Criado pela Lei 14.148/2021, o Programa Especial de Recuperação do Setor de Eventos (Perse) visa a mitigar as drásticas perdas experimentadas por esse segmento em razão da Covid-19. Em sua redação original, a lei trazia os seguintes benefícios: renegociação de dívidas fiscais e não fiscais (artigo 3º), indenização sobre a folha de salários para empresas que tiveram mais de 50% de redução no faturamento entre 2019 e 2020 (artigo 6º) e programas voltados às operações de crédito de empresas privadas dos setores críticos (artigo 8º).
São elegíveis ao Perse as pessoas jurídicas, inclusive sem fins lucrativos, que exercem direta ou indiretamente as atividades de: (1) realização ou comercialização de congressos, feiras, eventos esportivos, sociais, promocionais ou culturais, feiras de negócios, shows, festas, festivais, simpósios ou espetáculos em geral, casas de eventos, buffets sociais e infantis, casas noturnas e casas de espetáculos; (2) hotelaria em geral; e (3) administração de salas de exibição cinematográfica; e (4) prestação de serviços turísticos, conforme o artigo 21 da Lei 11.771/2008 (artigo 2º, parágrafo 1º).
Essa última lei, por sua vez (artigo 21), enquadra como serviços turísticos as atividades de: (4.1) meios de hospedagem; (4.2) agências de turismo; (4.3)transportadoras turísticas; (4.4) organizadoras de eventos; (4.5) parques temáticos; e (4.6) acampamentos turísticos, acrescentando que, “atendidas as condições próprias”, podem ainda cadastrar-se no Ministério do Turismo as sociedades empresárias que exerçam as atividades de: (4.7) restaurantes, cafeterias, bares e similares; (4.8) centros ou locais destinados a convenções e/ou a feiras e a exposições e similares; (4.9) parques temáticos aquáticos e empreendimentos dotados de equipamentos de entretenimento e lazer; (4.10)marinas e empreendimentos de apoio ao turismo náutico ou à pesca desportiva; (4.11) casas de espetáculos e equipamentos de animação turística; (4.12) organizadores, promotores e prestadores de serviços de infraestrutura, locação de equipamentos e montadoras de feiras de negócios, exposições e eventos; (4.13) locadoras de veículos para turistas; e (4.14) prestadores de serviços especializados na realização e promoção das diversas modalidades dos segmentos turísticos, inclusive atrações turísticas e empresas de planejamento, bem como a prática de suas atividades.
Voltando à Lei do Perse, tem-se que o seu artigo 2º, parágrafo 2º, prevê que ato do Ministério da Economia publicará os códigos da Classificação Nacional de Atividades Econômicas (CNAE) que se enquadram na definição de setor de eventos. Em atenção ao comando foi editada a Portaria ME 7.163/2021, que enumera os CNAEs elegíveis nos Anexos I (eventos) e II (turismo) e exige, quanto a este último, que a empresa candidata aos benefícios estivesse inscrita no Cadastur na data da publicação da lei (artigo 1º, parágrafo 2º).
Pois bem: em 18/3/2022, após a derrubada do veto aposto pelo presidente da República, foi publicado o artigo 4º da lei, trazendo mais uma vantagem para as empresas enquadráveis no Perse: redução a zero, por 60 meses, das alíquotas de IRPJ, CSLL, PIS e Cofins. Desde então, tem-se discutido sobre a aplicabilidade a esse novo benefício, para as empresas do setor de turismo e sobretudo para aquelas listadas nos itens 4.7 e seguintes da enumeração acima, da exigência de prévia inscrição no Cadastur.
Como visto, a inclusão de todas elas no programa passa-se exclusivamente no nível legal, decorrendo da combinação dos artigos 4º, caput, e 2º, parágrafo 1º, da Lei do Perse e do artigo 21 da Lei 11.771/2001 (caput para as listadas nos itens 4.1 a 4.6 e parágrafo único para as seguintes). É certo que o parágrafo único submete a inscrição facultativa no Cadastur das empresas ali referidas ao atendimento das “condições próprias”. Impõe-se, assim, uma análise da normativa infralegal para identificar que condições são essas.
A matéria é tratada diretamente na Portaria MTur 38/2021, em vigor quando da promulgação das partes vetadas, a qual apenas exige inscrição no CNPJ que indique como atividade principal ou secundária uma das referidas em qualquer dos subitens do item iv da lista acima, autorizando o Ministério do Turismo a solicitar outros documentos “para averiguar a compatibilidade das atividades desenvolvidas com a constante do CNPJ” (artigo 3º, caput e parágrafo 1º). Isto é: condições inteiramente genéricas, que qualquer empresa do ramo atenderá sem dificuldade. A conclusão não se altera diante das anteriores Portarias MTur 105/2018, vigente quando da votação da lei do Perse, e 130/2011, que primeiro instituiu o Cadastur.
