ARTIGO DA SEMANA –  Recurso ao SEFAZ/RJ no processo administrativo fiscal estadual

João Luís de Souza Pereira. Advogado. Mestre em Direito. Membro da Comissão de Direito Financeiro e Tributário do IAB. Professor convidado das pós-graduações da FGV/Direito Rio e do IAG/PUC-Rio.

O artigo 266[1], II, do Código Tributário Estadual do Rio de Janeiro, prevê o cabimento de um recurso exclusivo da Representação da Fazenda ao titular da pasta quando a decisão de Câmara, ou a decisão acordada por menos de ¾ (três quartos) do Conselho Pleno, desfavorável à Fazenda, for contrária à legislação tributária ou à evidência da prova constante no processo, e não couber o recurso de divergência de que trata o art. 266, I.

Trata-se de recurso sujeito a muitas críticas e não é para menos…

A simples existência de um recurso exclusivo de uma das partes, por si só, já seria motivo para a revogação do dispositivo. Num processo administrativo em que deve prevalecer o contraditório e a ampla defesa, é inconcebível que uma das partes entre na arena com mais munição, comprometendo a paridade de armas muito bem explicada por ALBERTO XAVIER[2]:

“O princípio do contraditório encontra-se relacionado com o princípio da ampla defesa por um vínculo instrumental: enquanto o princípio da ampla defesa  afirma a existência de um direito de audiência do particular, o princípio do contraditório reporta-se ao modo do seu exercício. Esse modo de exercício, por sua vez, caracteriza-se por dois traços distintos: a paridade das posições jurídicas das partes no procedimento ou processo, de tal modo que ambas tenham  a possibilidade de influir, por igual, na decisão (‘ princípio da igualdade de armas’); e o caráter dialético dos métodos de investigação e de tomada de decisão, de tal modo que a cada uma das partes seja dada a oportunidade de contradizer os fatos alegados e as provas apresentadas pela outra”.

Também não se pode esquecer que os recursos hierárquicos, que submetem decisões de órgãos colegiados e paritários ao crivo do titular da Pasta, não podem servir de substitutos dos recursos interpostos ao longo de todo um processo administrativo, sob pena de acarretar o total esvaziamento dos órgãos estruturados para apreciação do mérito dos recursos administrativos fiscais. 

Sobre o tema, convém trazer a observação de JOSÉ EDUARDO SOARES DE MELO[3]:

Acresce ressaltar que o recurso hierárquico – inconstitucional pela inexistência de contraditório – implica em total desprestígio aos órgãos julgadores, que, além de estarem munidos de competência específica para decidir as controvérsias tributárias e encontrarem-se tecnicamente aparelhados para a prática de atos dessa natureza, ficariam totalmente desprovidos de autoridade, sujeitos a total subordinação”.

Esta também é a percepção da jurisprudência, conforme se observa de recente acórdão do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro:

MANDADO DE SEGURANÇA. PROCESSO ADMINISTRATIVO TRIBUTÁRIO. CONSELHO DE CONTRIBUINTES. DECISÃO NÃO UNÂNIME FAVORÁVEL AO CONTRIBUINTE. RECURSO HIERÁRQUICO AO SECRETÁRIO DE FAZENDA. ATO COATOR: PROVIMENTO DO RECURSO HIERÁRQUICO. DUVIDOSA CONSTITUCIONALIDADE. ARGUIÇÃO INCIDENTAL. PRINCÍPIO DO FULL BENCH. 

1. Repelem-se as preliminares de ilegitimidade passiva do Secretário de Estado de Fazenda –  pois dele promanou a decisão administrativa apontada como ato coator -; de falta de interesse de agir e ausência de prova pré-constituída –  pois se confundem com o mérito – e de inadequação da via para impugnar lei em tese ? pois se admite, no mandamus, a arguição incidenter tantum de inconstitucionalidade de norma legal aplicada a um conflito em concreto, o que não constitui impugnação de lei em tese, mas causa de pedir da pretensão mandamental contra ato ofensivo a direito.

2. Não vingam as alegações de descabimento nem de intempestividade do recurso hierárquico, ante a prova dos autos.

3. A fundamentação per relationem, conquanto frustrante, não inquina de nulidade o ato administrativo decisório, visto que admitida pela Corte Suprema tal modalidade de sucinta motivação, até mesmo para as decisões judiciais.

