ARTIGO DA SEMANA – Por que o fisco não pode ir ao Judiciário após decisão do CARF?

João Luís de Souza Pereira. Advogado. Mestre em Direito. Professor convidado das pós-graduações da FGV/Direito Rio e do IAG/PUC-Rio.

O Ministro da Fazenda concedeu longa entrevista à jornalista Miriam Leitão, veiculada no canal Globonews na última quarta-feira.

O voto de qualidade de CARF, objeto do Projeto de Lei nº 2384/2023, foi um dos temas abordados na entrevista.

Segundo o Ministro, o restabelecimento do voto de qualidade em favor do fisco é fundamental para restabelecer o equilíbrio, já que só os contribuintes podem recorrer ao Judiciário após decisão desfavorável no CARF.

Ainda de acordo com o Ministro, esta posição é defendida até mesmo pela OCDE.

O Ministro também informou que o PL 2384 prevê a possibilidade de, havendo desempate em favor do fisco, o contribuinte poder realizar o pagamento do principal, sem multa e/ou juros, já que se trata de matéria controvertida.

O discurso do Ministro contém uma inverdade e nos remete à uma antiga discussão.

O déficit de veracidade na resposta do Ministro está na previsão de pagamento do tributo discutido sem acréscimo de multa e juros.

O PL 2384/2023 simplesmente não contém nenhum dispositivo neste sentido.

Os artigos 2º e 3º[1], do PL 2384/2023 apenas dispõem que a Receita Federal poderá disponibilizar métodos preventivos para a autorregularização de obrigações tributárias e que neste casos, dependendo da classificação do contribuinte numa espécie de ranking de conformidade, poderão ser afastadas as penalidades.

Logo, não se trata de afastamento de penalidades e juros, pura e simplesmente, nos casos de exigências fiscais controvertidas e decididas com placar apertado.

A antiga discussão que vem à tona com o discurso do Ministro diz respeito à vedação de acesso do fisco ao Judiciário após decisão final do CARF favorável ao contribuinte.

Dizer que só o contribuinte pode ir ao Judiciário após decisão desfavorável do CARF é reduzir uma discussão complexa ao tamanho de uma azeitona.

Também não é apropriado, sob o ponto de vista de privilégios, comparar fisco e contribuintes.

O fisco, todos sabemos, está numa situação privilegiada porque o crédito tributário goza de garantias e privilégios.

Aliás, como deixa claro o artigo 183, do Código Tributário Nacional, a enumeração das garantias do crédito tributário não se resumem àquelas relacionadas na Lei Geral Tributária. Há diversos outros meios previstos em lei que preservam o crédito da fazenda pública e conferem maior certeza ao recebimento dos valores devidos ao fisco. Portanto, as disposições sobre os privilégios do crédito tributário, a teor do art. 183 do CTN, têm caráter meramente exemplificativo uma vez que podem ser ampliadas por leis específicas.

Fundamentadas no princípio da supremacia do interesse público sobre o particular, as prerrogativas especiais da Fazenda dirigem-se à proteção do crédito público com vistas à satisfação das necessidades coletivas.

Somente a Fazenda Pública pode unilateralmente produzir um título – a Certidão de Dívida Ativa – que será cobrado judicialmente mediante processo de execução. Nenhum credor privado goza desta prerrogativa.

Com total apoio do Judiciário, este título executivo gerado unilateralmente pela Fazenda Pública pode, inclusive, ser objeto de protesto extrajudicial, abalando, não raro, o bom nome comercial de pessoas físicas e jurídicas, bem como causando embaraços ou até mesmo inviabilizando o acesso ao crédito.

Por aí se vê que a comparação entre fisco e contribuinte do ponto de vista dos privilégios não é uma boa medida.

Mas também é preciso indagar o porquê de não ser possível ao fisco recorrer ao Poder Judiciário ao final de processo administrativo no CARF com decisão desfavorável a seu interesse.

