STJ admite equidade para fixar honorários em execução extinta por CDA cancelada

A necessidade de fixação de honorários advocatícios nos casos de extinção de execução fiscal devido ao cancelamento administrativo da dívida, apesar de não estar prevista em lei, não pode causar ônus excessivo ao poder público.

Com esse entendimento, a 1ª Turma do Superior Tribunal de Justiça negou provimento ao recurso especial ajuizado contra acórdão que usou a técnica da equidade para reduzir os honorários devidos aos advogados de uma empresa de comércio de alimentos.

A empresa em questão foi alvo de execução fiscal, e os advogados interpuseram uma exceção de pré-executividade. A própria Fazenda municipal, então, cancelou administrativamente a Certidão da Dívida Ativa (CDA), e, por causa desse ato, a execução foi extinta sem resolução do mérito.

Pela Lei de Execução Fiscal, um caso como esse não geraria honorários de sucumbência. O artigo 26 prevê que, se antes da decisão de primeira instância a inscrição de divida ativa for, a qualquer título, cancelada, não haverá ônus para qualquer das partes.

No entanto, o STJ fixou jurisprudência segundo a qual é justo remunerar a defesa técnica apresentada pelo advogado do executado em momento anterior ao cancelamento administrativo da CDA. O entendimento gerou a Súmula 153 da corte.

Assim, a fixação de honorários no caso obedeceria a regra do artigo 85, parágrafo 3º, inciso II, do Código de Processo Civil de 2015, que prevê entre 8% e 10% sobre o valor da condenação ou do proveito econômico obtido.

Isso significaria, para os advogados da empresa de alimentos, R$ 107, 2 mil. O Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, porém, considerou esse montante abusivo, principalmente porque a extinção da execução fiscal sequer considerou a exceção de pré-executividade ajuizada pelos patronos.

Para evitar o enriquecimento sem causa dos advogados e verba honorária demasiadamente excessiva em desfavor da Fazenda, o tribunal de segundo grau deu provimento à apelação do município e reduziu o valor para R$ 25 mil.

Ônus excessivo
Relator no STJ, o ministro Gurgel de Faria observou que, apesar de o CPC de 2015 ter inaugurado uma exauriente disciplina para fixação de honorários, não foi capaz de evitar que sua aplicação, em algumas situações, acabe gerando distorções.

É esse o caso dos autos. Quando a Fazenda cancelou a CDA, toda a argumentação feita pela defesa do contribuinte perdeu qualquer utilidade e sequer pôde ser considerada na decisão de extinguir a execução fiscal.

“Não há, pois, objetiva e direta relação de causa e efeito entre a atuação do advogado e o proveito econômico obtido pelo seu cliente a justificar que a verba honorária seja necessariamente deferida com essa base de cálculo”, concluiu o ministro Gurgel de Faria.

Por isso, segundo ele, é cabível o uso da equidade para fixação de honorários. Não seria razoável impor à Fazenda municipal, bem menos poderosa economicamente do que a Fazenda Nacional, um ônus financeiro tão grande por espontaneamente informar o juízo sobre o cancelamento da CDA.

Entender diferente, segundo o relator, vai apenas incentivar as Fazendas municipais a manter a litigiosidade mesmo nos casos em que, prematuramente, perceber que a dívida fiscal é infundada. Haveria, ainda, o esvaziamento completo do artigo 26 da Lei de Execução Fiscal.

Distinguishing
“Esses casos em que o trabalho prestado pelo advogado da parte vencedora tenha se mostrado absolutamente desinfluente para o resultado do processo, tenho que a sua remuneração não deve ficar atrelada aos percentuais mínimos e máximos estabelecidos no parágrafo 3º, devendo ser arbitrada por juízo de equidade do magistrado”, afirmou o ministro Gurgel de Faria.

O voto destacou que isso não significa declaração de inconstitucionalidade ou negativa de vigência do parágrafo 3º do artigo 85 do CPC, mas apenas interpretação sistemática de regra do processo civil orientada conforme os princípios constitucionais da razoabilidade e da proporcionalidade.

O ministro também apontou que o caso não se enquadra na hipótese de aplicação da tese fixada pela Corte Especial do STJ que vedou o uso da equidade para fixação de honorários fora das hipóteses do artigo 85, parágrafo 8º, do CPC.