4. Parece conspirar contra o sistema de garantias constitucionais do devido processo legal administrativo – do qual decorrem, entre outros, o princípio da isonomia processual e a garantia de julgamento por autoridade o mais isenta possível – a previsão contida no art. 266, II, do Código Tributário Estadual, no que permite que a autoridade monocrática do Secretário de Estado de Fazenda reverta decisões proferidas por expressiva maioria dos membros do Conselho de Contribuintes (até 11 votos contra 5).

Afigura-se desproporcional e irrazoável, depois de o legislador prever a instituição de um colegiado administrativo recursal paritário, contando com igual número de representantes da Fazenda e dos contribuintes (arts. 256 e 258 do CTE), todos investidos de mandato bienal (art. 260) e “possuidores de conhecimento da Legislação Tributária” (art. 258), admitir possa a decisão plenária do Conselho de Contribuintes ser desfeita por decisão monocrática do Chefe da Pasta incumbida de zelar pela arrecadação estatal – e, portanto, pouco vocacionado à isenção e à tecnicidade que se pode e deve esperar do colegiado.

Não parece convir ao princípio republicano, à isonomia processual e à garantia do devido processo legal, permitir que uma decisão, a fortiori baseada num juízo político de conveniência e oportunidade, decida em última instância um contencioso administrativo-tributário, fazendo prevalecer o interesse secundário da arrecadação do erário por sobre o interesse primário da tecnicidade do império da lei.

Constitui norma geral de exegese da lei tributária que, presente dúvida na definição legal de infração ou na cominação de penalidades, se adote a interpretação mais favorável ao acusado, estendendo-se ao contribuinte o princípio do in dubio pro reo (art. 112 do CTN).

Esse forte panorama garantístico em sede de direito tributário constitucional serve de pano de fundo às discussões, perante o Supremo Tribunal Federal, ao derredor da (in)constitucionalidade do voto de qualidade no âmbito do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais – Carf (ADI’s nº 6399, 6403, 6415, 7347 e 7353). Discute-se a proporcionalidade da prerrogativa do desempate em mãos de um representante fazendário, na presidência do colegiado competente.

Tanto mais grave é o recurso hierárquico, que transfere, não a um membro do Conselho de Contribuintes, mas ao próprio Secretário de Fazenda, o poder não de simples desempate, mas de fazer tabula rasa de qualquer maioria pró-contribuinte que não alce à larga proporção de três quartos dos membros do Conselho Pleno.

5. SUSCITAÇÃO DE INCIDENTE DE ARGUIÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE DO ART. 266, INCISO II, DO CÓDIGO TRIBUTÁRIO ESTADUAL, perante as garantias constitucionais da isonomia, do princípio republicano, da razoabilidade e do devido processo legal.

6. DESPROVIMENTO DO AGRAVO INTERNO para confirmar a higidez da liminar até o julgamento definitivo.               

(0076041-37.2022.8.19.0000 – MANDADO DE SEGURANÇA. Des(a). MARCOS ALCINO DE AZEVEDO TORRES – Julgamento: 13/09/2023 – DECIMA PRIMEIRA CAMARA DE DIREITO PRIVADO (ANTIGA 27ª CÂMARA CÍVEL).

Sempre ciente de que o processo administrativo fiscal é meio de controle da legalidade do lançamento tributário, o Superior Tribunal de Justiça tem decidido que o recurso hierárquico somente terá cabimento nos casos em que a decisão do órgão a quo contiver alguma nulidade, passível de reparação pela via do controle do órgão hierarquicamente superior, como se depreende da manifestação do MINISTRO HUMBERTO GOMES DE BARROS, relator do Mandado de Segurança n° 8.810-DF, julgado pela Primeira Seção do Tribunal em 13 de agosto de 2003, em acórdão publicado no Diário da Justiça de 06 de outubro de 2003:

“o Estado brasileiro submeteu-se a um procedimento destinado à identificação das obrigações e dos respectivos responsáveis. Esse procedimento, cuja instância máxima era o Ministro da Fazenda, hoje se exaure na Câmara Superior de Recursos Fiscais.

O Senhor Ministro deu curso ao apelo, invocando seu poder de controle sobre os conselhos de contribuintes. Ora, a necessidade de controlar pressupõe algo descontrolado. Na hipótese, haveria necessidade de controle, se o conselho de contribuintes houvesse atuado fora do âmbito de sua competência ou sem observar os pressupostos recursais. Nessas circunstâncias, a decisão do conselho seria nula. Bem por isso, o Ministro poderia intervir, para obviar a nulidade.

