PRINCÍPIO DA SELETIVIDADE DO ICMS E A LEI COMPLEMENTAR Nº 194/2022

Princípio da seletividade do ICMS e a Lei Complementar nº 194/2022

Por Deonísio Koch

Foi sancionado pelo presidente da República a Lei Complementar nº 194/2022, que alterou o Código Tributário Nacional, Lei nº 5.172/66, bem como as leis complementares de nºs  87/96 [1], e 192/22 [2], atribuindo a condição de essencialidade para o consumo humano dos combustíveis, gás natural, energia elétrica, prestação de serviços de comunicação e de transporte coletivo, para efeito de aplicação do princípio constitucional da seletividade do imposto, segundo o critério estabelecido pelo constituinte originário na abordagem desse princípio. Foram vetados dispositivos relacionados à proposta de indenizações da União aos estados e Distrito Federal para compensação da perda de arrecadação por conta dessa lei complementar.

A seletividade é um preceito programático inserto na Constituição [3] que visa uma melhor distribuição da carga tributária segundo o critério da essencialidade do produto ou serviço ao consumo humano, amenizando o ônus tributário sobre os produtos e serviços essenciais e onerando mais aqueles de consumo supérfluo, que atendem as demandas de luxo ou de ostentação, ou até mesmo os que revelam externalidades negativas, em razão do potencial dano que poderão causar à saúde. Nas palavras de Aliomar Baleeiro, a essencialidade “refere-se à adequação do produto à vida do maior número dos habitantes do país” [4].

Evidentemente, essa essencialidade está conectada à popularização do consumo do produto ou serviço, recomendando uma maior tributação aos produtos normalmente consumidos por aqueles que detêm um maior poder aquisitivo, para compensar a incidência menor sobre os produtos essenciais à vida humana.

Essa intervenção legislativa foi impulsionada pela decisão do STF, no Recurso Extraordinário nº 714.139/SC, em rito de repercussão geral, publicada em 15 de março de 2022, Tema 745, que foi assim ementada:

“Adotada, pelo legislador estadual, a técnica da seletividade em relação ao Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS), discrepam do figurino constitucional alíquotas sobre as operações de energia elétrica e serviços de telecomunicação em patamar superior ao das operações em geral, considerada a essencialidade dos bens e serviços”.

Alerta-se que a decisão foi modulada para produzir efeitos somente a partir de 2024, ressalvando-se as ações ajuizadas até a data do início do julgamento do mérito, que ocorreu em 05/02/2021.

Ainda que a decisão retrocitada se limite às operações de energia elétrica e às prestações de serviços de telecomunicação, o legislador complementar avançou nesse ponto, atribuindo a condição de essencialidade também para combustíveis, gás natural e serviços de transporte coletivo, prevendo demandas judiciais futuras sobre essas operações e prestações com os mesmos fundamentos que motivaram a decisão mencionada. Outro avanço da lei é no aspecto temporal com relação à decisão. Enquanto o Judiciário modulou a decisão para 2024, o que permitiria os entes tributantes a se adequarem a essa nova realidade marcada pela perda de importante parcela da arrecadação do ICMS, a lei mencionada entrou em vigor na data de sua publicação (26/03/2022), forçando os estados e o Distrito Federal a adotarem as alíquotas gerais para os produtos e serviços enumerados pela lei.

Cumpre lembrar que alguns estados ajuizaram a ADI 7195 contra a LC 194/22, alegando, intervencionismo indevida da União na competência dos estrados e Distrito Federal, concessão indevida de desoneração tributária heterônoma, violando o disposto no artigo 151, III, da CF, entre outras razões.

Não nos parece que os argumentos acima tenham densidade jurídica suficiente para invalidar a referida lei complementar. Na verdade, essa lei complementar opera no plano das normas gerais, nos termos do artigo 146, III, da Constituição Federal, considerando que a lista de matérias fixada nesse inciso não é taxativa, podendo incluir novos conteúdos, como é o caso do reconhecimento da essencialidade para determinados produtos e serviços, vinculando os estados e o Distrito Federal, nos termos do artigo 24, § 4º, da CF/88.

