ARTIGO DA SEMANA –  Calamidade pública e seus reflexos no Direito Financeiro e no Direito Tributário

João Luís de Souza Pereira. Advogado. Mestre em Direito. Membro da Comissão de Direito Financeiro e Tributário do IAB. Professor convidado das pós-graduações da FGV/Direito Rio e do IAG/PUC-Rio.

As fortes chuvas que atingem o RS deixaram a região em estado de calamidade pública.

Calamidade pública é uma situação com previsão legal, notadamente no art. 2º, IV, do Decreto nº 7.257/2010[1].

O reconhecimento do estado de calamidade pública depende do preenchimento de algumas formalidades, entre as quais a publicação de decreto e a apresentação de requerimento ao Poder Executivo Federal pelo Poder Executivo do Estado, DF ou município (art. 7º, do Decreto nº 7.257/2010)[2].

O Congresso Nacional também possui papel importante no reconhecimento do estado de calamidade pública, tal como prevê o art. 49, XVIII, da Constituição. 

No âmbito do Direito Financeiro, o reconhecimento do estado de calamidade pública tem diversas consequências.

O art. 167, §3º, da Constituição, por exemplo, flexibiliza o rigor das normas orçamentárias e admite a abertura de crédito extraordinário para fazer face a despesas decorrentes de calamidade pública.

Outro exemplo importante do impacto do estado de calamidade pública no Direito Financeiro está no art. 167-B, da Constituição, segundo o qual “Durante a vigência de estado de calamidade pública de âmbito nacional, decretado pelo Congresso Nacional por iniciativa privativa do Presidente da República, a União deve adotar regime extraordinário fiscal, financeiro e de contratações para atender às necessidades dele decorrentes, somente naquilo em que a urgência for incompatível com o regime regular, nos termos definidos nos arts. 167-C, 167-D, 167-E, 167-F e 167-G desta Constituição”.

Os artigos 65 e 65-A[3], da Lei Complementar nº 101/2000, também excepcionam os entes federativos de diversos rigores da Responsabilidade Fiscal nos casos de calamidade pública reconhecida pelo Congresso Nacional.

Com efeito, através do recente Decreto-Legislativo nº 36/2024[4], o Congresso Nacional reconheceu o estado de calamidade pública no RS para efeito do art. 65, da LC 101/2000.

Em relação ao Direito Tributário, o reconhecimento do estado de calamidade pública dá ensejo à flexibilização ou dispensa no cumprimento de obrigações acessórias. Bom exemplo está na Portaria RFB nº 415/2024, que prorroga prazos para pagamento de tributos federais, inclusive parcelamentos, e para cumprimento de obrigações acessórias, e suspende prazos para a prática de atos processuais no âmbito da Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil, para contribuintes domiciliados nos municípios afetados pelas chuvas, localizados no Estado do Rio Grande do Sul.

Mas não se pode esquecer que uma calamidade pública também pode dar ensejo à criação de empréstimo compulsório, com fundamento no art. 148, I[5], da Constituição Federal.

Os empréstimos compulsórios são tributos restituíveis. A lei que venha instituir um empréstimo compulsório estabelecerá não somente a forma de pagamento, mas também como será realizada a sua restituição.

Do artigo 148 da Constituição é possível delimitar algumas características dos empréstimos compulsórios. A primeira delas é que os empréstimos compulsórios são tributos da competência exclusiva da União. Portanto, não há que se falar em empréstimo compulsório que não seja federal.

Outra característica deste tributo é que sua instituição somente pode ocorrer através de lei complementar. Logo, não se aplica aos empréstimos compulsórios a extensão do princípio da legalidade às medidas provisórias.

Os empréstimos compulsórios têm uma outra característica marcante: a vinculação de seus recursos à causa que lhe deu origem. Assim, todo o montante arrecadado pelo empréstimo compulsório deverá ser aplicado no atendimento às despesas que o originaram.

Finalmente, cabe lembrar que a lei que venha instituir o empréstimo compulsório para fazer face às despesas de uma calamidade pública não se sujeita ao princípio da anterioridade (art. 150, § 1º, da Constituição Federal).


[1] Art. 2º  Para os efeitos deste Decreto, considera-se:

IV – estado de calamidade pública: situação anormal, provocada por desastres, causando danos e prejuízos que impliquem o comprometimento substancial da capacidade de resposta do poder público do ente atingido;

[2] Art. 7º  O reconhecimento da situação de emergência ou do estado de calamidade pública pelo Poder Executivo federal se dará mediante requerimento do Poder Executivo do Estado, do Distrito Federal ou do Município afetado pelo desastre.

