ARTIGO DA SEMANA –  CONTENCIOSO ADMINISTRATIVO NO IBS (Provimentos Vinculantes) Parte 3

João Luís de Souza Pereira. Advogado. Mestre em Direito. Membro da Comissão de Direito Financeiro e Tributário do IAB. Professor convidado das pós-graduações da FGV/Direito Rio e do IAG/PUC-Rio.

A proposta de processo administrativo fiscal do IBS previsto no Projeto de Lei Complementar nº 108/2024 traz o interessante instituto dos provimentos vinculantes em seu artigo 92[1].

Os provimentos vinculantes têm por objetivo a uniformização das decisões do Comitê Gestor nos processos administrativos envolvendo o IBS àquilo que tenha sido decidido pelo STF, STJ e pelo próprio CG-IBS com aplicação erga omnes e efeito vinculante. 

A preocupação quanto à observância das decisões judiciais de caráter geral e efeito vinculante acerca da constitucionalidade e/ou legalidade de normas  processos administrativos fiscais não é nenhuma novidade e pode ser observada nos arts. 98, parágrafo único; 101 e 118, §12, do Regimento Interno da CARF.

O mandamento decorrente do art. 92, I a IV e §1º, do PLP 108/2024, busca preservar a segurança jurídica, na medida em que determina a observância das súmulas vinculantes do STF, das decisões transitadas em julgado proferidas pelo STF em sede de controle concentrado de constitucionalidade ou em controle difuso cuja execução tenha sido suspensa por resolução do Senado Federal, na forma do art. 52, X, da Constituição Federal; das decisões transitadas em julgado do STF ou do STJ na sistemática da repercussão geral ou dos recursos repetitivos e ainda dos atos administrativos vinculantes decorrentes do órgão competente do CG-IBS na uniformização da interpretação e da aplicação da legislação do IBS, nos processo administrativos fiscais relativos ao imposto.

Neste ponto, o PLP 108/2024 está absolutamente alinhado com os esforços empreendidos pelo legislador ao longo das últimas décadas no sentido de garantir a maior coerência possível a partir das decisões emanadas dos Tribunais Superiores, conferindo um ambiente processual com plena segurança jurídica.

O PLP 108/2024 prevê, inclusive, a ressalva do distinguishing para as situações em que não estiverem presentes fundamentos relevantes para a distinção ou superação dos precedentes.

Mas os dispositivos do PLP 108/2024 que cuidam dos provimentos vinculantes merecem algumas correções que, espera-se, sejam realizadas ao longo da tramitação no Senado Federal.

A primeira delas é o art. 92, §1º, segundo o qual “A autoridade julgadora observará ainda os atos administrativos vinculantes decorrentes da competência constitucional do CG-IBS para uniformização da interpretação e da aplicação da legislação do IBS, nos termos do art. 156-B da Constituição Federal”.

Considerando que o PLP 108/2024 é norma de natureza processual, o ideal seria que o texto já deixasse expresso quais serão os atos administrativos vinculantes decorrentes da competência do CG-IBS. Além disso, a norma processual já deveria dispor sobre o órgão competente para baixar tais atos administrativos, bem como o rito a ser observado para que a deliberação de natureza vinculante seja tomada.

O máximo que se pode extrair do PLP 108/2024 é que haverá um Incidente de Uniformização de matérias repetitivas, remetendo-se a um posterior ato do CG-IBS a disciplina das hipótese de cabimento, a indicação dos legitimados, a admissibilidade e o processamento do incidente.

Considerando a oportunidade ímpar conferida ao Congresso Nacional para, representando o povo e a federação, regulamentar o Comitê Gestor do IBS, deixar a disciplina de questões processuais tão importantes para um órgão estranho ao Poder Legislativo é correr o risco de ser produzida uma norma contrária aos interesses do povo e com sério déficit de legitimidade democrática.  

O PLP 108/2024 também insiste na vedação ao afastamento ou aplicação de normas ilegais e/ou inconstitucionais, ainda não objeto de decisão dos Tribunais Superiores, pelas autoridades julgadoras do processo administrativo fiscal (art. 92, §3º).

Trata-se da vedação do art. 26-A, do Decreto nº 70.235/72, agora ampliada também para as normas ilegais.

Apesar das leis processuais, das decisões administrativas e de alguns autores defenderem a impossibilidade dos “Tribunais Administrativos” decidirem pela ilegalidade ou inconstitucionalidade de uma norma, esta vedação no exercício da função judicante dos órgãos administrativos não faz o menor sentido.

