Existe previsão expressa no texto de que lei complementar poderá estabelecer a cobrança direta
O texto da reforma tributária, aprovado pela Câmara dos Deputados no primeiro semestre e agora em tramitação no Senado, deixa uma porta aberta para terceiros terem que recolher a Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS) e o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), destinados, respectivamente, à União e Estados, Distrito Federal e municípios. Existe previsão expressa de que lei complementar poderá estabelecer a cobrança direta ou o redirecionamento em caso de inadimplência do devedor original — ainda que o terceiro seja residente ou domiciliado no exterior.
Especialistas ouvidos pelo Valor apontam que o dispositivo permite que a cobrança do IBS seja dirigida a marketplaces, intermediadores financeiros e adquirentes no caso de operações em cadeia, por exemplo. Alguns Estados já tentaram direcionar a cobrança do ICMS a marketplaces — em substituição aos vendedores das plataformas —, por se tratar de uma operação concentrada e não pulverizada. Para as empresas, contudo, haveria grande necessidade de adaptação.
Esse também é o entendimento da Fazenda Nacional sobre o dispositivo. De acordo com uma fonte da área técnica, a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) no 45 seria explícita ao dizer que as plataformas podem ser responsabilizadas diretamente pelo recolhimento de impostos.
“Essa responsabilização está sendo tratada na PEC de forma ampla e autoriza lei complementar a dar amplitude grande a regras de sujeição passiva”, afirma Maurício Barros, sócio do Demarest Advogados. Para ele, é como se já houvesse uma preocupação com relação ao ICMS e a PEC desse o recado de que a sujeição passiva do IBS e da CBS pode ser mais abrangente.
Sujeição passiva é um termo amplo que abrange contribuintes solidários, responsáveis e até substitutos, de acordo com o advogado. É alguém que poderá ser cobrado em solidariedade ou subsidiariamente pelo imposto caso o devedor original (o contribuinte, nas palavras da Receita Federal) não pague. Ou que, pelo texto, acrescenta ele, pode ser responsabilizado diretamente.
“É um modelo que existe na União Europeia, mas com pressupostos e delimitações bem definidos”, diz o advogado. O marketplace, em caso de produto importado, exemplifica, poderá ser o responsável por pagar o imposto para a Receita, em vez do importador pessoa física. “Pelo texto da PEC, o marketplace não teria que pagar apenas se o contribuinte deixar de recolher [o imposto], a cobrança pode ser direcionada diretamente para ele.”
Em geral, esse assunto pode afetar, além dos marketplaces, intermediadores financeiros e transportadores, de acordo com Barros.
“Quem for eleito para sujeito passivo, que não o vendedor ou prestador originais, precisa ter meios fáceis de se ressarcir, para não arcar com o ônus”, afirma.
A Constituição prevê hipótese ampla de sujeição passiva. Quando o legislador complementar for regular essa questão, vai precisar ter razoabilidade para não inviabilizar a atividade, segundo o advogado, fazendo com que os terceiros tenham que lidar com muitas questões tributárias e acabem tendo dificuldade para se ressarcir — dependendo do modelo de negócio, a plataforma pode ou não ter meios de ser ressarcida pelo vendedor ou comprador na importação.
“Tenho conversado com algumas empresas sobre isso e em geral há preocupação se o artigo será mantido no Senado e, sendo mantido, como a lei complementar vai tratar desse assunto”, diz.
No regime atual, de acordo com Ana Claudia Utumi, sócia do Utumi Advogados, seria quase inviável essa responsabilização. Caberia ao marketplace, por exemplo, fazer a classificação dos produtos, indicando se é desodorante ou hidratante, pantufa ou sapato, e outras diferenças que alteram a alíquota e se tornam dispu- tas prolongadas entre contribuintes e Receita. “Uma coisa é fazer o compliance da sua empresa que você sabe quais produtos está vendendo, outra coisa é o marketplace.”
Existem países que implementaram modelos em que o marketplace deve fazer a retenção na fonte deixando para o vendedor somente a parte líquida do tributo. “Existe a possibilidade, mas do ponto de vista do nosso mercado, as empresas precisariam de um tempo para se adaptar e cumprir esse tipo de obrigação”, afirma Utumi. “É necessário aguardar a lei complementar e ver como será estabelecida a responsabilidade tributária.”
De acordo com Jorge Gonçalves Filho, presidente do Instituto para Desenvolvimento do Varejo (IDV), o texto da reforma dá margem para que os marketplaces se tornem sujeitos passivos do imposto. A entidade concorda com a previsão desde que a lei complementar diga que as plataformas são solidárias ao pagamento do imposto e não que cabe a elas recolher.
Fiscalizar os vendedores seria mais fácil que recolher o imposto, afirma Gonçalves Filho. Esse é um dos pontos que o setor está acompanhando na reforma, e o presidente do IDV acredita que a questão será resolvida por meio de lei complementar.
Procurada pelo Valor, a Febraban informou em nota que a reforma tributária é positiva e traz melhorias em relação à simplificação do sistema tributário, com possíveis implicações também no que se refere às obrigações acessórias. “Em relação à forma de recolhimento do novo tributo ainda é necessário aprofundar o tema com os entes políticos, pois envolve custos e riscos relevantes para os meios de pagamentos, em um sistema operacional bastante complexo”, afirma a entidade.
Fonte: Valor Econômico – 19, 20 e 21/08/2023