“A solução adotada no caso concreto decorre da interpretação do art. 26 da LEF, aspecto não tratado no precedente obrigatório, o que justifica a distinção. Diante desse contexto, deve ser mantido o valor dos honorários advocatícios estabelecidos mediante apreciação equitativa realizada pelo tribunal de origem”. A votação na 1ª Turma foi unânime.

Clique aqui para ler o acórdão
AREsp 1.967.127

Fonte: Conjur – 12/08/2022

EXCLUSÃO DO PIS/COFINS DE SUAS PRÓPRIAS BASES DE CÁLCULO

Com o julgamento da Tese do Século (exclusão do ICMS da base de cálculo do PIS/COFINS, RE 574.706, Tema 69 de Repercussão Geral), abriu-se a possibilidade de novo questionamento envolvendo as bases de cálculo do PIS/COFINS.

Trata-se da possibilidade das contribuições para o PIS e a COFINS serem excluídas das próprias bases de cálculo.

Esta discussão envolve a indevida e inconstitucional definição da base de cálculo das contribuições para o PIS e da COFINS a partir da redação dada pela Lei nº 12.973/2014 às Leis nº 10.637/2002, 10.833/2003 e ao Decreto-Lei nº 1.598/77.

O art. 12, §5º, do Decreto-Lei nº 1.598/77,  alterado pela Lei nº 12.973/2014, passou a dispor que “Na receita bruta incluem-se os tributos sobre ela incidentes…”.

Como o PIS/COFINS incide sobre a receita bruta, as contribuições passam a integrar as próprias bases de cálculo.

O problema é que, através da Lei nº 12.973/2014, o legislador ordinário está elastecendo, de forma não autorizada pela Constituição, o conceito de receita definido pelo legislador constituinte.

Se a Constituição fixou a competência da União para instituir contribuições de seguridade social sobre a receita ou faturamento das empresas (art. 195, I, “b”), os tributos exigidos com fundamento nesta competência não podem incidir sobre os ingressos ou entradas no caixa que não são destinados ao contribuinte, mas repassados à União, aos Estados e/ou aos Municípios.

Isto, aliás, foi o que ficou decidido pelo STF no julgamento da Tese do Século.

Embora a tese da exclusão do PIS/COFINS de suas próprias bases de cálculo já esteja em discussão no STF (RE 1.233.096, Tema 1.067 da Repercussão Geral), nunca é demais lembrar: no julgamento da Tese do Século, só puderam obter o aproveitamento integral do que foi pago indevidamente os contribuintes que, à época do julgamento, já mantinham discussão idêntica em juízo.

Por isso é que as empresas não podem perder tempo e devem ingressar em juízo para discutir a exclusão do PIS/COFINS de suas próprias bases de cálculo.

Fica o alerta…

STJ decidirá sobre responsabilidade solidária do credor fiduciário na execução de IPTU do imóvel alienado

A Primeira Seção do Superior de Justiça (STJ) decidiu afetar os Recursos Especiais 1.949.182, 1.959.212 e 1.982.001, de relatoria da ministra Assusete Magalhães, para julgamento sob o rito dos repetitivos.

A questão submetida a julgamento, cadastrada como Tema 1.158 na base de dados do STJ, está assim ementada: “Definir se há responsabilidade tributária solidária e legitimidade passiva do credor fiduciário na execução fiscal em que se cobra IPTU de imóvel objeto de contrato de alienação fiduciária”. 

O colegiado determinou a suspensão – em segunda instância e no STJ – dos recursos especiais e dos agravos em recurso especial fundados na mesma questão de direito, conforme o artigo 256-L do Regimento Interno do STJ (RISTJ).

Carência na exposição dos preceitos legais para decidir sobre o tema 

No REsp 1.949.182, indicado pelo Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) como representativo da controvérsia, o município de São Paulo sustentou que o credor fiduciário é responsável pelo pagamento dos tributos incidentes sobre o imóvel objeto de alienação fiduciária, possuindo, dessa forma, legitimidade para figurar no polo passivo da execução fiscal para a cobrança do Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana (IPTU) que onera o bem. 

O TJSP entendeu pela ilegitimidade passiva do credor fiduciário, o qual, para a corte, tem apenas a propriedade resolúvel e a posse indireta do bem tributado. 

