ARTIGO DA SEMANA –  As instâncias julgadoras no processo administrativo fiscal da União

João Luís de Souza Pereira. Advogado. Mestre em Direito. Membro da Comissão de Direito Financeiro e Tributário do IAB. Professor convidado das pós-graduações da FGV/Direito Rio e do IAG/PUC-Rio.

A página oficial do Superior Tribunal de Justiça na internet veiculou recentemente (21/03/2024) a notícia do julgamento do Mandado de Segurança nº 27.102, impetrado contra ato do Ministro da Justiça e Segurança Pública[1].

O julgamento versou sobre a interposição de recurso administrativo envolvendo servidor público que, em última análise, pretendia reverter penalidade administrativa que lhe foi imputada.

A discussão girou em torno dos artigos 56, §1º e 57, da Lei nº 9.784/99[2].

O impetrante sustentou que a conjugação destes dispositivos leva à conclusão de que podem ser interpostos três recursos administrativos a serem apreciados por autoridades diferentes.

No julgamento, a Primeira Seção do STJ decidiu que  a interpretação do artigo 57, de Lei nº 9.784/99, “direciona para a possibilidade da interposição de apenas dois recursos, a saber, o primeiro perante a instância administrativa de origem, enquanto o segundo junto à instância administrativa imediatamente superior”.

Ponto importante deste julgado foi afirmação de que o processo administrativo deve obedecer à tramitação prevista na lei que o disciplina. No processo administrativo federal da Lei nº 9.784/99, “O recurso tramitará por três instâncias administrativas, salvo disposição legal diversa”, tal como dispõe o art. 57.

Esta decisão STJ impõe uma reflexão sobre as normas reguladoras do processo administrativo fiscal da União, sobretudo no momento em que tramita o Projeto de Lei nº 2.483/2022, que busca dar nova disciplina ao processo administrativo tributário federal.

O ponto de partida para a reflexão é o art. 151, III, do Código Tributário Nacional, segundo o qual a suspensão da exigibilidade do crédito tributário é alcançada pelas reclamações (impugnações) e os recursos, nos termos das leis reguladoras do processo tributário administrativo.

Considerando que para o CTN, a expressão lei deve ser entendida por norma decorrente do Poder Legislativo, tem-se que a disciplina do processo administrativo fiscal está submetida à reserva de lei em sentido formal.  

Como se sabe, a “lei” de que trata o art. 151, III, do CTN, é o Decreto nº 70.235/72, recepcionado com statuslei ordinária.

No entanto, o Decreto nº 70.235/72 peca pela falta de clareza ao dispor sobre a quantidade de instâncias julgadoras no processo administrativo fiscal da União.

O artigo 25, I, do Decreto nº 70.235/72, define as Delegacias da Receita Federal de Julgamento (DRJ) como a autoridade julgadora de primeira instância

O art. 25, II afirma que o Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF) é o órgão julgador de segunda instância.

O artigo 26, por sua vez,  dispõe que Ministro da Fazenda, em instância especial, tem competência para julgar recursos de decisões dos Conselhos de Contribuintes, interpostos pelos Procuradores Representantes da Fazenda junto aos mesmos Conselhos.

Não fosse a redação do art. 25, II, dada pela Lei nº 11.941/2009, indicando a competência do CARF também para julgar recursos especiais, e o §1º informando que o CARF é constituído por seções e pela Câmara Superior de Recursos Fiscais, o processo administrativo fiscal da União se encerraria, para o contribuinte, em somente duas instâncias.

Não se pode esquecer, é verdade, do contencioso administrativo tributário de pequeno valor (até 60 salários-mínimos), aquele em que o julgamento ocorrerá por membro de DRJ, monocraticamente, em primeira instância e por Turma de Julgamento da DRJ em última instância. 

Retornando ao Decreto nº 70.235/72, deve-se concluir que a Câmara Superior de Recursos Fiscais é, na verdade, uma instância especial, visto que os recursos sob sua apreciação não têm como exclusivo requisito de admissibilidade o fato de ter ocorrido decisão desfavorável no órgão fracionário do CARF, mas também a comprovação de divergência, de modo que a Câmara Superior funciona como órgão uniformizador da jurisprudência.

A propósito, o Superior Tribunal de Justiça já decidiu que a instância especial de que trata o art. 26, do Decreto nº 70.235/72, só deve ser acionada nos casos de nulidade da decisão do CARF, não sendo “lícito ao Ministro cassar tais decisões, sob o argumento de que o colegiado errou na interpretação da Lei”[3]  

Também é certo que o recurso hierárquico ao Ministro da Fazenda, segundo a melhor doutrina, independe de previsão legal.

