A regra de suspensão do processo na hipótese em que o resultado de uma demanda depende do julgamento de outra que esteja tramitando no Poder Judiciário é “velha” conhecida na prática processual. Normativamente, as bases da figura da questão prejudicial externa encontra-se assentada no artigo 313 [1], inciso V, alínea “a” do código processual de 2015 (CPC/2015), que replica a previsão desde antes contida no artigo 265 [2], inciso IV, alínea “a” do Código de Processo Civil de 1973 (CPC/1973).
Na vigência do código de 1973, a suspensão do processo por questão prejudicial externa nitidamente objetivava evitar a prolação de decisões conflitantes a respeito de uma mesma relação de direito material, relação essa compositiva do núcleo de duas ou mais relações processuais distintas, do que não escapa o tratamento dispensado pelo CPC/2015. Barra-se o exercício de uma jurisdição porque afetada pelo exercício de outra.
Mas tal instituto, ali no CPC/1973, guardava a adicional preocupação com a unicidade interpretativa de uma dada questão atrelada ao conflito intersubjetivo em processos distintos. Dito de outra forma: a suspensão do processo se dava porque o conflito entre os sujeitos “A” e “B” em um dado processo subordinava-se ao resultado de uma questão também posta entre os sujeitos “A” e “B”, mas em outra relação processual — viés claramente subjetivo da ideia de prejudicialidade.
O que se constata a partir da vigência do código de 2015 é uma transformação do que passou a significar “questão prejudicial externa” ensejadora da suspensão do processo.
Não que a noção de “externalidade” tenha mudado, eis que mantida a ideia de que o exercício de uma determinada jurisdição impacta a execução da outra. O que se tem de novo, com o código de 2015, é a projeção institucionalizada de um regime de julgamento de precedentes vinculativos que prima pela objetivação da questão prejudicial externa, elemento que, sem prejuízo da categoria “subjetiva” desde antes existente, passou a contar com essa outra modalidade, “objetiva” ou “temática”.
Admite o código, com efeito, que um processo seja suspenso porque o tema de fundo (mérito) — seu objeto — está sendo analisado em outro processo com o qual a parte não guarda qualquer relação subjetiva. Nessa hipótese, note-se, a afinidade entre os processos decorre exclusivamente da matéria que tratam.
Esse incremento das causas de suspensão do processo é de pronto verificado no inciso IV do referido artigo 313, ao prever que a admissão do incidente de resolução de demandas repetitivas (IRDR) enseja a suspensão do processo — suspensão essa objetiva (temática), pois, o IRDR é um dos mecanismos previstos no código para a contenção da expansão interpretativa, pretendendo assegurar que “a norma construída de uma dada lei seja replicada em todos os casos concretos que se insiram no seu conteúdo prescritivo” [3].
Mas não é só no artigo 313 do CPC que se encontra hipótese de suspensão processual por prejudicial externa temática (ou objetiva), o mesmo se consagra — quiçá ainda em maior intensidade — com o propalado “sobrestamento” de feitos que se consolida em decorrência (1) da seleção de recursos especial e extraordinário que tenham como objeto “idêntica questão de direito” (artigo 1.036, § 1º [4]) ou (2) da determinação, por ministro de Tribunal Superior (STJ ou STF), de suspensão dos processos que “versem sobre a questão” e tramitem no território nacional (artigo 1.037, II [5]).
Nas situações apontadas, os recursos excepcionais são selecionados tematicamente, uma vez que a questão de fundo é objeto de múltiplos processos (“apelidados” de recursos repetitivos), e porque sistemicamente se pretende dar unicidade interpretativa à norma em discussão nesses vários processos, pertinente o regramento [6].
Ainda que sob a alcunha de “sobrestamento”, o que se dá é típica hipótese de suspensão de processos por prejudicial externa. Diferentemente do que ocorria na disciplina do CPC/1973 (suspensão exclusivamente subjetiva), porém, a partir do CPC/2015 admite-se que a identidade de matéria entre dois ou mais processos também provoque essa suspensão. O impedimento ao exercício da jurisdição deriva, em outras palavras, do objeto das demandas.
