João Luís de Souza Pereira. Advogado. Mestre em Direito. Membro da Comissão de Direito Financeiro e Tributário do IAB. Professor convidado das pós-graduações da FGV/Direito Rio e do IAG/PUC-Rio.
A Emenda Constitucional nº 132/2023, que aprovou a Reforma Tributária com foco na tributação sobre o consumo, criou um imposto de competência compartilhada entre Estados, Distrito Federal e Municípios: o IBS.
Buscando atenuar os conflitos decorrentes desta competência compartilhada, a EC 132/2023 concebeu um Comitê Gestor do IBS com atribuições tão variadas que vão desde editar um regulamento único do imposto até decidir o contencioso administrativo.
O Comitê Gestor do IBS, evidentemente, terá um desafio gigantesco pela frente, já que não será fácil regulamentar, uniformizar a interpretação das normas e decidir em processos administrativos envolvendo 27 Estados, DF e mais de 5.000 municípios.
Mas há um detalhe que parece não ter sido percebido e que pode comprometer a existência do Comitê Gestor e até mesmo do próprio IBS, salvo se o Supremo Tribunal Federal alterar sua jurisprudência.
De acordo com o que estabelece o art. 156-B, §2º, “o Comitê Gestor será financiado por percentual do produto da arrecadação do imposto destinado a cada ente federativo”.
Ocorre que esta fonte de financiamento do Comitê Gestor do IBS, instituída pela EC 132/2023, viola a Constituição, segundo a jurisprudência do STF.
Antes de mais nada, convém lembrar que, desde o advento da Emenda Constitucional nº 03/93, o STF firmou jurisprudência no sentido de ser possível a declaração de inconstitucionalidade de uma emenda à Constituição[1].
No caso específico do Comitê Gestor do IBS, o art. 156-B, §2º, III, não resiste ao confronto com o art. 167, IV, este último do Texto Permanente da Constituição, embora objeto de emendas.
O art. 167, IV[2], da Constituição da República, consagra o princípio da não vinculação da receita de impostos, ou seja, afirma não ser possível que um imposto tenha uma destinação específica para o produto de sua arrecadação.
Imposto, como é de amplo conhecimento, é tributo destinado ao financiamento das despesas gerais do Estado, e por isso mesmo não se pode atribuir uma destinação específica para o produto de sua arrecadação.
Aliás, esta é uma consequência lógica da própria definição de imposto dada pelo art. 16[3], do Código Tributário Nacional.
À luz do CTN, diversamente das taxas, que nascem em razão de uma atividade estatal e por isso mesmo financiam o aparato estatal destinado à prestação de uma serviço – veja-se o exemplo da Taxa Judiciária – o imposto não decorre de uma atividade estatal e por esta razão não pode haver uma norma dando uma destinação específica para o produto de sua arrecadação.
Exatamente por isso é que existe, o princípio da não afetação da receita de impostos positivado no art. 167, IV, da Constituição e muito bem traduzido por RICARDO LOBO TORRES (cfr. Curso de Direito Financeiro e Tributário, Rio de Janeiro: Renovar, 2010, p. 119/120):
“O princípio da não-afetação tem por enunciado a vedação, dirigida ao legislador, de vincular a receita pública a certas despesas. Aparece explicitamente no art. 167, item IV, que, na redação de EC 42/03, proíbe a vinculação de receita de impostos a órgão, fundo ou despesa, ressalvada a repartição do produto da arrecadação dos impostos (arts. 158 e 159), a destinação de recursos para as ações e serviços públicos de saúde (art. 198, §2º), para manutenção e desenvolvimento do ensino (art. 212) e para realização de atividades da administração tributária (art. 37, XXII), a prestação de garantias ou contragarantia à União ou o pagamento de débitos para com esta com a vinculação de receita própria gerada pelos impostos dos Estrados e Municípios (arts. 155 e 156)”.
Como é fácil perceber pela simples leitura do art. 156-B, §2º, III, introduzido pela EC 132/2023, pretende-se dar uma destinação específica ao produto da arrecadação do IBS de forma não autorizada nem excepcionada pelo art. 167, IV, da Constituição.
Em última análise, a Lei nº 8.645/2019 promove verdadeira fraude ao princípio da não afetação da receita de impostos (CF, Arts. 167, IV), pelo subterfúgio do condicionamento da fruição de incentivos fiscais ao indevido “depósito”.
Contudo, em favor da não afetação das receitas de impostos, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal é atenta às tentativas de vinculações, ainda que indiretas ou mascaradas, destacando-se, entre muitos julgados, o Agravo em Recurso Extraordinário nº 665291:
DIREITO TRIBUTÁRIO. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI MUNICIPAL Nº 923/2009. VINCULAÇÃO DE RECEITA DE ICMS A FUNDO. INCONSTITUCIONALIDADE MATERIAL DA LEI EVIDENCIADA. NORMA DE REPRODUÇÃO OBRIGATÓRIA. AFRONTA AO ART. 167, IV, DA CRFB/88, E AO ART. 154, IV, DA CONSTITUIÇÃO ESTADUAL. JURISPRUDÊNCIA PACIFICADA. AÇÃO JULGADA PROCEDENTE. 1. Nos termos da jurisprudência da Corte, é inconstitucional a destinação de receitas de impostos a fundos ou despesas, ante o princípio da não afetação aplicado às receitas provenientes de impostos. 2.Pretensão de, por vias indiretas, utilizar-se dos recursos originados do repasse do ICMS para viabilizar a concessão de incentivos a empresas. 3. Agravo regimental a que se nega provimento (ARE 665291 AgR, Relator(a): Min. ROBERTO BARROSO, Primeira Turma, julgado em 16/02/2016, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-038 DIVULG 29-02-2016 PUBLIC 01-03-2016).