Este é uma tema de grande importância, tendo em vista a possibilidade de introdução de um ambiente de insegurança jurídica entre os indivíduos, na exata medida em que nunca se chegará a uma decisão final no âmbito do processo administrativo, comprometendo a plena eficácia do artigo 156, IX, do Código Tributário Nacional, que afirma ser modalidade de extinção do crédito tributário “a decisão administrativa irreformável, assim entendida a definitiva na órbita administrativa, que não mais possa ser objeto de ação anulatória”.

Esta é uma discussão antiga, que em agosto fará 19 (dezenove) anos. Através do Parecer PGFN/CRJ/N° 1.987/2004[2] e da Portaria do Procurador Geral da Fazenda Nacional n° 820/2004[3] a PGFN afirmou ser possível a reforma judicial por iniciativa da Fazenda Nacional das decisões proferidas pelos então  Conselhos de Contribuintes do Ministério da Fazenda e promoveu a regulamentação das hipóteses em que esta discussão seria cabível.

Diversamente do que concluiu a PGFN, os pensadores do Direito Tributário alinham pelo menos três grandes obstáculos ao ingresso da Fazenda Pública em juízo para reformar decisão que tenha apreciado recursos administrativo fiscal e decidido pelo cancelamento da exigência fiscal.

O primeiro motivo registrado pela doutrinária contrário à ideia de revisão judicial das decisões proferidas em apreciação de recursos administrativos fiscais é a violação ao princípio da segurança jurídica. Segundo esta corrente do pensamento doutrinário, a possibilidade de ingresso da Fazenda em juízo acabaria por instalar o caos, já que nunca os contribuintes teriam a necessária certeza e segurança da imutabilidade das decisões finais em processos administrativos (IVES GANDRA DA SILVA MARTINS[4] – Processo Administrativo Tributário. São Paulo: Centro de Extensão Universitária e Editora Revista dos Tribunais, 1999, p. 78).

O segundo fundamento jurídico relevante apontado pela doutrina afeta diretamente a premissa básica adotada pela Procuradoria da Fazenda Nacional no Parecer PGFN/CRT/N° 1.087/2004, qual seja, o princípio da inafastabilidade do acesso ao Poder Judiciário. De acordo com o pensamento doutrinário predominante, o direito de acesso à jurisdição foi conferido pelo legislador constituinte ao cidadão, mas não ao Poder Público. Trata-se, pois, de uma garantia do cidadão (HUGO DE BRITO MACHADO[5] – Processo Administrativo Tributário. São Paulo: Centro de Extensão Universitária e Editora Revista dos Tribunais, 1999, p. 155).

Uma terceira corrente doutrinária defende que é impossível o acesso da Fazenda Pública à jurisdição no caso em apreço, tendo em vista falecer à Administração interesse processual para reverter em juízo decisão proferida por ela mesma (SACHA CALMON NAVARRO COÊLHO[6] – Processo Administrativo Tributário. São Paulo: Centro de Extensão Universitária e Editora Revista dos Tribunais, 1999, p. 190). 

Também não se pode perder de vista que o Superior Tribunal de Justiça permite o acesso da Fazenda Pública em juízo para obter a revisão de decisão administrativa eivada de nulidade, num verdadeiro exercício de controle judicial da legalidade do ato administrativo, desde que exista prévia disposição legal, obviamente (MS 8.810-DF, DJ 06/10/2003)[7].

Portanto, a impossibilidade de acesso da Fazenda Pública após decisão desfavorável do CARF é tema de grande profundidade que não se resume ao inconformismo do Ministro, da PGFN ou da Diretora do Centro de Política Tributária da OCDE.


[1] Art. 2o A Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil do Ministério da Fazenda poderá́: 

I – disponibilizar métodos preventivos para a autorregularização de obrigações principais ou acessórias relativas a tributos por ela administrados; e 

II – estabelecer programas de conformidade para prevenir conflitos e assegurar o diálogo e a compreensão de divergências acerca da aplicação da legislação tributária. 

§ 1o Nas hipóteses de que trata o caput, a comunicação ao sujeito passivo, para fins de resolução de divergências ou inconsistências, realizada previamente à intimação, não configura início de procedimento fiscal. 

§ 2o A Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil do Ministério da Fazenda disciplinará o disposto neste artigo. 

