tantum, possível de ser afastada pelo Fisco municipal dentro do devido processo legal, mas, ao contrário, trata-se de verdadeira presunção jure et de jure já que o preço do negócio jurídico reflete a aplicação das regras legais e regulamentares que fixam o VTN federal.
Em outro dizer, o valor do negócio jurídico de regularização fundiária constitui um ato de aplicação pelo Incra de normas legais e regulamentares que fixam o valor da terra pública federal, autêntica presunção jure et de jureinsuscetível de ser ignorada pelo Fisco municipal.
O arbitramento da base de cálculo do ITBI pelo Fisco municipal em montante distinto daquele constante do negócio jurídico de regularização fundiária dependeria da obtenção de prévia decisão judicial pelo ente municipal haja vista a natureza jurídica de presunção jure et de jure do valor constante do título de domínio emitido pelo órgão federal (dotado de competência legal para a regularização de terras federais) o qual representa a aplicação administrativa de critérios legais e regulamentares que estabelecem o valor da terra pública federal.
Portanto, respondendo diretamente à questão formulada no primeiro parágrafo deste artigo, não pode o municípío exigir ITBI adotando base de cálculo superior àquela constante do título de domínio expedido pelo Incra no bojo do processo de regularização de terra pública federal, pois:
- Constitucionalmente, compete à União Federal legislar sobre direito agrário (artigo 22, I) bem como a tarefa de promover regularização fundiária em consonância com o plano nacional de reforma agrária (artigo 188). Ao desconsiderar o VTN federal definido pelo Incra e majorar a base de cálculo do ITBI (na busca de um suposto “valor de mercado”), o ente municipal invade a competência da União Federal e frustra os objetivos da política nacional de regularização fundiária e reforma agrária que buscam conferir segurança jurídica no campo;
- O valor constante do título de domínio com cláusulas resolutivas expedido pelo Incra não é fruto de um pacto privado, tal como corre em uma transferência imobiliária realizada entre dois sujeitos privados; a regularização fundiária tem a natureza de um negócio jurídico sui generis na medida em que o preço da terra pública é resultado da aplicação de regras legais e regulamentares, e não produto de um ato discricionário do agente público ou da negociação com o adquirente privado. Equiparar a regularização fundiária promovida pelo Incra a uma transmissão imobiliária realizada entre dois agentes privados para efeito de ITBI representa manifesta ilegalidade;
- O VTN constante do título de domínio expedido pelo Incra consubstancia uma presunção jure et de jure que somente pode ser desconsiderada pelo Fisco municipal por meio de decisão judicial, já que representa a simples aplicação de regras legais e regulamentares que fixam o valor da terra federal, diferentemente da presunção juris tantum dos demais negócios jurídicos imobiliários translativos realizados entre dois agentes privados, que, na dicção do Superior Tribunal de Justiça, pode ser desfeita, desde que obedecidas às exigências do devido processo legal.
Helenilson Cunha Pontes é sócio do Cunha Pontes Advogados, livre-docente (USP) e doutor (USP).
Revista Consultor Jurídico, 11 de janeiro de 2023, 19h02