ARTIGO DA SEMANA – Decadência, vício formal e novo lançamento tributário

João Luís de Souza Pereira. Advogado. Mestre em Direito. Professor convidado da pós-graduação da FGV/Direito Rio e do IAG/PUC-Rio.

O artigo 173, II, do CTN, confere uma vantagem uma fisco: a possibilidade de refazimento do lançamento, anulado por vício formal, no prazo de cinco, contados da decisão que declarou a existência do vício, anulando o lançamento o original.

Vício formal, como o próprio nome diz, é aquele que afeta os requisitos formais de validade do lançamento.

No processo administrativo fiscal da União, os requisitos de validade da notificação de lançamento e do auto de infração estão descritos nos artigos 10 e 11, do Decreto nº 70.235/72[1]

No caso da legislação tributária estadual do Rio de Janeiro, os requisitos formais de um lançamento são aqueles apontados no art. 221, do CTE e no art. 74, do Decreto nº 2.473/79[2].

Portanto, a falta de observância de quaisquer dos requisitos de validade de um lançamento pontualmente descritos nas normas reguladoras do processo administrativo fiscal enseja o reconhecimento do vício formal, autorizando a declaração de nulidade do lançamento.

Reconhecida a nulidade do lançamento original por vício formal, aplica-se o art. 173, II, do CTN e reabre-se à Fazenda Pública o prazo para a realização de outro lançamento em boa e devida forma, com o exclusivo propósito de sanar o vício formal do ato administrativo anterior.

Com efeito, o novo lançamento, oriundo da declaração de nulidade por vício formal de lançamento anterior, deve se restringir à correção deste vício, sendo vedado à autoridade competente inovar o lançamento naquilo que seja coisa diversa do vício constatado.

A propósito, convém lembrar a lição de LUCIANO DA SILVA AMARO[3], severo crítico do dispositivo legal em apreço:  

Cuida o art. 173, II, de situação particular; trata-se de hipótese em que tenha sido efetuado um lançamento com vício de forma, e este venha a ser “anulado” (ou melhor, declarado nulo, se tivermos presente que o vício de forma é causa de nulidade, e não de mera anulabilidade) por decisão (administrativa ou judicial) definitiva. Nesse caso, a autoridade administrativa tem novo prazo de cinco anos, contados da data em que se torne definitiva a referida decisão, para efetuar novo lançamento de forma correta.

Portanto, cabe à Fazenda Pública, no prazo de cinco anos, contados da decisão que reconheceu o vício formal, corrigir o erro, mantendo a, digamos, parte boa do auto de infração anterior.

Esta é a conclusão a doutrina, bastando trazer a observação de HUGO DE BRITO MACHADO[4] em seus comentários ao art. 173, II, do CTN:

O prazo de cinco anos de que dispõe a Fazenda Pública para realizar o que podemos denominar de lançamento substitutivo destina-se apenas à sanação da ilegalidade da qual decorreu a nulidade do lançamento anterior. De nenhum modo se pode entender que nesse prazo tem a Fazenda Pública restabelecido o seu direito de examinar amplamente tudo o que disser respeito ao sujeito passivo daquele crédito tributário cuja constituição resultou nula por vício formal.

A Administração Tributária Federal também já se debruçou sobre o tema, conforme se lê de acórdão do antigo Primeiro Conselho de Contribuintes do Ministério da Fazenda assim ementado:

 “Pelo disposto no inc. II, do art. 173, quando ocorre anulação, por vício formal, é dado ao fisco  mais 5 anos da data em que se tornar definitiva a decisão que houver anulado, por vício formal, o lançamento anteriormente efetuado, para realizar NOVO LANÇAMENTO. Só que o sujeito ativo deve se limitar a corrigir os vícios formais e manter o valor  originariamente exigido, não sendo permitido suplementar…” (Ac. 105-13.033. 1º CCMF. DOU 27.03.2000)

No mesmo sentido é a jurisprudência do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro:

Note-se que a retificação do auto não implicou em alteração dos fundamentos da autuação, descritos no campo “relato”, nem acarretou qualquer mudança nos valores apurados, apenas indicando de forma completa os dispositivos legais que incidiam no caso.” Apelação Cível nº0021565-61.2013.8.19.0001 (TJRJ, Décima Nona Câmara Cível).

Como se vê, a preservação do lançamento anterior e sua modificação apenas naquilo que inobservou os requisitos formais de validade compreendem a condição sine qua non para aplicação do art. 173, II do CTN.

Consequentemente, se o fisco, após a declaração de nulidade do lançamento, decidir lavrar novo auto de infração ou notificação de lançamento, indo além da correção do vício que ensejou a nulidade, não poderá se socorrer do artigo 173, II, do CTN.

Nesta hipótese a realização do lançamento inovador deverá observar a regra do prazo decadencial do art. 150, §4º ou do a regra geral inserta no inciso I do art. 173, conforme o caso.

