Para tributaristas, STJ torna as decisões pró-contribuinte eternamente provisórias

A quarta-feira (8/2) foi um dia ingrato para o contribuinte brasileiro. Em decisões quase simultâneas, o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça admitiram a desconstituição de resultados definitivos em processos tributários, justificada pela mudança posterior de entendimento dessas duas cortes.

No STF, a quebra da coisa julgada tributária depende de algum pronunciamento da corte que conclua que a cobrança de determinado tributo é constitucional. Nesse caso, qualquer decisão definitiva anterior que tenha afastado essa cobrança deixa de valer automaticamente.

E o STJ, de alguma forma, complementou as pretensões fazendárias. A 1ª Seção da corte admitiu o uso da ação rescisória para desconstituir o acórdão definitivo, quando posteriormente houver mudança da posição. No caso concreto, o colegiado estabeleceu a modulação dos efeitos.

A discussão envolveu a cobrança de IPI sobre a revenda de produtos importados, que era negada pelo STJ em 2014 e passou a ser autorizada em 2015. Em 2020, o Supremo confirmou a constitucionalidade dessa cobrança. Esse foi o marco escolhido pela 1ª Seção para autorizar a desconstituição do acórdão definitivo.

Para tributaristas consultados pela revista eletrônica Consultor Jurídico, esse cenário gera um desequilíbrio na relação entre Fisco e contribuinte. Toda decisão favorável à parte mais vulnerável dessa relação, mesmo definitiva, estará passível de revisão posterior até que o STF dê um pronunciamento com eficácia geral.

Mais grave do que isso, segundo eles, é a justificativa usada no precedente. Há críticas à vulneração da segurança jurídica com base em argumentos consequencialistas, privilegiando o conteúdo econômico da decisão, e na aplicação de princípios da isonomia e em busca de justiça fiscal.

Efeito da coisa julgada
“Até ontem (quarta-feira), o entendimento corrente era de que o efeito da coisa julgada, nas relações de trato sucessivo, só cessaria de forma automática de sobreviesse alteração legislativa que tornasse prejudicado o fundamento jurídico utilizado pela decisão transitada em julgado. Como o Poder Judiciário não pode legislar, entendia-se que suas decisões não mudavam a legislação e, portanto, não podiam interromper os efeitos da coisa julgada”, explica Hugo Funaro, sócio do escritório Dias de Souza Advogados.

“Agora, o STF equiparou a uma lei as suas decisões em controle abstrato de constitucionalidade ou em recurso extraordinário com repercussão geral. E o STJ entendeu que, nesses casos, cabe ação rescisória, pelo menos com relação aos efeitos posteriores ao julgamento da questão pelo STF”, acrescenta ele.

Na opinião de Leonardo Moraes e Castro, sócio da área tributária do VBD Advogados, o fato de o STJ autorizar o uso da rescisória na esteira da decisão do STF mostra que a aplicação da tese da quebra da coisa julgada tributária será ampla, o que cria um ambiente de desequilíbrio na relação fiscal.

“Sob o viés do contribuinte, a segurança jurídica só poderá ser considerada como um princípio protegido pela Constituição Federal após um pronunciamento com eficácia geral do STF. Portanto, nenhuma relação jurídica em matéria tributária, mesmo que definitiva, é certa, já que o STF sempre poderá revisar seu entendimento e essa revisão valerá a partir do ano seguinte para todos os contribuintes.”

“Sempre uma decisão tributária em favor do contribuinte será considerada ‘eternamente provisória’, podendo ser a qualquer tempo revisitada em sentido contrário. Isso é a própria negação da segurança jurídica”, continua ele.

O advogado acrescenta que, se o futuro em matéria tributária é incerto, o passado é mais ainda. “O mais preocupante de tudo isso é identificar em alguns argumentos que a quebra automática da coisa julgada é baseada na aplicação de princípios da isonomia e justiça fiscal, sem contrapor, efetivamente, os atributos da segurança jurídica em si.”

Isonomia entre contribuintes
Tales Rodrigues
, coordenador tributário do Nelson Wilians Advogados, também chamou a atenção para esse aspecto. O STJ autorizou o uso da rescisória considerando o risco de prejuízos aos princípios da livre iniciativa e concorrência, além de ofensa à isonomia em relação aos demais contribuintes. Ou seja, aqueles beneficiados por decisões anteriores estariam em vantagem em relação aos que se submeteram às teses posteriores.

Para Tales, o fato de os tribunais terem sopesado princípios de ordem econômica em desfavor da coisa julgada demonstra o desapego do modelo normativo constitucional, privilegiando o conteúdo econômico da decisão. “Garantia constitucional, tal como a coisa julgada, não pode ser superada com base em argumentos consequencialistas”, critica.

“No Estado democrático de Direito não deveria haver espaço para concessões, ainda que jurisdicionais, com o intuito de excepcionalizar normas jurídicas vigentes e válidas, especialmente a coisa julgada. Permitir a manipulação ou excepcionalização do instituto é reduzir a garantia constitucional a mero adorno normativo, além de evidenciar o déficit democrático nas decisões dos tribunais superiores”, diz ele.

Na opinião de Arthur Barreto, sócio da área tributária do DSA Advogados, o baque que as empresas prejudicadas pela desconstituição da coisa julgada sofrerão poderá também gerar um descompasso concorrencial imediato e grave, já que ocorre sob um pretexto de justiça fiscal. Só os juros de valores que poderão ser recolhidos podem superar o montante dos tributos não pagos graças à coisa julgada anterior.

“A legislação pressupõe que as decisões definitivas são, em regra, imutáveis, sob pena de instabilidade e incerteza quanto ao passado já julgado. A proteção da concorrência não deveria ser usada como pretexto para punir contribuintes que acreditaram no Judiciário — era essencial que os efeitos dessas decisões fossem, no mínimo, apenas prospectivos e resguardassem períodos anteriores, mas, infelizmente, o desfecho não foi esse.”

Modulação no STF
A questão da modulação dos efeitos da decisão também foi destacada por Hugo Funaro. Para ele, o prejuízo à segurança jurídica ocorre nem tanto pelos resultados, mas pela rejeição à proposta de modular os efeitos no Supremo Tribunal Federal. Isso porque um dos pilares da segurança jurídica é a previsibilidade, que supõe o conhecimento das regras do jogo de modo prévio e com a devida antecedência.

“No caso, a jurisprudência do STJ garantia a prevalência da coisa julgada sobre decisões posteriores do STF, que também possuía jurisprudência no sentido da intangibilidade da coisa julgada, salvo em ação rescisória ou revisional. Assim, os contribuintes tinham a justa expectativa de que tal orientação fosse confirmada.”

A princípio, as teses de repercussão geral possuíam efeitos restritos ao Poder Judiciário e considerando os processos em curso, salvo se aprovada súmula vinculante por dois terços dos ministros.

“Agora o STF decidiu que as teses de repercussão geral devem ser observadas de imediato e por todos a partir da publicação da ata do respectivo julgamento, inclusive pelos detentores de títulos judiciais definitivos. É uma novidade e, pelo menos aqui, caberia maior ponderação quanto à modulação”, conclui Funaro.

AR 6.015

Revista Consultor Jurídico, 10 de fevereiro de 2023, 13h53

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