Ao propor a afetação do tema, Assusete Magalhães ressaltou que, nos casos que envolvem essa controvérsia, os acórdãos recorridos se fundamentam em jurisprudência do tribunal de origem, “por vezes com a transcrição de ementas de julgados desfavoráveis à tese do recorrente, sem, contudo, indicar, expressamente, o preceito legal”.

Controvérsia infraconstitucional e multiplicidade de recursos 

A relatora considerou ainda que o Supremo Tribunal Federal – como apontou o município de São Paulo –, ao julgar o RE 1.320.059, correspondente ao Tema 1.139/STF, proclamou que “é infraconstitucional, a ela se aplicando os efeitos da ausência de repercussão geral, a controvérsia relativa à legitimidade passiva do credor fiduciário para figurar em execução fiscal de IPTU incidente sobre imóvel objeto de alienação fiduciária”.

Além disso, destacou que, ao tratar do caráter multitudinário da demanda, o presidente da Comissão Gestora de Precedentes e de Ações Coletivas do STJ, ministro Paulo de Tarso Sanseverino, informou que foram identificados em pesquisa à jurisprudência da corte dez acórdãos e 720 decisões monocráticas proferidas por ministros da Primeira e da Segunda Turma contendo controvérsia semelhante à dos autos. 

Recursos repetitivos geram economia de tempo e segurança jurídica

O Código de Processo Civil de 2015 regula, no artigo 1.036 e seguintes, o julgamento por amostragem, mediante a seleção de recursos especiais que tenham controvérsias idênticas. Ao afetar um processo, ou seja, encaminhá-lo para julgamento sob o rito dos repetitivos, os ministros facilitam a solução de demandas que se repetem nos tribunais brasileiros. 

A possibilidade de aplicar o mesmo entendimento jurídico a diversos processos gera economia de tempo e segurança jurídica. No site do STJ, é possível acessar todos os temas afetados, bem como conhecer a abrangência das decisões de sobrestamento e as teses jurídicas firmadas nos julgamentos, entre outras informações.

Leia o acórdão de afetação do REsp 1.949.182.

Fonte: Notícias do STJ

Setor de turismo se qualifica ao Perse mesmo sem inscrição no Cadastur

Criado pela Lei 14.148/2021, o Programa Especial de Recuperação do Setor de Eventos (Perse) visa a mitigar as drásticas perdas experimentadas por esse segmento em razão da Covid-19. Em sua redação original, a lei trazia os seguintes benefícios: renegociação de dívidas fiscais e não fiscais (artigo 3º), indenização sobre a folha de salários para empresas que tiveram mais de 50% de redução no faturamento entre 2019 e 2020 (artigo 6º) e programas voltados às operações de crédito de empresas privadas dos setores críticos (artigo 8º).

São elegíveis ao Perse as pessoas jurídicas, inclusive sem fins lucrativos, que exercem direta ou indiretamente as atividades de: (1) realização ou comercialização de congressos, feiras, eventos esportivos, sociais, promocionais ou culturais, feiras de negócios, shows, festas, festivais, simpósios ou espetáculos em geral, casas de eventos, buffets sociais e infantis, casas noturnas e casas de espetáculos; (2) hotelaria em geral; e (3) administração de salas de exibição cinematográfica; e (4) prestação de serviços turísticos, conforme o artigo 21 da Lei 11.771/2008 (artigo 2º, parágrafo 1º).

Essa última lei, por sua vez (artigo 21), enquadra como serviços turísticos as atividades de: (4.1) meios de hospedagem; (4.2) agências de turismo; (4.3)transportadoras turísticas; (4.4) organizadoras de eventos; (4.5) parques temáticos; e (4.6) acampamentos turísticos, acrescentando que, “atendidas as condições próprias”, podem ainda cadastrar-se no Ministério do Turismo as sociedades empresárias que exerçam as atividades de: (4.7) restaurantes, cafeterias, bares e similares; (4.8) centros ou locais destinados a convenções e/ou a feiras e a exposições e similares; (4.9) parques temáticos aquáticos e empreendimentos dotados de equipamentos de entretenimento e lazer; (4.10)marinas e empreendimentos de apoio ao turismo náutico ou à pesca desportiva; (4.11) casas de espetáculos e equipamentos de animação turística; (4.12) organizadores, promotores e prestadores de serviços de infraestrutura, locação de equipamentos e montadoras de feiras de negócios, exposições e eventos; (4.13) locadoras de veículos para turistas; e (4.14) prestadores de serviços especializados na realização e promoção das diversas modalidades dos segmentos turísticos, inclusive atrações turísticas e empresas de planejamento, bem como a prática de suas atividades.