Também é bom lembrar que esta destinação específica impede a exigência do imposto e não se restringe aos aspectos financeiros do que arrecadado, como já decidiu o Supremo Tribunal Federal, desde há muito, no julgamento que concluiu pela inconstitucionalidade da norma paulista que deu destinação específica à parcela do ICMS (RE 183.906, RTJ 167, p. 287/295)[4].
Por mais paradoxal que possa perceber, o Comitê Gestor do IBS pode ter sua existência comprometida e ainda inviabilizar a própria cobrança do imposto.
[1] Direito Constitucional e Tributário. Ação Direta de Inconstitucionalidade de Emenda Constitucional e de Lei Complementar. I.P.M.F. Imposto Provisório sobre a Movimentação ou a Transmissão de Valores e de Créditos e Direitos de Natureza Financeira – I.P.M.F. Artigos 5., par. 2., 60, par. 4., incisos I e IV, 150, incisos III, “b”, e VI, “a”, “b”, “c” e “d”, da Constituição Federal. 1. Uma Emenda Constitucional, emanada, portanto, de Constituinte derivada, incidindo em violação a Constituição originaria, pode ser declarada inconstitucional, pelo Supremo Tribunal Federal, cuja função precípua e de guarda da Constituição (art. 102, I, “a”, da C.F.). 2. A Emenda Constitucional n. 3, de 17.03.1993, que, no art. 2º., autorizou a União a instituir o I.P.M.F., incidiu em vício de inconstitucionalidade, ao dispor, no parágrafo 2º desse dispositivo, que, quanto a tal tributo, não se aplica “o art. 150, III, “b” e VI”, da Constituição, porque, desse modo, violou os seguintes princípios e normas imutáveis (somente eles, não outros): 1. – o princípio da anterioridade, que é garantia individual do contribuinte (art. 5., par. 2., art. 60, par. 4., inciso IV e art. 150, III, “b” da Constituição); 2. – o princípio da imunidade tributária recíproca (que veda a União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios a instituição de impostos sobre o patrimônio, rendas ou serviços uns dos outros) e que é garantia da Federação (art. 60, par. 4., inciso I, e art. 150, VI, “a”, da C.F.); 3. – a norma que, estabelecendo outras imunidades impede a criação de impostos (art. 150, III) sobre: “b”): templos de qualquer culto; “c”): patrimônio, renda ou serviços dos partidos políticos, inclusive suas fundações, das entidades sindicais dos trabalhadores, das instituições de educação e de assistência social, sem fins lucrativos, atendidos os requisitos da lei; e “d”): livros, jornais, periódicos e o papel destinado à sua impressão; 3. Em consequência, é inconstitucional, também, a Lei Complementar n. 77, de 13.07.1993, sem redução de textos, nos pontos em que determinou a incidência do tributo no mesmo ano (art. 28) e deixou de reconhecer as imunidades previstas no art. 150, VI, “a”, “b”, “c” e “d” da C.F. (arts. 3., 4. e 8. do mesmo diploma, L.C. n. 77/93). 4. Ação Direta de Inconstitucionalidade julgada procedente, em parte, para tais fins, por maioria, nos termos do voto do Relator, mantida, com relação a todos os contribuintes, em caráter definitivo, a medida cautelar, que suspendera a cobrança do tributo no ano de 1993.
(ADI 939, Relator(a): SYDNEY SANCHES, Tribunal Pleno, julgado em 15-12-1993, DJ 18-03-1994 PP-05165 EMENT VOL-01737-02 PP-00160 RTJ VOL-00151-03 PP-00755)
[2] Art. 167. São vedados:
IV – a vinculação de receita de impostos a órgão, fundo ou despesa, ressalvadas a repartição do produto da arrecadação dos impostos a que se referem os arts. 158 e 159, a destinação de recursos para as ações e serviços públicos de saúde, para manutenção e desenvolvimento do ensino e para realização de atividades da administração tributária, como determinado, respectivamente, pelos arts. 198, § 2º, 212 e 37, XXII, e a prestação de garantias às operações de crédito por antecipação de receita, previstas no art. 165, § 8º, bem como o disposto no § 4º deste artigo;
[3] Art. 16. Imposto é o tributo cuja obrigação tem por fato gerador uma situação independente de qualquer atividade estatal específica, relativa ao contribuinte.
[4] IMPOSTO – VINCULAÇÃO A ÓRGÃO, FUNDO OU DESPESA. A teor do disposto no inciso IV do artigo 167 da Constituição Federal, é vedado vincular receita de impostos a órgão, fundo ou despesa. A regra apanha situação concreta em que lei local implicou majoração do ICMS, destinando-se o percentual acrescido a um certo propósito – aumento de capital de caixa econômica, para financiamento de programa habitacional. Inconstitucionalidade dos artigos 3º, 4º, 5º, 6º, 7º, 8º e 9º da Lei nº 6.556, de 30 de novembro de 1989, do Estado de São Paulo. (RE 183906, Relator(a): MARCO AURÉLIO, Tribunal Pleno, julgado em 18-09-1997, DJ 30-04-1998 PP-00018 EMENT VOL-01908-03 PP-00463 RTJ VOL-00167-01 PP-00287)