João Luís de Souza Pereira. Advogado. Mestre em Direito. Professor convidado das pós-graduações da FGV/Direito Rio e do IAG/PUC-Rio.
A Medida Provisória nº 1.202/2023, publicada nesta data, é parte do esforço do governo federal para alcançar a meta de déficit zero em 2024.
A MP 1.202/2023 traz inovações à sistemática de pagamento da contribuição previdenciária patronal, à compensação tributária e extingue o as reduções de alíquota no âmbito do PERSE.
Quanto ao pagamento da contribuição previdenciária patronal (art. 195, I, “a”, da CF e art. 22, I, da Lei nº 8.212/91), vislumbra-se aparente violação à Constituição.
Neste caso, a MP 1.202/2023 nada mais fez do que extinguir a contribuição previdenciária sobre a receita bruta, forma de tributação conhecida como desoneração da folha de salários.
A desoneração da folha de salários, medida que deveria ser a regra, era aplicável apenas a determinados setores da atividade econômica tidos como utilizadores intensivos de mão-de-obra e/ou com papel de destaque em cadeias produtivas.
Esta verdadeira conquista do setor produtivo foi recentemente prorrogada pelo Congresso Nacional, vetada pelo Presidente da República e teve o veto derrubado pelo Congresso.
Recado mais claro, impossível: os deputados, representantes do povo, e os Senadores, representantes dos Estados, são claramente a favor da desoneração da folha de salários!
Portanto, a edição de Medida Provisória para revogar matéria duplamente aprovada pelo Congresso representa um desvirtuamento da vontade popular e uma ruptura à harmonia dos poderes e por isso mesmo viola o art. 1º, parágrafo único e o art. 2º da Constituição.
Em relação às restrições à compensação tributária, a MP 1.202/2023 não poderia ser mais inadequada.
Durante um longo período, os contribuintes que tinham efetuado pagamento de tributos a maior ou indevidamente somente poderiam obter o ressarcimento através de pedidos administrativos ou judiciais de restituição. Estas modalidades de ressarcimento dos pagamentos indevidos ou maior possuem uma série de inconvenientes que vão desde as limitações nos índices de atualização monetária até o recebimento através de precatórios judiciais.
Surgindo como uma alternativa viável a estas situações desconfortáveis, a Lei nº 8.383/91 (e suas alterações) regulamentou inicialmente o instituto da compensação tributária, previsto nos artigos 156, II, 170 e 170-A, do CTN. Posteriormente, a Lei nº 9.129/95 deu nova redação ao artigo 89, da Lei nº 8.212/91, disciplinando a compensação das contribuições previdenciárias. Finalmente, o artigo 74, da Lei nº 9.430/96 (e suas alterações) instituiu uma nova modalidade de compensação, restrita aos tributos administrados pela então Secretaria da Receita Federal.
A compensação tributária, à evidência, somente será cabível quando o contribuinte for, ao mesmo tempo, credor e devedor da Fazenda Pública e se justifica pelo fato de não ser razoável que aquele que se encontre nessa situação pague o que deve e pleiteie a restituição do que pagou indevidamente ou a maior. Por isso, não há nada mais razoável do que a lei prever um encontro de contas entre os sujeitos da relação jurídica tributária neste caso.
Limitar o direito à compensação, lamentavelmente, não é novidade. Ao longo do tempo, foram criadas diversas restrições, por normas legais e infralegais, à livre compensação tributária.
Mas também foram introduzidos avanços.
A MP 1.202/2023 retrocede.
A nova norma inclui um artigo 74-A[1] à Lei nº 9.430/96 dispondo que, nos casos de crédito decorrente de decisão judicial transitada em julgado, o Ministro da Fazenda poderá estabelecer limite mensal à compensação.
Já sobre este caput do art. 74-A, há duas observações importantes.
A primeira é que o dispositivo limita-se à compensação de crédito decorrente de decisão judicial transitada em julgado. Logo, as compensações deferidas por medida liminar – agora possíveis a partir do julgamento da ADI 4296 – estão livres desta restrição.
A segunda é que as limitações impostas por ato do Ministro da Fazenda contrariam a reserva legal. De acordo com os artigos 97, V e 170, do Código Tributário Nacional, compensação é matéria que só pode ser disciplinada por norma emanada do Poder Legislativo (lei em sentido formal), sendo óbvia a impossibilidade de delegação da disciplina da matéria ao Ministro da Fazenda (membro do Poder Executivo).
O Art. 74-A, §1º, da Lei nº 9.430/96, introduzido pela MP 1.202/2023, define parâmetros para os limites mensais a serem fixados pelo Ministro da Fazenda.
Neste ponto, deve-se destacar uma possível violação à isonomia, visto que o valor do crédito a compensar não é um critério justo para fazer distinção entre os contribuintes.