Voltando à Lei do Perse, tem-se que o seu artigo 2º, parágrafo 2º, prevê que ato do Ministério da Economia publicará os códigos da Classificação Nacional de Atividades Econômicas (CNAE) que se enquadram na definição de setor de eventos. Em atenção ao comando foi editada a Portaria ME 7.163/2021, que enumera os CNAEs elegíveis nos Anexos I (eventos) e II (turismo) e exige, quanto a este último, que a empresa candidata aos benefícios estivesse inscrita no Cadastur na data da publicação da lei (artigo 1º, parágrafo 2º).

Pois bem: em 18/3/2022, após a derrubada do veto aposto pelo presidente da República, foi publicado o artigo 4º da lei, trazendo mais uma vantagem para as empresas enquadráveis no Perse: redução a zero, por 60 meses, das alíquotas de IRPJ, CSLL, PIS e Cofins. Desde então, tem-se discutido sobre a aplicabilidade a esse novo benefício, para as empresas do setor de turismo e sobretudo para aquelas listadas nos itens 4.7 e seguintes da enumeração acima, da exigência de prévia inscrição no Cadastur.

Como visto, a inclusão de todas elas no programa passa-se exclusivamente no nível legal, decorrendo da combinação dos artigos 4º, caput, e 2º, parágrafo 1º, da Lei do Perse e do artigo 21 da Lei 11.771/2001 (caput para as listadas nos itens 4.1 a 4.6 e parágrafo único para as seguintes). É certo que o parágrafo único submete a inscrição facultativa no Cadastur das empresas ali referidas ao atendimento das “condições próprias”. Impõe-se, assim, uma análise da normativa infralegal para identificar que condições são essas. 

A matéria é tratada diretamente na Portaria MTur 38/2021, em vigor quando da promulgação das partes vetadas, a qual apenas exige inscrição no CNPJ que indique como atividade principal ou secundária uma das referidas em qualquer dos subitens do item iv da lista acima, autorizando o Ministério do Turismo a solicitar outros documentos “para averiguar a compatibilidade das atividades desenvolvidas com a constante do CNPJ” (artigo 3º, caput e parágrafo 1º). Isto é: condições inteiramente genéricas, que qualquer empresa do ramo atenderá sem dificuldade. A conclusão não se altera diante das anteriores Portarias MTur 105/2018, vigente quando da votação da lei do Perse, e 130/2011, que primeiro instituiu o Cadastur.

Nenhum acréscimo fazem os dispositivos invocados como substrato normativo da Portaria MTur 38/2021, a saber: o próprio artigo 22 da Lei 11.771/2008 (que atribui ao Executivo a competência para definir as “condições especiais”), o artigo 19 do Decreto 7.381/2010 e os artigos 10 e 11 do Decreto 946/93. A irrelevância do segundo decreto para o tema aqui discutido é nítida, por disciplinar a profissão de guia de turismo. O primeiro, que regulamenta a Lei 11.771/2008, reitera a competência do Ministério do Turismo para definir os documentos necessários à inscrição no Cadastur, exigindo apenas respeito à matriz de cadastro de cada atividade e ao CNAE (artigo 19, caput e parágrafo único) — novamente o minimum minimorum, incapaz de excluir qualquer agente que atue de maneira regular no mercado.

Em resumo: nem as leis do Perse e do turismo, nem o decreto que regulamenta esta última, nem a portaria que disciplina o Cadastur exigem a inscrição das empresas que exercem as atividades listadas nos itens 4.7 e seguintes acima, ou a condicionam à satisfação de requisitos aptos a diferenciar uma categoria especial de prestadores. Quem faz tal imposição, de forma completamente autônoma e desarrazoada _ impondo condição que não é aplicável sequer ao setor de origem do cadastro —, é apenas a Portaria ME 7.163/2021.