Assim, na atual legislação processual coexistem questões prejudiciais externa (1) subjetiva e (2) objetiva (ou temática), ambas ensejando a suspensão dos processos tidos por “prejudicados”.
Diante da temática desta coluna (processo tributário), e da premissa maior de que partimos — a de que processo é meio de solução do conflito de uma dada relação material que o dispara —, a identificação da natureza jurídica do instituto processual “sobrestamento” é crucial [7].
Isso porque, muitas das questões tributárias são reproduzidas em diversos processos e estão potencialmente sujeitas a destaque para julgamento como caso repetitivo, seja pela via do IRDR ou dos recursos especial e extraordinários repetitivos [8].
Assim, pragmaticamente afetada uma questão tributária para julgamento de caso repetitivo em recurso especial e extraordinário, processos individuais ou coletivos que mantenham conexão temática são suspensos por questão prejudicial externa de natureza objetiva, ainda que não esteja a hipótese prevista textualmente em qualquer dos incisos do artigo 313 do CPC/2015.
[1] Art. 313. Suspende-se o processo:
V – quando a sentença de mérito:
a) depender do julgamento de outra causa ou da declaração de existência ou de inexistência de relação jurídica que constitua o objeto principal de outro processo pendente;
[2] Art. 265. Suspende-se o processo:
IV – quando a sentença de mérito:
a) depender do julgamento de outra causa, ou da declaração da existência ou inexistência da relação jurídica, que constitua o objeto principal de outro processo pendente;
[3] In Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas no Código de Processo Civil de 2015. In: Instituto Brasileiro de Estudos Tributários, et al. (Org.). PRODIREITO: Direito Tributário: Programa de Atualização em Direito: Ciclo 3. Porto Alegre: Artmed Panamericana; 2017. (Sistema de Educação Continuada a Distância, v. 3), p. 93.
[4] Art. 1.036. (…)
§ 1º. O presidente ou o vice-presidente de tribunal de justiça ou de tribunal regional federal selecionará 2 (dois) ou mais recursos representativos da controvérsia, que serão encaminhados ao Supremo Tribunal Federal ou ao Superior Tribunal de Justiça para fins de afetação, determinando a suspensão do trâmite de todos os processos pendentes, individuais ou coletivos, que tramitem no Estado ou na região, conforme o caso.
[5] Art. 1.037. Selecionados os recursos, o relator, no tribunal superior, constatando a presença do pressuposto do caput do art. 1.036 , proferirá decisão de afetação, na qual:
II – determinará a suspensão do processamento de todos os processos pendentes, individuais ou coletivos, que versem sobre a questão e tramitem no território nacional;
[6] Como relembra Andressa Senna Lísias, a mola propulsora no Brasil dos “denominados precedentes está conectada à necessidade de eficiência e de uniformidade na resposta jurisdicional para solucionar casos iguais e múltiplos”. – in A Formação dos Precedentes no Sistema de Recursos Repetitivos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2012, p. 14.
[7] Sobre essa tomada de posição sobre a função do processo, remetemos a leitora e o leitor aos seguintes trabalhos:
[8] Art. 928. Para os fins deste Código, considera-se julgamento de casos repetitivos a decisão proferida em:
I – incidente de resolução de demandas repetitivas;
II – recursos especial e extraordinário repetitivos.
Camila Campos Vergueiro é advogada, doutoranda pela Unimar, mestre em Direito Tributário pela PUC-SP, professora do curso de especialização do Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (Ibet), do programa de pós-graduação lato sensu da Fundação Getúlio Vargas (FGV LAW) e do Complexo Educacional Damásio de Jesus, professora e coordenadora do curso de extensão e do grupo de estudos de “Processo Tributário Analítico” do Ibet.
Revista Consultor Jurídico, 4 de setembro de 2022, 8h00