João Luís de Souza Pereira. Advogado. Mestre em Direito. Membro da Comissão de Direito Financeiro e Tributário do IAB. Professor convidado das pós-graduações da FGV/Direito Rio e do IAG/PUC-Rio.
Os artigos 93 a 99 do PLP 108/2024 (Seção V, do Capítulo III, Título II) cuidam das espécies recursais no processo administrativo fiscal do IBS.
O recurso de ofício no processo administrativo do IBS está disciplinado no art. 95, do PLP 108/2024.
Recursos de ofício não são propriamente recursos, já que não há qualquer manifestação de vontade da parte em rever a decisão administrativa que lhe foi desfavorável. Na verdade, como bem ensinam LUIZ GUILHERME MARINONI e DANIEL MITIDIERO[1] (2008, p. 451), analisando o instituto análogo do Direito Processual Civil, “o reexame necessário não constitui figura recursal, porque lhe falta a voluntariedade inerente aos recursos. Trata-se de condição para eficácia da sentença”.
Ou seja, nem toda decisão administrativa se tornará definitiva no momento em que o sujeito passivo da relação tributária for intimado de sua existência e conteúdo. Há casos em que é necessária a revisão da decisão administrativa por outro órgão da administração tributária com função judicante, independentemente da vontade da parte.
Inegavelmente, o que dá fundamentação ao recurso de ofício é o exercício da autotuela, do controle da legalidade dos atos da administração tributária.
Nunca se pode perder de vista que a atuação da Administração deve observar seu poder de autotutela, vale dizer, de correção dos atos eivados de ilegalidade ou em cujo mérito haja flagrante desrespeito ao interesse público. Exatamente por esta razão é que DIOGO DE FIGUEIREDO MOREIRA NETO[2] (2003, p. 104) afirma que a autotutela é um princípio de direito administrativo que “exprime o duplo dever da Administração Pública de controlar seus próprios atos quanto à juridicidade e à adequação ao interesse público”.
Acontece, porém, que o exercício da autotutela independe de provocação do interessado. O dever da Administração corrigir seus próprios atos deve ser realizado de ofício porque só assim, aliás, estará atendido o interesse público. JOSÉ DOS SANTOS CARVALHO FILHO[3] (2002, p. 131) ensina que “se for necessário rever determinado ato ou conduta, a Administração poderá fazê-lo ex officio, usando sua auto-executoriedade, sem que dependa necessariamente de que alguém o solicite”. Isto é o que está contemplado no artigo 63, § 2°, da Lei n° 9.784/99, como também já ficou pacificado na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal nas súmulas n° 346 e 473.
Como se vê, o recurso de ofício no processo administrativo fiscal foi um momento contemplado pelo legislador para que os órgãos administrativos de função judicante reexaminem a decisão que, por sua relevância econômica, tem grande repercussão no erário e pode contrariar o interesse público.
Questão importante envolvendo o recurso de ofício diz respeito à extensão do poder de revisão conferido à autoridade ad quem. Como já observou JOSÉ DOS SANTOS CARVALHO FILHO[4] (2001, p. 233):
“a autoridade incumbida da reapreciação tem ampla margem de avaliação do ato administrativo decisório sujeito a seu crivo. Em outras palavras, é de se considerar que a ela compete verificar os aspectos de legalidade e de mérito do ato sob sua reapreciação, fato que rende ensejo a que o ato da autoridade seja idôneo para exercer controle natural.”
A lição de CARVALHO FILHO corresponde àquilo que ficou pacificado na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça quanto à Remessa Necessária no processo judicial:
“A remessa oficial devolve ao Tribunal o reexame de todas as parcelas da condenação suportadas pela Fazenda Pública, inclusive dos honorários de advogado”.
(Súmula n. 325, Corte Especial, julgado em 3/5/2006, DJ de 16/5/2006, p. 214.)
Como decorrência do amplo poder de revisão da autoridade competente para apreciação dos recursos administrativos, corolário lógico do efeito devolutivo, surge a questão de saber se é possível que este poder seja exercido de forma a agravar a situação do interessado (sujeito passivo).
De fato, o recurso de ofício tem evidente efeito devolutivo. No exercício de seu poder de revisão, a autoridade administrativa poderá não apenas avançar sobre questões que não foram objeto de impugnação, como também agravar a situação do recorrente.
A possibilidade da reformatio in pejus no processo administrativo se justifica e encontra seu fundamento no princípio da legalidade. Todos os atos da administração devem ser praticados no estrito cumprimento da lei, não sendo lícito ao administrador fazer aquilo que não encontre previsão legal, tampouco deixar de fazer o que a lei expressamente determina – artigo 37, da Constituição.
Tratando-se de ato praticado pela administração tributária, a observância da legalidade torna-se ainda mais importante porque tributos somente podem exigidos mediante prévia lei (art. 150, I, da Constituição).
Logo, a decisão administrativa que dispensa tributo ou penalidade que esteja previsto em lei deve ser revista e reformada. Daí ser possível a reforma para pior de decisão contrária à lei.
Mas é evidente que a decisão que dá provimento a recurso de ofício deverá ser submetida ao conhecimento do sujeito passivo para o exercício do contraditório e da ampla defesa.
Desse modo, ainda que o acolhimento do recurso de ofício importe em agravamento ou restabelecimento da exigência fiscal, caberá ao interessado interpor o competente recurso voluntário, provocando o órgão administrativo a rever a decisão que lhe foi desfavorável.
Como se vê, o julgamento do recurso de ofício não é a última decisão do processo administrativo fiscal, já que ao sujeito passivo estará assegurado, em típico recurso, o direito de expor os motivos pelos quais entende que a exigência fiscal deve ser afastada.
Nos termos do art. 95, do PLP 108/2024, o órgão julgador de primeira instância recorrerá de ofício à segunda instância sempre que a decisão for, no todo ou em parte, contrária à Fazenda Pública.
O art. 95, §3º, do PLP 108/2024 elenca as hipóteses de dispensa da interposição do recurso de ofício quando: (i) a decisão contrária à Fazenda Pública consignar, na data da realização do julgamento, valor inferior ao limite específico para esse fim fixado pelo CG- IBS; (ii) houver, nos autos, provas de recolhimento integral do tributo exigido no lançamento original; (iii) o cancelamento do ato de lançamento de ofício tiver por fundamento disposição legal que importe remissão do crédito tributário; ou (iv) a decisão aplicar penalidade mais benéfica à conduta infracional indicada no ato de lançamento de ofício, decorrente exclusivamente de alteração superveniente na legislação.
Tratando-se de hipótese de cancelamento por remissão, o art. 95, §4º, impõe a necessidade de manifestação da Representação da Fazenda.
A art. 95, §5º, em indevida delegação de competência, autoriza que o Comitê Gestor do IBS estabeleça outras hipóteses de dispensa da interposição do recurso de ofício em razão da matéria controvertida e da natureza da infração.
Finalmente, o art. 95, §6º, prevê que o valor mínimo de dispensa do crédito tributário para efeito de interposição do recurso de ofício será único e estabelecido em caráter nacional.
[1] MARINONI, Luiz Guilherme e MITIDIERO, Daniel. Código de Processo Civil – Comentado artigo por artigo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008.
[2] MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso de Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2003.
[3] CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo, Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2002.
[4] CARVALHO FILHO, José dos Santos. Processo Administrativo Federal – Comentários à Lei n° 9.784, de 29/1/1999. Rio de Janeiro: Editora Lumen Iuris, 2001.