Pela mesma razão acima exposta, o conteúdo normativo da lei complementar também não se aproxima de qualquer forma de desoneração heterônoma, vidada pelo artigo 151, III, da CF/88.

Todavia, o que se percebe é que a resistência dos entes tributantes contra essa nova orientação normativa tem-se atenuado com o passar do tempo e cada vez mais estados estão reduzindo as suas alíquotas sobre os produtos e serviços mencionados na referida lei complementar, com repercussão nos seus preços ao consumidor final.

Mas o que se pretende enfocar nesse artigo não é questão ligada à constitucionalidade da LC 194/22, mas as razões históricas que resultaram em toda essa discussão acerca da seletividade, com o acionamento do Poder Judiciário para o julgamento de um leading case, bem como dar motivação parlamentar para uma definição da essencialidade relacionada aos produtos e serviços especificados.

A questão toda é que alguns estados se valeram da seletividade para simplesmente incrementar a arrecadação do ICMS, sem observar os critérios definidores desse princípio. Isso ocorreu com a fixação de alíquota majorada para as operações com energia elétrica, combustíveis e prestação de serviços de comunicação, para citar somente algumas operações e prestações de serviços, sob o argumento de se tratar de produtos e serviços não essenciais ou indispensáveis ao consumo humano. Esses produtos e serviços, além de fácil arrecadação, representam uma elevada base tributária; qualquer majoração nas suas alíquotas representa um importante incremento da arrecadação.

É claro que a análise da condição de essencialidade deve levar em consideração o uso ou o destino dos produtos ou serviços, podendo ainda ser regrada com uma dose de subjetivismo em algumas situações específicas. Assim, por exemplo, uma prestação de serviços de comunicação pode não ser essencial numa relação comunicativa entre pessoas em conversa de amenidades, mas a essencialidade é inquestionável nas atividades empresariais, no setor de venda, por exemplo. Já com relação à energia elétrica é difícil reconhecer a sua condição supérflua em qualquer forma de uso, seja no consumo doméstico ou comercial. Energia elétrica é produto essencial em todas as atividades humanas, o que jamais teria justificado a aplicação de alíquota majorada sustentado no princípio da seletividade. Nem mesmo a tarifa social, adotada em alguns estados para o consumo doméstico reduzido, autorizaria essa majoração de alíquota para o consumo transcendente deste marcador de tarifa social e, principalmente, para a energia usada nas atividades industriais e comerciais.

Os combustíveis, de maneira em geral, são produtos de interesse estratégico nacional e o seu uso não tem nenhuma aproximação com a condição de supérflua. Se uma certa quantidade de combustível é consumida em atividade não essencial — combustíveis usados em automóveis particulares em passeios, por exemplo — isso não permite generalizar esse produto como não essencial para justificar uma alíquota majorada.

Guarda-se a expectativa de que o posicionamento do STF na mencionada decisão, bem como a lei complementar nº 194/22, que atribui objetivamente a condição de essencialidade para produtos e serviços que menciona, a seletividade do imposto passe a ser observada não só para  os produtos mencionados na decisão e na lei, mas também para outros  produtos e serviços, segundo o critério constitucionalmente estabelecido, para que esse preceito constitucional possa atender aos objetivos sociais, e não se transformar numa  falaciosa licença para o aumento da carga tributária.

[1] A LC 87/96 estabelece as regras estruturais do ICMS para todo o território nacional, cabendo aos Estados e o Distrito Federal instituir o imposto seguindo esse regramento básico.

[2] Coube à LC 122/22 definir os combustíveis sobre os quais deve incidir uma única vez o ICMS, nos termos do artigo 155, §2º, XII, “h”, da CF/88.

[3] O ICMS poderá ser seletivo, em função da essencialidade das mercadorias e dos serviços, segundo o artigo 155, §2º, III, da Constituição Federal.

[4] BALEEIRO, Aliomar. Direito Tributário Brasileiro. 10 ed., Rio de Janeiro: Forense. 1987, p. 206.

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