E assim age, claro está, para exigir tributos onde a lei os dispensa, isto é, para afastar — quanto aos contribuintes que não cumpram essa condição — a alíquota zero de IRPJ, CSLL, PIS e Cofins instituída pelo legislador sem qualquer referência à inscrição no Cadastur. A ofensa ao princípio da legalidade é manifesta (Constituição, artigo 150, inciso I; CTN, artigo 97, inciso II). Ora, mesmo os decretos, editados pela autoridade máxima do Poder Executivo, devem fiel obediência às leis (Constituição, artigo 84, inciso IV; CTN, artigo 99). Muito menos poderiam inovar na ordem jurídica as chamadas normas complementares do artigo 100 do CTN, que se situam abaixo daqueles e dentre as quais estão os atos administrativos expedidos pelas autoridades administrativas (inciso I) — caso da citada portaria. 

E tem mais: ainda que a exigência de cadastramento fosse válida, tem-se que pegou os referidos contribuintes inteiramente de surpresa. Com efeito, para eles a medida sempre foi facultativa, como demonstrado, e apenas em 18/3/2022 — data da publicação dos trechos vetados da lei do Perse — teria passado a ser obrigatória para o gozo das alíquotas zero. Contudo, nos termos da Portaria ME 7.163/2021, o contribuinte deve comprovar o cumprimento da condição “na data da publicação da Lei 14.148/2021”, ou seja, desde 3/5/2021. 

A ofensa à irretroatividade (Constituição, artigo 150, inciso III, alínea “a”; CTN, artigo 105) é chapada. Trata-se, à toda evidência, de condição impossível, que deve ser tida por não escrita, por aplicação analógica dos artigos 123, inciso I, e 124 do Código Civil [1]. Essa a solução dada pelo STF em situação análoga, também relativa ao descasamento temporal entre a instituição da condição e a data em que a conduta do particular seria exigível (1ª Turma, RE 409.730/PR, relator ministro Marco Aurélio, DJ 29/4/2005).

Por fim, ainda que superadas as duas claras invalidades, um terceiro aspecto bastaria para afastar a exigência de cadastramento em 3/5/2021 para o gozo das alíquotas zero. Trata-se do nítido abalo que o requisito traz à livre concorrência, princípio geral da ordem econômica previsto no artigo 170, inciso IV, da Constituição e recentemente importado de forma expressa para o sistema tributário pelo artigo 146-A [2].

De fato, como poderiam uma empresa nova, instituída após aquela data, ou uma empresa antiga que não tenha exercido a faculdade (ou mesmo o dever, para aquelas referidas nos itens 4.1 a 4.6 da lista acima) de se inscrever no Cadastur — e que, assim, ficariam sujeitas à incidência normal de IRPJ, CSLL, PIS e Cofins — concorrer com outra que, inscrita no prazo assinado pela portaria, estivesse livre dessas exações? A impossibilidade é total é basta para acarretar a inconstitucionalidade do requisito, em boa hora rechaçado pelas decisões judiciais já proferidas na matéria.


[1] “Art. 123. Invalidam os negócios jurídicos que lhes são subordinados:

I – as condições física ou juridicamente impossíveis, quando suspensivas;

(…)

Art. 124. Têm-se por inexistentes as condições impossíveis, quando resolutivas, e as de não fazer coisa impossível.”

[2] “Art. 146-A. Lei complementar poderá estabelecer critérios especiais de tributação, com o objetivo de prevenir desequilíbrios da concorrência, sem prejuízo da competência de a União, por lei, estabelecer normas de igual objetivo.”

Igor Mauler Santiago é sócio-fundador do escritório Mauler Advogados, mestre e doutor em Direito Tributário pela Universidade Federal de Minas Gerais, membro da Comissão de Direito Tributário do Conselho Federal da OAB e presidente do Instituto Brasileiro de Direito e Processo Tributário (IDPT).

Valdecir de Souza é advogado e contador, especialista em Direito Tributário pela FGV e sócio de Mauler Advogados.

Fonte: Conjur – 10/08/2022

Relevância no REsp e possíveis impactos nas discussões tributárias

Por André Torres dos Santos

Com a publicação da Emenda Constitucional nº 125, em 14.7.2022, os recursos especiais dirigidos ao Superior Tribunal de Justiça interpostos após essa data deverão demonstrar a relevância das questões de direito federal infraconstitucional discutidas no caso. Trata-se da concretização de um anseio antigo, há muito defendido pelos integrantes da Corte, fundamentado na necessidade de reduzir o número de recursos que chegam ao Tribunal — objetivo ainda não suficientemente alcançado pela sistemática dos recursos repetitivos.

