João Luís de Souza Pereira. Advogado. Mestre em Direito. Membro da Comissão de Direito Financeiro e Tributário do IAB. Professor convidado das pós-graduações da FGV/Direito Rio e do IAG/PUC-Rio.
A recente Medida Provisória 1.277/2024, publicada no Diário Oficial de 04/06/2024 (em edição extra) trouxe alterações importantes e equivocadas ao Direito Tributário material e processual.
Nos precisos termos de seu art. 1º, a MP 1.277/2024 trata de: (i) condições para a fruição de benefícios fiscais; (ii) delegação de competência ao Distrito Federal e aos Municípios para o julgamento de processo administrativo fiscal relativo ao Imposto sobre a Propriedade Territorial Rural – ITR, mediante a celebração do convênio de que trata o art. 1º da Lei nº 11.250, de 27 de dezembro de 2005; (iii) limitação da compensação de tributos administrados pela Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil do Ministério da Fazenda, na hipótese que especifica; e (iv) – revogação de hipóteses de ressarcimento e de compensação de créditos presumidos da Contribuição para o Programa de Integração Social e o Programa de Formação do Patrimônio do Servidor Público – PIS/Pasep e da Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social – Cofins.
Analisaremos cada uma dessas alterações e respectivas impertinências.
O primeiro tema tratado pela MP 1.277/2024 são os novos requisitos para a fruição de benefícios fiscais, criando-se nova obrigação tributária acessória e estipulando penalidades pelo seu descumprimento.
Entre as novidades, a MP 1.277/2024 estabelece que pessoas que tenham sofrido sanções pela prática de atos de improbidade administrativa, lesivos ao meio ambiente ou à administração pública (nacional ou estrangeira) não estarão sujeitas à concessão, reconhecimento, habilitação, coabilitação e fruição de incentivo, à renúncia ou ao benefício de natureza tributária.
A MP também cria a obrigação de entregar declaração eletrônica contendo os incentivos, as renúncias, os benefícios ou as imunidades de natureza tributária de que usufruir; e o valor do crédito tributário correspondente.
Esta declaração é meio de controle dos benefícios concedidos e da renúncia de receita respectiva. Medida louvável, razoável e proporcional.
Os problemas, contudo, surgem nas penalidades pelo descumprimento ou cumprimento inexato da obrigação.
Segundo o art. 3º da MP 1.277/2024[1], a pessoa jurídica que deixar de entregar ou entregar em atraso a nova declaração estará sujeita a penalidades calculadas por mês ou fração, incidente sobre a receita bruta da pessoa jurídica apurada no período, cujas multas serão graduadas segundo a receita bruta do beneficiário (0,5%; 1% ou 1,5%), limitadas a 30% (trinta por cento) do valor dos benefícios fiscais.
Também há previsão de multa de 3% (três por cento), não inferior a R$ 500,00 (quinhentos reais), sobre o valor omitido, inexato ou incorreto independentemente das multas progressivas.
Ora, a previsão de multa graduada em razão da receita bruta do beneficiário não faz o menor sentido. Se a infração é a falta de entrega da declaração que espelha o benefício fiscal concedido, o correto seria prever a multa sobre o valor dos tributos que deixaram de ser pagos. Ou seja, o que importa é o tamanho do erro e não a receita bruta do beneficiário.
Fazer distinção da penalidade em razão do porte da pessoa jurídica, em última análise, é medida irrazoável e desproporcional, tendo em vista que o importante não é a receita, mas o erro cometido ou, quando muito, o total da receita a que o erário renunciou.
É igualmente descabida a multa de 3% (três por cento) sobre o valor omitido, inexato ou incorreto independentemente da multa pela falta/atraso na entrega da declaração. Se a declaração não foi prestada, descabe prever penalidade sobre aquilo que deveria constar na declaração. Se houver atraso, puna-se a mora e nada mais.
Além disso, multas por informações omitidas, inexatas ou incorretas não têm o menor cabimento, caso seja admitida a retificação da declaração. Errar é humano e retificar o erro é gesto de nobreza. Logo, punir quem erra é utilizar multa com efeito arrecadatório, contrariando o caráter punitivo da pena pecuniária.
Neste caso, o melhor seria prever a possibilidade de justificar o porquê da informação incorreta, concedendo-se prazo para a retificação, se for o caso. Não havendo resposta nem retificação, aí sim caberia a multa.
O segundo tema tratado na MP 1.227/2024 é a delegação para que o DF e os municípios a competência para o julgamento administrativo dos processos envolvendo o ITR[2].
Neste ponto, parece que a MP 1.277/2024 é inconstitucional.
De acordo com o art. 153, §4º, III, da Constituição, o ITR, imposto da competência da União, “será fiscalizado e cobrado pelos Municípios que assim optarem, na forma da lei, desde que não implique redução do imposto ou qualquer outra forma de renúncia fiscal”.
Consequentemente, o DF não foi contemplado na possibilidade de delegação das atribuições de fiscalização e cobrança do ITR.
Além disso, a Constituição não previu a possibilidade do ITR ser fiscalizado e cobrado pelos municípios. Fiscalizar é verificar o cumprimento das normas reguladoras do tributos e, sendo o caso, exigir o pagamento. Cobrar é sinônimo de ajuizar a execução fiscal, vale dizer, promover a cobrança judicial do tributo. Logo, a atribuição de um município (e muito menos o DF) julgar os processos administrativos envolvendo o ITR não foi contemplada pela Constituição.