Logo, melhor seria que o Decreto nº 70.235/72 simplificasse as coisas, deixando que as DRJs seriam os órgãos julgadores de primeira instância, o CARF seria o órgão competente de segunda instância, cabendo à Câmara Superior o julgamento em instância especial com o propósito de uniformizar a jurisprudência.

Lamentavelmente, o Projeto de Lei nº 2.483/2022 incorre no mesmo erro da norma atual, prevendo um intrincado sistema de recursos e sem clara identificação das instâncias julgadoras.   

O art. 62, do PL 2483, por exemplo, prevê que O rito ordinário compreende duas instâncias de julgamento e uma instância especial, mas a conclusão sobre os órgãos competentes de segunda instância e instância especial demanda interpretação da norma.

Os Capítulos do PL 2483/2022 que tratam dos Ritos Processuais e do Julgamento no CARF também não têm redação que indique claramente os recursos cabíveis e seu processamento, sem contar o fato de outorgarem a disciplina de várias questões ao Ministro da Fazenda.

Ainda há longo caminho pela frente, mas o Congresso Nacional não pode perder a oportunidade de conferir um tratamento claro, conciso e preciso para as instâncias julgadoras e os recursos no âmbito do processo administrativo fiscal da União.  


[1] ADMINISTRATIVO. MANDADO DE SEGURANÇA. SERVIDOR PÚBLICO. DELEGADO DE POLÍCIA FEDERAL. PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR. PENA DE SUSPENSÃO. INÉPCIA PARCIAL DA VESTIBULAR. AUSÊNCIA DE CAUSA DE PEDIR. RECURSO HIERÁRQUICO. LIMITAÇÃO DE SUA TRAMITAÇÃO A TRÊS INSTÂNCIAS ADMINISTRATIVAS (ART. 57 DA LEI N. 9.784/99). POSSIBILIDADE DE INTERPOSIÇÃO DE APENAS DOIS RECURSOS. ORDEM DENEGADA.

1. A ausência de causa de pedir, relativamente a um dos pleitos trazidos com a inicial, impõe a extinção parcial do mandamus, nos termos do art. 330, § 1º, I, do CPC/2015.

2. Conquanto a literalidade do art. 57 da Lei n. 9.784/99 anuncie que “o recurso administrativo tramitará no máximo por três instâncias administrativas, salvo disposição legal diversa”, sua adequada exegese direciona para a possibilidade da interposição de apenas dois recursos, a saber, o primeiro perante a instância administrativa de origem, enquanto o segundo junto à instância administrativa imediatamente superior.

3. Segurança denegada.

(MS n. 27.102/DF, relator Ministro Sérgio Kukina, Primeira Seção, julgado em 23/8/2023, DJe de 30/8/2023.)

[2] Art. 56. Das decisões administrativas cabe recurso, em face de razões de legalidade e de mérito.

§ 1o O recurso será dirigido à autoridade que proferiu a decisão, a qual, se não a reconsiderar no prazo de cinco dias, o encaminhará à autoridade superior.

Art. 57. O recurso administrativo tramitará no máximo por três instâncias administrativas, salvo disposição legal diversa.

[3] ADMINISTRATIVO. MANDADO DE SEGURANÇA. CONSELHO DE CONTRIBUINTES – DECISÃO IRRECORRIDA. RECURSO HIERÁRQUICO. CONTROLE MINISTERIAL. ERRO DE HERMENÊUTICA.

I – A competência ministerial para controlar os atos da administração pressupõe a existência de algo descontrolado, não incide nas hipóteses em que o órgão controlado se conteve no âmbito de sua competência e do devido processo legal.

II – O controle do Ministro da Fazenda (Arts. 19 e 20 do DL 200/67) sobre os acórdãos dos conselhos de contribuintes tem como escopo e limite o reparo de nulidades. Não é lícito ao Ministro cassar tais decisões, sob o argumento de que o colegiado errou na interpretação da Lei.

III – As decisões do conselho de contribuintes, quando não recorridas, tornam-se definitivas, cumprindo à Administração, de ofício, ?exonerar o sujeito passivo ?dos gravames decorrentes do litígio? (Dec. 70.235/72, Art. 45).

IV – Ao dar curso a apelo contra decisão definitiva de conselho de contribuintes, o Ministro da Fazenda põe em risco direito líquido e certo do beneficiário da decisão recorrida.

(MS n. 8.810/DF, relator Ministro Humberto Gomes de Barros, Primeira Seção, julgado em 13/8/2003, DJ de 6/10/2003, p. 197.)

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