Numerosos juristas sustentam a possibilidade de um controle administrativo da constitucionalidade das leis, sob o fundamento de que a apreciação de inconstitucionalidade não é atribuição privativa do Poder Judiciário, também cabendo ao Poder Executivo deixar de aplicar a lei que considere inconstitucional. RICARDO LOBO TORRES (1999, p. 165) defende esta ideia, apesar de advertir que somente através de um processo administrativo formalmente constituído e desenvolvido os riscos advindos desta declaração de inconstitucionalidade estarão minimizados, e assevera:

“O argumento central em favor da competência dos órgãos da Administração Judicante é o mesmo que justifica a competência genérica para o Executivo recusar-se a aplicar a lei: a inexistência de monopólio do Judiciário quanto ao controle da constitucionalidade”.

OCTAVIO CAMPOS FISCHER (2004, p. 87) fez uma profunda abordagem do tema para concluir que a possibilidade de afastamento da norma inconstitucional pela Administração Tributária se justifica pela obediência a todos os preceitos constitucionais:

“Obedecer à lei, ao princípio da legalidade, pode significar apenas obediência à lei infraconstitucional. Ocorre que a Administração Pública deve obediência a todos os preceitos constitucionais e não somente à legalidade. Seu atuar, à luz da Constituição de 1988, não se resume à legalidade, devendo-se pautar pela proporcionalidade, moralidade, igualdade, eficiência, publicidade, dentre outros. Assim, pode-se abrir espaço para a validade do controle de constitucionalidade em sede de processo administrativo”.

IVES GANDRA DA SILVA MARTINS (1999, p. 72) é partidário deste ponto de vista, mas também acrescenta que a falta de pronunciamento do órgão administrativo acerca da constitucionalidade das leis importa em subtração do direito a ampla defesa:

“Se ampla defesa é assegurada no processo administrativo, não pode a autoridade administrativo negar-se a discutir matéria constitucional, visto que reduziria a defesa do contribuinte, que deixaria de ser ‘ampla’ no processo administrativo”.

Portanto, a possibilidade dos órgãos administrativos pronunciarem-se sobre a legalidade ou constitucionalidade das leis tributárias é questão relevantíssima que merece, ao menos, ser debatida no âmbito da tramitação do PLP 108/2024 no Senado Federal.

Outra observação que se coloca ao PLP 108/2024 diz respeito ao art. 92, §4º, cuja redação prevê que o  “A autoridade julgadora, antes de decidir pela vinculação, ouvirá a representação fazendária competente sobre a identidade entre a matéria tratada no processo administrativo tributário e os atos vinculantes …”

É fora de dúvida que a previsão de manifestação exclusiva do representante da Fazenda Pública antes de se decidir pela aplicação do precedente vinculante decorre de claro deslize dos deputados que, excluindo a prévia manifestação do contribuinte, importa em flagrante violação ao princípio do contraditório. 

Como se vê, os provimentos vinculantes são bem-vindos, mas as normas que o regulamentam precisam ser aprimoradas, sob pena de um instituto tão importante ser mal aplicado e deixar de contribuir para a preservação da segurança jurídica e celeridade processual.


[1] Art. 92. No âmbito do processo administrativo

tributário, serão observados, desde que ausentes

fundamentos relevantes para distinção ou superação:

I – os enunciados das súmulas vinculantes do

Supremo Tribunal Federal, na forma do art. 103-A da

Constituição Federal;

II – as decisões transitadas em julgado

proferidas pelo Supremo Tribunal Federal em sede de

controle concentrado de constitucionalidade, na forma do §

2º do art. 102 da Constituição Federal;

III – as decisões transitadas em julgado

proferidas pelo Supremo Tribunal Federal em sede de

controle difuso que tenham declarado inconstitucional

dispositivo legal cuja execução tenha sido suspensa por

resolução do Senado Federal, na forma do inciso X do caput

do art. 52 da Constituição Federal; e

IV – as decisões transitadas em julgado do

Supremo Tribunal Federal ou do Superior Tribunal de Justiça

proferidas na sistemática da repercussão geral ou dos

recursos repetitivos, na forma dos arts. 927, 928 e 1.036 a

1.041 da Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de

Processo Civil).

§ 1º A autoridade julgadora observará ainda os

atos administrativos vinculantes decorrentes da competência

constitucional do CG-IBS para uniformização da

interpretação e da aplicação da legislação do IBS, nos

termos do art. 156-B da Constituição Federal.

§ 2º Da decisão que deixar de aplicar os atos

vinculantes proferidos ou editados pelo órgão responsável

do CG-IBS caberá incidente de uniformização.

§ 3º Ressalvado o disposto neste artigo, fica

vedado às autoridades julgadoras, no âmbito do processo

administrativo tributário, afastar a aplicação ou deixar de

observar a legislação tributária sob o fundamento de

inconstitucionalidade ou ilegalidade.

§ 4º A autoridade julgadora, antes de decidir

pela vinculação, ouvirá a representação fazendária

competente sobre a identidade entre a matéria tratada no

processo administrativo tributário e os atos vinculantes

descritos neste artigo.

×