A esta conclusão também chegou o Plenário do Conselho de Contribuintes do Estado do Rio de Janeiro:

PREJUDICIAL DE MÉRITO. DECADÊNCIA DO CRÉDITO TRIBUTÁRIO RECLAMADO NO LANÇAMENTO. Decorridos mais de 05 (cinco) anos entre os supostos fatos geradores e a intimação do novo lançamento efetivamente modificado, impõe-se a decretação da decadência do direito da Fazenda Pública constituir o crédito tributário. PRELIMINARACOLHIDA.

(Recursos nºs 71.027 e 71.028, Acórdãos nºs 9.619 e 9.620. DOERJ de 12/06/2019)

É bom lembrar que a possibilidade de realização do novo lançamento, nos termos do art. 173, I, do CTN, importa em verdadeira interrupção do prazo decadencial, conforme entendimento da doutrina, bastando citar, por todos, a Min. REGINA HELENA COSTA[5]:

Essa norma aponta outro relevante aspecto de distinção entre o regime de decadência disciplinado na lei civil e o estabelecido na lei tributária. No direito privado, “salvo disposição legal em contrário, não se aplicam à decadência as normas que impedem, suspendem ou interrompem a prescrição” (art. 207, CC). Consoante se extrai da norma do art. 173, II, CTN, diversamente, o prazo decadencial é passível de interrupção, visto que a decisão anulatória do lançamento anteriormente efetuado faz com que recomece a fluir o prazo decadencial.

Mas nunca se esqueça: a possibilidade de reabertura do prazo para refazimento do lançamento anulado por vício formal (art. 173, II, do CTN) tem como limite a correção do vício, vedada qualquer alteração no lançamento anterior.


[1] Art. 10. O auto de infração será lavrado por servidor competente, no local da verificação da falta, e conterá obrigatoriamente:

I – a qualificação do autuado;

II – o local, a data e a hora da lavratura;

III – a descrição do fato;

IV – a disposição legal infringida e a penalidade aplicável;

V – a determinação da exigência e a intimação para cumpri-la ou impugná-la no prazo de trinta dias;

VI – a assinatura do autuante e a indicação de seu cargo ou função e o número de matrícula.

Art. 11. A notificação de lançamento será expedida pelo órgão que administra o tributo e conterá obrigatoriamente:

I – a qualificação do notificado;

II – o valor do crédito tributário e o prazo para recolhimento ou impugnação;

III – a disposição legal infringida, se for o caso;

IV – a assinatura do chefe do órgão expedidor ou de outro servidor autorizado e a indicação de seu cargo ou função e o número de matrícula.

Parágrafo único. Prescinde de assinatura a notificação de lançamento emitida por processo eletrônico.

[2] Art. 221. O auto de infração e a nota de lançamento conterão:

I – a qualificação do autuado ou intimado;

II – o local e data da lavratura;

III – a descrição circunstanciada do fato punível ou dos fatos concretos que justifiquem a exigência do tributo;

IV – a capitulação do fato, mediante citação do dispositivo legal infringido e do que lhe comine a sanção ou do que justifique a exigência do tributo;

V – o valor do tributo e/ou das multas exigidos;

VI – a notificação para o recolhimento do débito no prazo de 30 (trinta) dias, com a indicação de que no mesmo prazo poderá ser apresentada a impugnação;

VII – a indicação da repartição onde será instaurado o processo e daquela em que a impugnação poderá ser apresentada;

VIII – a assinatura do autuante e a indicação de seu cargo ou função e o número de matrícula.

Parágrafo único – Prescindem de assinatura o auto de infração e a nota de lançamento emitidos por processo eletrônico.

Art. 74. O auto de infração conterá os seguintes elementos:

I – nome, razão social ou denominação do autuado, a atividade profissional ou econômica que exerça, seu endereço e números de inscrição no Cadastro Fiscal do Estado e no Cadastro Fiscal Federal;

II – o local, a data e a hora da lavratura;

III – a descrição circunstanciada do fato punível ou dos fatos concretos que justifiquem a exigência do tributo;

IV – o dispositivo legal infringido e o que lhe comine a sanção ou justifique a exigência do cumprimento da obrigação;

V – o valor do tributo e/ou das multas exigidas;

VI – a indicação da repartição em que correrá o processo, com o seu endereço;

VII – a intimação para efetivação do pagamento ou apresentação de defesa com menção dos prazos correspondentes bem como da incidência da taxa a que se refere o item 11, A, do inciso III, do Decreto Lei n.º 5/75, com a redação dada pela Lei n.º 2.879/97 e eventuais benefícios para o sujeito passivo.

VIII – a assinatura do autuante e a indicação do seu nome por extenso, cargo ou função e número da matrícula, ressalvada a hipótese de emissão por processo eletrônico, a carimbo ou por outra forma legível.

[3] in Direito Tributário Brasileiro. 14ª ed., São Paulo: Saraiva, 2008

[4] in Comentários ao Código Tributário Nacional. São Paulo: Editora Atlas, 2005, p. 544

[5] in Código Tributário Nacional Comentado – Em sua Moldura Constitucional. Rio de Janeiro: Grupo GEN; 2020.

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