A decisão da 1ª Turma do Superior Tribunal de Justiça que estabeleceu que a Fazenda Nacional não poderia ter alterado a fórmula de tributação das operações entre multinacionais pertencentes ao mesmo grupo econômico a partir da Instrução Normativa (IN) 243/2002 causou celeuma entre os estudiosos em Direito Tributário.
A norma modificava a forma de cálculo do preço de transferência por meio de um aumento da base do Imposto de Renda das Pessoas Jurídicas (IRPJ) e da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL). O STJ, portanto, desonerou o contribuinte no período de vigência da IN — de 2002 a 2012.
A decisão entra em conflito com a Súmula 115 do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), segundo a qual o método da IN 243/2002 é válido.
De acordo com tributaristas ouvidos pela revista eletrônica Consultor Jurídico, isso significa que as autoridades tributárias ainda devem manter administrativamente a aplicação do ato infralegal. Porém, aumentam as possibilidades de anulação de tal interpretação na Justiça.
Necessidade de judicialização
Desde 2019, as súmulas do Carf têm força vinculante para a administração tributária federal. Ou seja, a Súmula 115 continuará a ser aplicada no conselho e “só perderá esse efeito vinculante a partir do momento em que for revogada”, como explica o tributarista André Félix Ricotta de Oliveira, presidente da Comissão de Direito Tributário e Constitucional da OAB-SP, subseção Pinheiros.
O Regimento Interno do Carf autoriza a revogação da súmula se o Supremo Tribunal Federal proferir decisão contrária a ela em repercussão geral, ou se o STJ fizer o mesmo em recurso repetitivo.
Leonardo Freitas de Moraes e Castro, sócio da área tributária do VBD Advogados, ressalta que isso não ocorreu no julgamento em questão. “Diante do cenário hoje vigente, ainda será necessário que o contribuinte recorra ao Judiciário para afastar a metodologia de cálculo de preço de transferência imposta pelo Fisco na IN 243/2002 para o seu caso concreto.”
Por sua vez, Graziele Pereira, sócia do escritório Greco, Canedo e Costa Advogados, aponta que “a jurisprudência do STJ deverá ser consolidada em sede de recurso repetitivo para que possa haver fundamento para a revogação da súmula do Carf”. Ela lembra que os contribuintes sempre podem acionar a Justiça para alterar decisões do órgão administrativo.
Arthur Barreto, do DSA Advogados, reforça que a decisão da 1ª Turma vincula apenas o contribuinte envolvido no processo. De qualquer forma, ela serve como parâmetro para decisões posteriores dos tribunais.
“É esperado, portanto, que o posicionamento do Fisco e do Carf não seja modificado por força da decisão. Mas os contribuintes ganharam um precedente importante para as discussões judiciais sobre o tema, permitindo vislumbrar um cenário mais favorável à desconstituição judicial das cobranças relacionadas a esse assunto”, diz ele.
Como a decisão “não é automaticamente aplicável a outros contribuintes em mesma situação”, Dante Zanotti, sócio da prática tributária do Lefosse, considera que “a Receita Federal e a PGFN devem continuar, por enquanto, defendendo a aplicação da IN 243/2002”. Com isso, os casos tendem a continuar terminando em litígio, pelo menos até que haja uma definição pelas duas turmas do STJ que julgam temas tributários, ou pela seção que congrega as duas turmas.
Adriano Milanesi Sutto, do Bichara Advogados, destaca que a decisão foi da 1ª Turma, e não da 1ª Seção, que é responsável pela uniformização da jurisprudência tributária do tribunal. Mas, segundo ele, “de toda forma, esse primeiro julgamento pode ensejar o exame de outros casos e o reconhecimento da controvérsia dentro da sistemática de recursos repetitivos, o que poderia resolver o contencioso administrativo fiscal de maneira mais célere”.
Por enquanto, sem julgamento de repetitivo, a decisão do STJ ainda é, nas palavras de Sutto, “um ótimo precedente que poderá ser invocado pelo contribuinte que tiver essa discussão em curso, podendo influenciar positivamente o exame de seus casos individuais”, mas não necessariamente terá impacto positivo nos julgamentos administrativos sobre o tema.
Juliana Porchat de Assis, sócia da área tributária do FAS Advogados, entende que o precedente “tem peso considerável na forma como a jurisprudência se formará a partir de agora, sendo provável que ele venha a ser apreciado também no STJ em âmbito repetitivo, que vincula o Carf”. Ou seja, o novo cenário, além de poder resultar em anulação de infrações milionárias, “inicia um processo que pode resultar na revisão da súmula”.
Relevância do tema
Gustavo Haddad, sócio da prática de Tributário do Lefosse, destaca o pioneirismo da decisão do STJ no “principal contencioso relacionado à matéria de preços de transferência no país”. Segundo ele, o precedente se aplica a diversas multinacionais que operam no Brasil e os valores envolvidos chegam à casa das centenas de milhões.
“A expectativa é a de que a decisão proferida possa estimular a revisão da posição de algumas turmas de Tribunais Regionais Federais que vinham decidindo contra a posição agora aceita pelo STJ.”
Na visão de Francisco Lisboa Moreira, sócio do Bocater, Camargo, Costa e Silva, Rodrigues Advogados, o precedente do STJ será importantíssimo para “garantir o princípio da legalidade”, pois poderá ser usado por “todas as empresas que ainda possuam discussões em andamento” nas tentativas de reverter as autuações.
No entanto, ele acredita que a súmula do Carf demorará a ser revista, pois a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN) “ainda recorrerá neste e nos demais casos em andamento sobre essa tese”.
Liz Marília Vecci, sócia fundadora do Terra e Vecci Advogados, acrescenta que o STJ segue uma tendência de “observar o princípio da legalidade”, mas ainda não é possível saber como a jurisprudência se firmará. Mesmo assim, a sugestão da advogada para as multinacionais que discutem a questão no Carf é a judicialização.
Fernanda Approbato, advogada da área de Direito Tributário do BBL Advogados, tem percepção semelhante. Segundo ela, a decisão da 1ª Turma deve funcionar como precedente para os tribunais. “Em se firmando esse posicionamento no âmbito do STJ em caráter geral, deverá futuramente ocorrer a revisão dos termos da Súmula 115 pelo Carf.”
Revista Consultor Jurídico, 5 de outubro de 2022, 18h52