O terceiro tema tratado pela MP 1.277/2024 tem o exclusivo propósito de vedar a compensação de saldos credores do PIS e da COFINS com outros tributos administrados pela Receita Federal.
Saldos credores do PIS/COFINS podem surgir quando o contribuinte promover a aquisição de mercadorias ou serviços tributados pelas contribuições que gerarão receita isenta, sujeita à alíquota zero ou imune (exportações).
O art. 5º, da MP 1.277/2024[3], deixa claro que o Poder Executivo elegeu a compensação tributária como uma fonte importante de geração de receita.
A primeira tacada veio pela MP 1.202/2024, já convertida na Lei nº 14.873/2024. Agora, investe-se novamente em restrições à compensação.
O detalhe importante é que, a rigor, o art. 74, da Lei nº 9.430/96, não trata de saldos credores de tributos, mas de excessos decorrentes de pagamentos indevidos ou a maior.
Com efeito, é bom não confundir o artigo 156, II, do CTN, com as compensações previstas nos artigos 153, § 3º, II; 155, § 2º, I e 195, §12, da Constituição, que tratam da compensação através da qual o IPI, o ICMS e o PIS/COFINS tornam-se tributos não-cumulativos, não havendo que se falar em tributo pago indevidamente ou a maior.
Portanto, a restrição introduzida pelo art. 5º, da MP 1.277/2024, ficaria melhor nas Leis nº 10.637/2002 e 10.833/2003, que tratam do PIS/COFINS não-cumulativos.
A propósito, as Leis nº 10.637/2002 e 10.833/2003 não sofreram alteração em razão da MP 1.277/2024, de modo que o exportador continua tendo assegurado o direito de compensar os saldos credores do PIS/COFINS com outros tributos federais e até mesmo obter o ressarcimento em espécie.
O quarto e último tema tratado pela MP 1.277/2024 é a restrição de ressarcimentos dos PIS/COFINS decorrentes de créditos presumidos dos tributos em diversas hipóteses.
Sem entrar no mérito de cada uma das situações que mereceram a concessão de créditos presumidos, a verdade é que, mas uma vez, utiliza-se subterfúgio para equilibrar as contas públicas sem promover profunda redução nas despesas.
Os artigos 5º e 6º, da MP nº 1.277/2024 deixam claro que o compromisso de déficit zero será suportado pelo setor produtivo e que o governo continuará gastando desmedidamente.
Os artigos 5º e 6º, da MP nº 1.277/2024 também evidenciam que a Reforma dos tributos sobre o consumo é apenas para inglês ver, porque sempre se estará sujeito às manipulações de normas infraconstitucionais com o objetivo de aumentar arrecadação.
Enquanto não se definir o tamanho do Estado e os gastos necessários à sua manutenção, qualquer Reforma Tributária seria ineficaz e correremos o sério risco de vermos a Reforma da Reforma…
[1] Art. 3º A pessoa jurídica que deixar de entregar ou entregar em atraso a declaração prevista no art. 2º estará sujeita à seguinte penalidade calculada por mês ou fração, incidente sobre a receita bruta da pessoa jurídica apurada no período:
I – 0,5% (cinco décimos por cento) sobre o valor da receita bruta de até R$ 1.000.000,00 (um milhão de reais);
II – 1% (um por cento) sobre a receita bruta de R$ 1.000.000,01 (um milhão de reais e um centavo) até R$ 10.000.000,00 (dez milhões de reais); e
III – 1,5% (um inteiro e cinco décimos por cento) sobre a receita bruta acima de R$ 10.000.000,00 (dez milhões de reais).
§ 1º A penalidade será limitada a 30% (trinta por cento) do valor dos benefícios fiscais.
§ 2º Será aplicada a multa de 3% (três por cento), não inferior a R$ 500,00 (quinhentos reais), sobre o valor omitido, inexato ou incorreto independentemente do previsto no caput.
[2] Art. 4º A Lei nº 11.250, de 27 de dezembro de 2005, passa a vigorar com as seguintes alterações:
“Art. 1º Para fins do disposto no art. 153, § 4º, inciso III, da Constituição Federal, a União, por intermédio da Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil do Ministério da Fazenda, poderá celebrar convênios com o Distrito Federal e os Municípios que assim optarem, com vistas a delegar as atribuições de fiscalização, inclusive a de lançamento dos créditos tributários, de cobrança e de instrução e julgamento dos processos administrativos de determinação e exigência relacionados ao Imposto sobre a Propriedade Territorial Rural – ITR, de que trata o art. 153, caput, inciso VI, da Constituição Federal, sem prejuízo da competência supletiva da Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil.
………………………………………………………………………………………………………
§ 4º Na hipótese de julgamento dos processos administrativos de determinação e exigência do ITR pelo Distrito Federal ou por Município, deverão ser observados os atos normativos e interpretativos editados pela Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil.” (NR)
[3] Art. 5º A Lei nº 9.430, de 27 de dezembro de 1996, passa a vigorar com as seguintes alterações:
“Art. 74. ………………………………………………………………………………………..
………………………………………………………………………………………………………
§ 3º ……………………………………………………………………………………………….
………………………………………………………………………………………………………
XI – o crédito do regime de incidência não cumulativa da contribuição para o PIS/PASEP e da COFINS, exceto com débito das referidas contribuições, a partir de 4 de junho de 2024.
……………………………………………………………………………………………..” (NR)