A comparação com o instituto da repercussão geral é inevitável. De fato, ambos os requisitos possuem o objetivo comum de otimizar a prestação jurisdicional em sede especial e extraordinária, concebendo instrumentos que viabilizam o efetivo exercício do papel constitucional deferido a cada um dos Tribunais, aos quais cabe dizer o direito, isto é, fixar a legítima e última interpretação da legislação federal — seja constitucional, pelo Supremo Tribunal Federal, seja infraconstitucional, pelo STJ.

Ao invocarem a relevância, ambos os instrumentos buscam delimitar a atuação desses Tribunais a contornos objetivos, de modo que suas decisões solucionem controvérsias jurídicas relevantes do ponto de vista social, econômico e político. A ideia é a de que a atuação das Cortes Superiores se volte à fixação de pautas de conduta, isto é, à fixação de teses passíveis de generalização, ao invés da simples solução de casos concretos que não se prestam a esse fim. 

Esse raciocínio pode ser diretamente extraído do parecer da Comissão Especial da Câmara dos Deputados [1] criada para analisar a proposta de Emenda Constitucional nº 39/2021, que originou a mudança. Entre os fundamentos que respaldaram a aprovação da proposta, destacam-se as afirmações de que a iniciativa “se funda em experiência prévia bem-sucedida, a repercussão geral”, que figurou como “fator decisivo para a drástica redução do número de feitos que hoje chegam ao STF”, bem como de que a proposta “tem o mérito de conduzir o recurso especial à sua concepção originária, reforçando-lhe a natureza de apelo extraordinário e evitando que o STJ atue como órgão meramente revisor de terceira instância”

Embora não se questione a necessidade de racionalização do sistema recursal brasileiro, tampouco o papel de Corte de precedentes constitucionalmente atribuído ao STJ (função que se viu ampliada pela adoção do Sistema de Precedentes pelo Código de Processo Civil de 2015), a aproximação ideológica entre os institutos da recém-criada relevância do recurso especial e da repercussão geral merece reflexões mais profundas e, desde já, enseja dúvidas e preocupações. 

Como ponto de partida, tem-se a compreensão de que, entre as funções institucionais precípuas do STJ, também se encontra a de uniformizar, pela via do recurso especial, a jurisprudência dos Tribunais pátrios em matéria de direito federal infraconstitucional. O recurso extraordinário, diversamente, não possui papel semelhante. Muito embora o STF também seja investido do papel de Corte Constitucional e possa, em abstrato, delimitar o alcance de normas constitucionais com eficácia erga omnes, não pretendeu o constituinte que o recurso extraordinário figurasse como instrumento de pacificação de divergências de interpretação sobre o texto constitucional.

Disso decorre a constatação de que, a rigor, o sistema brasileiro, desde a origem, admite a coexistência de interpretações divergentes (embora possíveis) em torno de normas constitucionais, caso sobre elas não se caracterize uma violação ao Texto Constitucional ou qualquer outra hipótese de cabimento do recurso extraordinário. Assim, o surgimento do requisito da repercussão geral (e, consequentemente, a exigência dos pressupostos da relevância e da transcendência da questão constitucional) não trouxe uma ruptura sistêmica, mas apenas ampliou uma possibilidade já existente de que determinadas hipóteses não venham a ser submetidas ao Supremo.

Não se pode dizer o mesmo do recurso especial. O próprio sistema prevê que, diante de sentidos possíveis de determinada norma de direito federal infraconstitucional, manifestados em interpretações divergentes por outros Tribunais, caberá ao STJ, na condição de legítimo intérprete, definir a interpretação que atenderá ao verdadeiro sentido e conteúdo da norma. 

Nesse cenário, pode-se cogitar hipóteses em que a lei federal seja interpretada de modo divergente por Tribunais locais e que, por falta de relevância, essas interpretações não venham a ser uniformizadas pelo STJ. Nesses casos, estar-se-ia diante de inequívoca supressão de uma das funções precípuas do recurso especial — o que não ocorre com o recurso extraordinário, mesmo após a instituição do requisito da repercussão geral. Prejuízos à segurança jurídica, à isonomia e à eficiência da prestação jurisdicional são evidentes — e suscitam questionamentos legítimos quanto ao atendimento dos objetivos da reforma processual que culminou na edição do CPC de 2015, pautado, entre outros princípios, na diretriz de que os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente.