Também não se pode perder de vista que o STF já enfrentou a questão da eficácia das normas que criam restrições à compensação tributária.
No julgamento do RE 566.621[2], o Plenário do STF decidiu que a compensação tributária deve ser regida pela norma vigente no momento do ajuizamento da medida judicial.
Logo, as inovações à compensação tributária somente deverão alcançar as medida judiciais ajuizadas a partir de hoje.
[1] “Art. 74-A. A compensação de crédito decorrente de decisão judicial transitada em julgado observará o limite mensal estabelecido em ato do Ministro de Estado da Fazenda.
§ 1º O limite mensal a que se refere o caput:
I – será graduado em função do valor total do crédito decorrente de decisão judicial transitada em julgado;
II – não poderá ser inferior a 1/60 (um sessenta avos) do valor total do crédito decorrente de decisão judicial transitada em julgado, demonstrado e atualizado na data da entrega da primeira declaração de compensação; e
III – não poderá ser estabelecido para crédito decorrente de decisão judicial transitada em julgado cujo valor total seja inferior a R$ 10.000.000,00 (dez milhões de reais).
§ 2º Para fins do disposto neste artigo, a primeira declaração de compensação deverá ser apresentada no prazo de até cinco anos, contado da data do trânsito em julgado da decisão ou da homologação da desistência da execução do título judicial.” (NR)
[2] DIREITO TRIBUTÁRIO – LEI INTERPRETATIVA – APLICAÇÃO RETROATIVA DA LEI COMPLEMENTAR Nº 118/2005 – DESCABIMENTO – VIOLAÇÃO À SEGURANÇA JURÍDICA – NECESSIDADE DE OBSERVÂNCIA DA VACACIO LEGIS – APLICAÇÃO DO PRAZO REDUZIDO PARA REPETIÇÃO OU COMPENSAÇÃO DE INDÉBITOS AOS PROCESSOS AJUIZADOS A PARTIR DE 9 DE JUNHO DE 2005. Quando do advento da LC 118/05, estava consolidada a orientação da Primeira Seção do STJ no sentido de que, para os tributos sujeitos a lançamento por homologação, o prazo para repetição ou compensação de indébito era de 10 anos contados do seu fato gerador, tendo em conta a aplicação combinada dos arts. 150, § 4º, 156, VII, e 168, I, do CTN. A LC 118/05, embora tenha se auto-proclamado interpretativa, implicou inovação normativa, tendo reduzido o prazo de 10 anos contados do fato gerador para 5 anos contados do pagamento indevido. Lei supostamente interpretativa que, em verdade, inova no mundo jurídico deve ser considerada como lei nova. Inocorrência de violação à autonomia e independência dos Poderes, porquanto a lei expressamente interpretativa também se submete, como qualquer outra, ao controle judicial quanto à sua natureza, validade e aplicação. A aplicação retroativa de novo e reduzido prazo para a repetição ou compensação de indébito tributário estipulado por lei nova, fulminando, de imediato, pretensões deduzidas tempestivamente à luz do prazo então aplicável, bem como a aplicação imediata às pretensões pendentes de ajuizamento quando da publicação da lei, sem resguardo de nenhuma regra de transição, implicam ofensa ao princípio da segurança jurídica em seus conteúdos de proteção da confiança e de garantia do acesso à Justiça. Afastando-se as aplicações inconstitucionais e resguardando-se, no mais, a eficácia da norma, permite-se a aplicação do prazo reduzido relativamente às ações ajuizadas após a vacatio legis, conforme entendimento consolidado por esta Corte no enunciado 445 da Súmula do Tribunal. O prazo de vacatio legis de 120 dias permitiu aos contribuintes não apenas que tomassem ciência do novo prazo, mas também que ajuizassem as ações necessárias à tutela dos seus direitos. Inaplicabilidade do art. 2.028 do Código Civil, pois, não havendo lacuna na LC 118/08, que pretendeu a aplicação do novo prazo na maior extensão possível, descabida sua aplicação por analogia. Além disso, não se trata de lei geral, tampouco impede iniciativa legislativa em contrário. Reconhecida a inconstitucionalidade art. 4º, segunda parte, da LC 118/05, considerando-se válida a aplicação do novo prazo de 5 anos tão-somente às ações ajuizadas após o decurso da vacatio legis de 120 dias, ou seja, a partir de 9 de junho de 2005. Aplicação do art. 543-B, § 3º, do CPC aos recursos sobrestados. Recurso extraordinário desprovido.
(STF – RE: 566621 RS, Relator: ELLEN GRACIE, Data de Julgamento: 04/08/2011, Tribunal Pleno, Data de Publicação: 11/10/2011)