Na lide objeto deste processo, não se alega que o conselho ultrapassou o âmbito de sua competência ou desconheceu os pressupostos processuais. Simplesmente, afirma-se que o colegiado errou na aplicação da lei”.

Analisando especificamente o caso da legislação processual tributária fluminense, o Tribunal da Cidadania decidiu que recurso hierárquico não é o meio hábil para reforma de decisão de órgão administrativo colegiado por mero deleite ou capricho da autoridade superior, conforme se lê da ementa do acórdão relatado pela MINISTRA ELIANA CALMON:

TRIBUTÁRIO – PROCESSO ADMINISTRATIVO – TRIBUTÁRIO – RECURSO DE OFÍCIO: FINALIDADE – REVISÃO ADMINISTRATIVA DA DECISÃO DO CONSELHO DE CONTRIBUINTES.

1. O Código Tributário do Estado do Rio de janeiro permitia o chamado recurso hierárquico (art. 266, § 2º da Lei 3.188//99), plenamente aceito pelo STJ (precedente da 1a. Seção, relator Min. Humberto Gomes de Barros) 2. O recurso hierárquico permite ao Secretário da Fazenda rever a decisão do Conselho de Contribuintes e impugná-la se eivada de vícios ou nulidades patentes e devidamente identificadas.

3. O recurso hierárquico não rende ensejo a que a autoridade administrativa, por deleite ou por mero capricho, venha a desfazer a decisão do colegiado.

4. Recurso ordinário provido.

(RMS n. 16.902/RJ, relatora Ministra Eliana Calmon, Segunda Turma, julgado em 19/8/2004, DJ de 4/10/2004, p. 220.)

Ainda que superada a evidente violação à paridade de armas, é fora de dúvida que o recurso da RGF ao SEFAZ/RJ deverá apontar, necessariamente, a existência de vício ou nulidade na decisão recorrida, não se restringindo à mera irresignação quanto ao acórdão do órgão colegiado. 

Inexistindo vício de nulidade no acórdão recorrido, o recurso ao SEFAZ/RJ não deve ser conhecido, visto não ter sido preenchido pressuposto básico de recorribilidade, na esteira das decisões proferidas pelo STJ. 

Como o art. 266, II, do CTE, dispõe que o recurso somente terá cabimento nos casos de decisão desfavorável ao fisco “contrária à legislação ou à evidência da prova…”, é dever da recorrente apontar que ponto do acórdão recorrido contrariou a legislação ou a prova produzida ao longo da instrução.

Se a decisão recorrida observou precedente qualificado, é óbvio que não houve contrariedade à lei, muito pelo contrário. Consequentemente, o recurso ao SEFAZ só deve ser admitido nos casos em que a norma em discussão ainda não tenha recebido interpretação pacificada pelos Tribunais Superiores, impondo-se ao recorrente o ônus de apontar o distinguishing em situação diversa.

Havendo recurso por eventual contrariedade à prova, o dever do recorrente é indicar a omissão do julgado por não ter se pronunciado sobre determinado elemento de convicção presente nos autos, mas nunca com o objetivo de ser feito novo juízo de valor, desta vez por julgamento monocrático e parcial. 

O recurso privativo da Representação da Fazenda ao SEFAZ, aparentemente, está com dias contados, salvo alteração de última hora no Projeto de Lei Complementar nº 108/2024… 


[1] Art. 266. Das decisões do Conselho cabe recurso:

 para o Conselho Pleno, quando a decisão de Câmara não for unânime ou divergir de decisão proferida por outra Câmara ou pelo Conselho Pleno, relativamente ao direito em tese.
II  para o Secretário de Estado de Fazenda, quando a decisão de Câmara, ou a decisão acordada por menos de ¾ (três quartos) do Conselho Pleno, desfavorável à Fazenda, for contrária à legislação tributária ou à evidência da prova constante no processo, e não couber o recurso previsto no inciso anterior, mantido o princípio do contraditório.

[2] Do Lançamento – Teoria Geral do Ato do Procedimento e do Processo Tributário, Forense, 2ª edição, 1997, pág. 163

[3] Composição Paritária dos Órgãos Julgadores Administrativos. In: ROCHA, Valdir de Oliveira – Coord. Processo Administrativo Fiscal. São Paulo: Dialética, 2000, 5° vol, p. 100

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