É certo que o constituinte derivado deixou a cargo do legislador ordinário a delimitação de hipóteses nas quais a relevância será presumida, para além daquelas já trazidas pela EC, que abarcam ações penais, ações de improbidade administrativa, ações cujo valor da causa seja superior a quinhentos salários-mínimos, ações que possam gerar inelegibilidade e hipóteses em que o acórdão recorrido contrariar jurisprudência dominante do STJ. O papel do legislador, portanto, aliado à delimitação a ser feita pela própria jurisprudência do Tribunal, será de fundamental importância para eliminar possíveis distorções – especialmente no que diz respeito ao direito tributário, ora objeto de análise.

Isso, porque as próprias hipóteses de relevância presumida já previstas no novo parágrafo 3º do artigo 105 da Constituição, especialmente a que adota como parâmetro o valor da causa, dão margem a essas distorções, na medida em que compreendem as possibilidades de que uma mesma controvérsia tributária, envolvendo valores distintos em cada caso concreto, tenha sua análise rejeitada pela Corte em relação a determinado contribuinte e, ao mesmo tempo, seja admitida para outro contribuinte, ou, ainda, para o mesmo contribuinte, mas relativamente a outro período, ou outra autuação fiscal, que compreenda valores superiores ao mínimo legal. 

O critério do valor da causa, especialmente na esfera tributária, não reflete, necessariamente, a relevância da questão controvertida e pode variar, no caso a caso, em torno da mesma questão jurídica.

Vale pontuar que, no contencioso fiscal, comumente se opta por discutir em abstrato teses tributárias em ações de cunho declaratório, seja em ações declaratórias de inexistência de relação jurídico-tributária, seja em mandados de segurança, nos quais se admite, ainda, que se veicule a pretensão de declaração do direito à compensação tributária, a ser apurada e efetivada na esfera administrativa. Em todos esses casos, eventual proveito econômico não está vinculado diretamente à ação judicial em que se discute o reconhecimento do direito e, portanto, não está refletido no valor atribuído à causa.

Estariam os contribuintes, então, sob o risco de ter negado seu acesso ao STJ tão somente em virtude do instrumento processual utilizado para discutir judicialmente o seu direito, ou, pior, sujeitos a recolher o tributo tido por indevido, ou aguardar efetivas cobranças por meio de autos de infração ou de executivos fiscais, para que possam discutir o mérito da questão tributária em ações judiciais diretamente vinculadas ao proveito econômico em questão, de repetição de indébito ou de desconstituição de cobranças?

Especialmente no que se refere às discussões tributárias, há que se estabelecer um critério que impeça tratamento diverso à mesma questão jurídica. Analisando-se em perspectiva, seriam raros os temas tributários que não sofreriam tratamento distinto quanto à admissibilidade do recurso especial unicamente em virtude da regra que confere relevância presumida a processos que envolvam valores superiores a quinhentos salários-mínimos. É dizer que, ainda que se entendesse que a questão de fundo (controvérsia tributária) não possui relevância, sempre seria possível que determinada situação concreta envolvendo aquela controvérsia fosse admitida com base nessa presunção.

Solução para essa distorção residiria na adoção, pelo legislador ordinário, do critério de se reconhecer relevância presumida aos processos envolvendo a Fazenda Pública, de modo a assegurar que não haja, em matéria de direito tributário, tratamento anti-isonômico a contribuintes tão somente em razão da expressão econômica de determinado caso concreto, ou em razão do instrumento processual utilizado para buscar o reconhecimento do seu direito ou, ainda, do momento em que opta pela discussão judicial da questão — se antes ou depois da cobrança ou do recolhimento. Tal critério não destoaria dos objetivos da criação do novo filtro, já que, como os temas tributários, invariavelmente, interessam a todo o universo de contribuintes, possuem óbvia repercussão econômica na respectiva esfera de competência tributária (federal, estadual ou municipal) e, por envolver a Fazenda Pública, relacionam-se diretamente com a arrecadação tributária — atividade estatal de financiamento de serviços públicos e que funciona como vetor de desenvolvimento socioeconômico. Os requisitos da relevância e da transcendência, nesses casos, são inquestionáveis e, portanto, também devem ser presumidos.