Art. 3o A Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil do Ministério da Fazenda estabelecerá classificação de contribuintes, de acordo com o grau de conformidade tributária e aduaneira, com base nos seguintes critérios: 

I – regularidade cadastral; 

II – regularidade no recolhimento dos tributos devidos; 

III – aderência entre escriturações ou declarações e os atos praticados pelo contribuinte; 

IV – exatidão das informações prestadas nas declarações e escriturações; e 

V – outros definidos pela Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil do Ministério da Fazenda. 

§ 1o A classificação do contribuinte poderá́ ser utilizada como critério para sua inclusão em programas de conformidade. 

§ 2o No âmbito dos programas de conformidade, a administração tributária adotará as seguintes medidas, graduadas de acordo com a classificação do contribuinte, com vistas à autorregularização dos créditos tributários antes do lançamento: 

I – procedimento de orientação tributária e aduaneira prévia; 

II – deixar de aplicar eventual penalidade administrativa; 

III – prioridade de análise em processos administrativos, inclusive quanto a pedidos de restituição ou ressarcimento de direitos creditórios; e 

IV – atendimento preferencial na prestação de serviços presenciais ou 

virtuais. 

§ 3o A medida prevista no inciso II do § 2o será́ graduada e condicionada em função de: 

I – apresentação voluntária, antes do início do procedimento fiscal, de atos ou negócios jurídicos relevantes para fins tributários para o qual não haja posicionamento prévio da administração tributária; ou 

II – atendimento tempestivo a requisições de informações realizadas pela autoridade administrativa. 

§ 4o A Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil do Ministério da Fazenda disciplinará o disposto neste artigo, inclusive no que se refere à divulgação da classificação dos contribuintes. 

[2] Publicado no Diário Oficial da União – Seção I, de 23/8/2004.

[3] Publicada no Diário Oficial da União – Seção I, de 29/10/2004.

[4] “Parece-me que até por força do ‘princípio-fundamento’ da Constituição, que é o da ‘segurança jurídica’, tal pretensão é inaceitável, visto que se instauraria em relação ao contribuinte que discutiu com sucesso administrativo, mas sem direito à sucumbência, a insegurança absoluta, pois todo o processo em que a Fazenda desempenhou essencialmente os papéis de ‘parte e juiz’, poderia ser reaberto, a qualquer momento, reiniciando-se discussão interminável”.

[5] “O Direito é instrumento de limitação do poder. Sua finalidade essencial consiste em proteger contra quem não tem, aquele que não tem, ou tem menos poder. Por isto mesmo o Estado, o maior centro de poder institucional do planeta, não pode invocar a seu favor as garantias que a ordem jurídica institui para proteger o cidadão, entre as quais se destaca o direito à jurisdição.

As garantias constitucionais são destinadas ao cidadão, e não ao próprio Estado, salvo, é claro, aquelas expressa e explicitamente destinadas, que funcionam como instrumento de preservação da ordem institucional”.

[6] “ninguém pode ir a juízo contra ato próprio, por falta de interesse de agir. De outra parte, a decisão administrativa definitiva, contra a Fazenda Pública, certa ou errada, constitucional ou não, extingue a obrigação tributária.

[7] “o Estado brasileiro submeteu-se a um procedimento destinado à identificação das obrigações e dos respectivos responsáveis. Esse procedimento, cuja instância máxima era o Ministro da Fazenda, hoje se exaure na Câmara Superior de Recursos Fiscais.

O Senhor Ministro deu curso ao apelo, invocando seu poder de controle sobre os conselhos de contribuintes. Ora, a necessidade de controlar pressupõe algo descontrolado. Na hipótese, haveria necessidade de controle, se o conselho de contribuintes houvesse atuado fora do âmbito de sua competência ou sem observar os pressupostos recursais. Nessas circunstâncias, a decisão do conselho seria nula. Bem por isso, o Ministro poderia intervir, para obviar a nulidade.

Na lide objeto deste processo, não se alega que o conselho ultrapassou o âmbito de sua competência ou desconheceu os pressupostos processuais. Simplesmente, afirma-se que o colegiado errou na aplicação da lei”.

×