Nenhum acréscimo fazem os dispositivos invocados como substrato normativo da Portaria MTur 38/2021, a saber: o próprio artigo 22 da Lei 11.771/2008 (que atribui ao Executivo a competência para definir as “condições especiais”), o artigo 19 do Decreto 7.381/2010 e os artigos 10 e 11 do Decreto 946/93. A irrelevância do segundo decreto para o tema aqui discutido é nítida, por disciplinar a profissão de guia de turismo. O primeiro, que regulamenta a Lei 11.771/2008, reitera a competência do Ministério do Turismo para definir os documentos necessários à inscrição no Cadastur, exigindo apenas respeito à matriz de cadastro de cada atividade e ao CNAE (artigo 19, caput e parágrafo único) — novamente o minimum minimorum, incapaz de excluir qualquer agente que atue de maneira regular no mercado.
Em resumo: nem as leis do Perse e do turismo, nem o decreto que regulamenta esta última, nem a portaria que disciplina o Cadastur exigem a inscrição das empresas que exercem as atividades listadas nos itens 4.7 e seguintes acima, ou a condicionam à satisfação de requisitos aptos a diferenciar uma categoria especial de prestadores. Quem faz tal imposição, de forma completamente autônoma e desarrazoada _ impondo condição que não é aplicável sequer ao setor de origem do cadastro —, é apenas a Portaria ME 7.163/2021.
E assim age, claro está, para exigir tributos onde a lei os dispensa, isto é, para afastar — quanto aos contribuintes que não cumpram essa condição — a alíquota zero de IRPJ, CSLL, PIS e Cofins instituída pelo legislador sem qualquer referência à inscrição no Cadastur. A ofensa ao princípio da legalidade é manifesta (Constituição, artigo 150, inciso I; CTN, artigo 97, inciso II). Ora, mesmo os decretos, editados pela autoridade máxima do Poder Executivo, devem fiel obediência às leis (Constituição, artigo 84, inciso IV; CTN, artigo 99). Muito menos poderiam inovar na ordem jurídica as chamadas normas complementares do artigo 100 do CTN, que se situam abaixo daqueles e dentre as quais estão os atos administrativos expedidos pelas autoridades administrativas (inciso I) — caso da citada portaria.
E tem mais: ainda que a exigência de cadastramento fosse válida, tem-se que pegou os referidos contribuintes inteiramente de surpresa. Com efeito, para eles a medida sempre foi facultativa, como demonstrado, e apenas em 18/3/2022 — data da publicação dos trechos vetados da lei do Perse — teria passado a ser obrigatória para o gozo das alíquotas zero. Contudo, nos termos da Portaria ME 7.163/2021, o contribuinte deve comprovar o cumprimento da condição “na data da publicação da Lei 14.148/2021”, ou seja, desde 3/5/2021.
A ofensa à irretroatividade (Constituição, artigo 150, inciso III, alínea “a”; CTN, artigo 105) é chapada. Trata-se, à toda evidência, de condição impossível, que deve ser tida por não escrita, por aplicação analógica dos artigos 123, inciso I, e 124 do Código Civil [1]. Essa a solução dada pelo STF em situação análoga, também relativa ao descasamento temporal entre a instituição da condição e a data em que a conduta do particular seria exigível (1ª Turma, RE 409.730/PR, relator ministro Marco Aurélio, DJ 29/4/2005).
Por fim, ainda que superadas as duas claras invalidades, um terceiro aspecto bastaria para afastar a exigência de cadastramento em 3/5/2021 para o gozo das alíquotas zero. Trata-se do nítido abalo que o requisito traz à livre concorrência, princípio geral da ordem econômica previsto no artigo 170, inciso IV, da Constituição e recentemente importado de forma expressa para o sistema tributário pelo artigo 146-A [2].
De fato, como poderiam uma empresa nova, instituída após aquela data, ou uma empresa antiga que não tenha exercido a faculdade (ou mesmo o dever, para aquelas referidas nos itens 4.1 a 4.6 da lista acima) de se inscrever no Cadastur — e que, assim, ficariam sujeitas à incidência normal de IRPJ, CSLL, PIS e Cofins — concorrer com outra que, inscrita no prazo assinado pela portaria, estivesse livre dessas exações? A impossibilidade é total é basta para acarretar a inconstitucionalidade do requisito, em boa hora rechaçado pelas decisões judiciais já proferidas na matéria.
[1] “Art. 123. Invalidam os negócios jurídicos que lhes são subordinados:
I – as condições física ou juridicamente impossíveis, quando suspensivas;
(…)
Art. 124. Têm-se por inexistentes as condições impossíveis, quando resolutivas, e as de não fazer coisa impossível.”
[2] “Art. 146-A. Lei complementar poderá estabelecer critérios especiais de tributação, com o objetivo de prevenir desequilíbrios da concorrência, sem prejuízo da competência de a União, por lei, estabelecer normas de igual objetivo.”
Igor Mauler Santiago é sócio-fundador do escritório Mauler Advogados, mestre e doutor em Direito Tributário pela Universidade Federal de Minas Gerais, membro da Comissão de Direito Tributário do Conselho Federal da OAB e presidente do Instituto Brasileiro de Direito e Processo Tributário (IDPT).
Valdecir de Souza é advogado e contador, especialista em Direito Tributário pela FGV e sócio de Mauler Advogados.
Fonte: Conjur – 10/08/2022