[3] Art. 65.Na ocorrência de calamidade pública reconhecida pelo Congresso Nacional, no caso da União, ou pelas Assembleias Legislativas, na hipótese dos Estados e Municípios, enquanto perdurar a situação:

I – serão suspensas a contagem dos prazos e as disposições estabelecidas nos arts. 23 , 31 e 70;

II – serão dispensados o atingimento dos resultados fiscais e a limitação de empenho prevista no art. 9o.

§ 1º Na ocorrência de calamidade pública reconhecida pelo Congresso Nacional, nos termos de decreto legislativo, em parte ou na integralidade do território nacional e enquanto perdurar a situação, além do previsto nos inciso I e II do caput:

I – serão dispensados os limites, condições e demais restrições aplicáveis à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios, bem como sua verificação, para:

a) contratação e aditamento de operações de crédito;

b) concessão de garantias;        

c) contratação entre entes da Federação; e        

d) recebimento de transferências voluntárias;        

II – serão dispensados os limites e afastadas as vedações e sanções previstas e decorrentes dos arts. 35, 37 e 42, bem como será dispensado o cumprimento do disposto no parágrafo único do art. 8º desta Lei Complementar, desde que os recursos arrecadados sejam destinados ao combate à calamidade pública;   

III – serão afastadas as condições e as vedações previstas nos arts. 14, 16 e 17 desta Lei Complementar, desde que o incentivo ou benefício e a criação ou o aumento da despesa sejam destinados ao combate à calamidade pública.  

§ 2º O disposto no § 1º deste artigo, observados os termos estabelecidos no decreto legislativo que reconhecer o estado de calamidade pública: 

I – aplicar-se-á exclusivamente:       

a) às unidades da Federação atingidas e localizadas no território em que for reconhecido o estado de calamidade pública pelo Congresso Nacional e enquanto perdurar o referido estado de calamidade;

b) aos atos de gestão orçamentária e financeira necessários ao atendimento de despesas relacionadas ao cumprimento do decreto legislativo

II – não afasta as disposições relativas a transparência, controle e fiscalização

§ 3º No caso de aditamento de operações de crédito garantidas pela União com amparo no disposto no § 1º deste artigo, a garantia será mantida, não sendo necessária a alteração dos contratos de garantia e de contragarantia vigentes.     

Art. 65-A. Não serão contabilizadas na meta de resultado primário, para efeito do disposto no art. 9º desta Lei Complementar, as transferências federais aos demais entes da Federação, devidamente identificadas, para enfrentamento das consequências sociais e econômicas no setor cultural decorrentes de calamidades públicas ou pandemias, desde que sejam autorizadas em acréscimo aos valores inicialmente previstos pelo Congresso Nacional na lei orçamentária anual.       

[4] DECRETO LEGISLATIVO Nº 36, DE 2024

Reconhece, para os fins do disposto no art. 65 da Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000 (Lei de Responsabilidade Fiscal), a ocorrência do estado de calamidade pública em parte do território nacional, para atendimento às consequências derivadas de eventos climáticos no Estado do Rio Grande do Sul.

O Congresso Nacional decreta:

Art. 1º Fica reconhecida, exclusivamente para os fins do disposto no art. 65 da Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000 (Lei de Responsabilidade Fiscal), a ocorrência do estado de calamidade pública em parte do território nacional, até 31 de dezembro de 2024, para atendimento às consequências derivadas de eventos climáticos no Estado do Rio Grande do Sul, nos termos da solicitação do Presidente da República encaminhada por meio da Mensagem nº 175, de 6 de maio de 2024.

Art. 2º A União fica autorizada a não computar exclusivamente as despesas autorizadas por meio de crédito extraordinário e as renúncias fiscais necessárias para o enfrentamento da calamidade pública e das suas consequências sociais e econômicas, no atingimento dos resultados fiscais e na realização de limitação de empenho prevista no art. 9º da Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000 (Lei de Responsabilidade Fiscal).

Art. 3º O disposto no inciso II do caput do art. 65 da Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000 (Lei de Responsabilidade Fiscal), dispensa a União de computar no resultado fiscal, exclusivamente, as despesas e as renúncias fiscais de que trata o art. 2º deste Decreto Legislativo.

Art. 4º Observado o disposto no art. 2º, este Decreto Legislativo produz todos os efeitos previstos no art. 65 da Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000 (Lei de Responsabilidade Fiscal).

Art. 5º Este Decreto Legislativo entra em vigor na data de sua publicação.

Senado Federal, em 7 de maio de 2024

Senador RODRIGO PACHECO

Presidente do Senado Federal

[5] Art. 148. A União, mediante lei complementar, poderá instituir empréstimos compulsórios: 

I – para atender a despesas extraordinárias, decorrentes de calamidade pública, de guerra externa ou sua iminência;

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