Outro aspecto que merece reflexão se relaciona aos recursos especiais nos quais se discutem nulidades verificadas nos julgamentos em 2º grau de jurisdição, tais como as que resultam em negativa de prestação jurisdicional, em cerceamento de defesa ou, ainda, em julgamentos dissociados da causa ou do pedido, resultando em provimento jurisdicional citraextra ou ultra petita. A apreciação de questões dessa natureza já não é admitida em sede de recurso extraordinário, dado que o Supremo Tribunal Federal afastou a repercussão geral desses temas por reputá-los intrinsecamente vinculados à legislação infraconstitucional.

Historicamente, o STJ assumiu relevante papel no controle de legalidade dos julgamentos proferidos pelos Tribunais de apelação, não sendo raros os casos de anulação dos julgamentos de 2º grau e de determinação de nova apreciação da causa a partir de balizas fixadas pela instância Superior. Trata-se, por exemplo, de situações em que determinado fundamento, embora tivesse aptidão para influenciar o resultado, não tenha sido adequadamente enfrentado ou, ainda, de hipóteses em que não foi observada norma processual de aplicação obrigatória, tal como a técnica de julgamento ampliado do recurso de apelação nos casos de julgamentos não unânimes.

Considerando-se os rígidos limites cognitivos do recurso especial, no qual não se admite o reexame de fatos e a análise de legislação local, por exemplo, a adequada apreciação e a correta delimitação desses elementos pelas instâncias ordinárias são de fundamental importância para o exercício do controle de legalidade pelo Superior Tribunal de Justiça. Especificamente em discussões tributárias, disposições de leis estaduais e municipais (bem como elementos fáticos a elas relacionados) mostram-se extremamente relevantes — dado que o sistema tributário nacional, pautado na repartição de competências rígidas, defere a esses entes federados a competência para instituir e cobrar alguns dos principais tributos que compõem a matriz tributária brasileira, tais como aqueles sobre bens e serviços — o ICMS e o ISS. Esses elementos, ainda, muitas vezes se relacionam a requisitos jurídicos estabelecidos na legislação federal, dado que cabe ao legislador complementar federal estabelecer normas gerais sobre tributos de competência dos estados e dos municípios.

Como irá reagir o STJ em relação a recursos especiais que, por força de obstáculos processuais quanto à questão de fundo, são essencialmente fundados na nulidade do acórdão recorrido? A questão processual, por si só, será tida por relevante, ou deverá ser examinada a questão de fundo discutida no processo, ainda que ela não seja submetida à instância superior nesse momento processual?

A rigor, a inobservância de ritos procedimentais ou da própria lei processual consiste em violação autônoma à legislação federal e, portanto, possui relevância também autônoma, mesmo nos casos em que a discussão de fundo, por sua natureza, venha a enfrentar obstáculos de conhecimento no STJ. Na seara tributária, ainda que questões de relevo sejam disciplinadas por legislação local ou sejam intimamente dependentes da análise de aspectos materiais da incidência do tributo e da ocorrência do fato gerador (essencialmente fáticas), é de suma importância que essas questões sejam adequadamente decididas pelos Tribunais locais e que, quando verificados vícios de julgamento, haja a possibilidade de correção (controle de legalidade) pelo STJ.

Esses e diversos outros aspectos, a serem objeto de reflexões futuras, deverão ser levados em consideração tanto pelo legislador ordinário, na regulamentação infraconstitucional, quanto pelo próprio Superior Tribunal de Justiça, na construção jurisprudencial do conceito de “relevância”, para que o instrumento venha a se compatibilizar com o papel constitucional do Tribunal e não resulte na supressão de competências que lhe foram atribuídas pelo constituinte originário.

É preciso clareza, ainda, na compreensão de que a função de impedir a subida de recursos ao Tribunal já é exercida pela sistemática dos recursos repetitivos, por meio da qual se fixam teses jurídicas aplicáveis a todos os demais processos sobre aquele tema, uniformizando-se, assim, a jurisprudência. O requisito da relevância, na forma como instituído, não concebe meios de uniformização (seja porque prevê exceções relacionadas ao valor envolvido, e não à matéria, seja porque prevê que a análise seja feita pelas Turmas, e não pelos Órgãos uniformizadores do Tribunal — Seções e Corte Especial) e, assim, sua utilização deverá encontrar meios de harmonização com o atendimento das demais competências constitucionais atribuídas ao STJ.

Fonte: Conjur 10/08/2022

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