Por André Torres dos Santos
Com a publicação da Emenda Constitucional nº 125, em 14.7.2022, os recursos especiais dirigidos ao Superior Tribunal de Justiça interpostos após essa data deverão demonstrar a relevância das questões de direito federal infraconstitucional discutidas no caso. Trata-se da concretização de um anseio antigo, há muito defendido pelos integrantes da Corte, fundamentado na necessidade de reduzir o número de recursos que chegam ao Tribunal — objetivo ainda não suficientemente alcançado pela sistemática dos recursos repetitivos.
A comparação com o instituto da repercussão geral é inevitável. De fato, ambos os requisitos possuem o objetivo comum de otimizar a prestação jurisdicional em sede especial e extraordinária, concebendo instrumentos que viabilizam o efetivo exercício do papel constitucional deferido a cada um dos Tribunais, aos quais cabe dizer o direito, isto é, fixar a legítima e última interpretação da legislação federal — seja constitucional, pelo Supremo Tribunal Federal, seja infraconstitucional, pelo STJ.
Ao invocarem a relevância, ambos os instrumentos buscam delimitar a atuação desses Tribunais a contornos objetivos, de modo que suas decisões solucionem controvérsias jurídicas relevantes do ponto de vista social, econômico e político. A ideia é a de que a atuação das Cortes Superiores se volte à fixação de pautas de conduta, isto é, à fixação de teses passíveis de generalização, ao invés da simples solução de casos concretos que não se prestam a esse fim.
Esse raciocínio pode ser diretamente extraído do parecer da Comissão Especial da Câmara dos Deputados [1] criada para analisar a proposta de Emenda Constitucional nº 39/2021, que originou a mudança. Entre os fundamentos que respaldaram a aprovação da proposta, destacam-se as afirmações de que a iniciativa “se funda em experiência prévia bem-sucedida, a repercussão geral”, que figurou como “fator decisivo para a drástica redução do número de feitos que hoje chegam ao STF”, bem como de que a proposta “tem o mérito de conduzir o recurso especial à sua concepção originária, reforçando-lhe a natureza de apelo extraordinário e evitando que o STJ atue como órgão meramente revisor de terceira instância”.
Embora não se questione a necessidade de racionalização do sistema recursal brasileiro, tampouco o papel de Corte de precedentes constitucionalmente atribuído ao STJ (função que se viu ampliada pela adoção do Sistema de Precedentes pelo Código de Processo Civil de 2015), a aproximação ideológica entre os institutos da recém-criada relevância do recurso especial e da repercussão geral merece reflexões mais profundas e, desde já, enseja dúvidas e preocupações.
Como ponto de partida, tem-se a compreensão de que, entre as funções institucionais precípuas do STJ, também se encontra a de uniformizar, pela via do recurso especial, a jurisprudência dos Tribunais pátrios em matéria de direito federal infraconstitucional. O recurso extraordinário, diversamente, não possui papel semelhante. Muito embora o STF também seja investido do papel de Corte Constitucional e possa, em abstrato, delimitar o alcance de normas constitucionais com eficácia erga omnes, não pretendeu o constituinte que o recurso extraordinário figurasse como instrumento de pacificação de divergências de interpretação sobre o texto constitucional.
Disso decorre a constatação de que, a rigor, o sistema brasileiro, desde a origem, admite a coexistência de interpretações divergentes (embora possíveis) em torno de normas constitucionais, caso sobre elas não se caracterize uma violação ao Texto Constitucional ou qualquer outra hipótese de cabimento do recurso extraordinário. Assim, o surgimento do requisito da repercussão geral (e, consequentemente, a exigência dos pressupostos da relevância e da transcendência da questão constitucional) não trouxe uma ruptura sistêmica, mas apenas ampliou uma possibilidade já existente de que determinadas hipóteses não venham a ser submetidas ao Supremo.
Não se pode dizer o mesmo do recurso especial. O próprio sistema prevê que, diante de sentidos possíveis de determinada norma de direito federal infraconstitucional, manifestados em interpretações divergentes por outros Tribunais, caberá ao STJ, na condição de legítimo intérprete, definir a interpretação que atenderá ao verdadeiro sentido e conteúdo da norma.
Nesse cenário, pode-se cogitar hipóteses em que a lei federal seja interpretada de modo divergente por Tribunais locais e que, por falta de relevância, essas interpretações não venham a ser uniformizadas pelo STJ. Nesses casos, estar-se-ia diante de inequívoca supressão de uma das funções precípuas do recurso especial — o que não ocorre com o recurso extraordinário, mesmo após a instituição do requisito da repercussão geral. Prejuízos à segurança jurídica, à isonomia e à eficiência da prestação jurisdicional são evidentes — e suscitam questionamentos legítimos quanto ao atendimento dos objetivos da reforma processual que culminou na edição do CPC de 2015, pautado, entre outros princípios, na diretriz de que os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente.
É certo que o constituinte derivado deixou a cargo do legislador ordinário a delimitação de hipóteses nas quais a relevância será presumida, para além daquelas já trazidas pela EC, que abarcam ações penais, ações de improbidade administrativa, ações cujo valor da causa seja superior a quinhentos salários-mínimos, ações que possam gerar inelegibilidade e hipóteses em que o acórdão recorrido contrariar jurisprudência dominante do STJ. O papel do legislador, portanto, aliado à delimitação a ser feita pela própria jurisprudência do Tribunal, será de fundamental importância para eliminar possíveis distorções – especialmente no que diz respeito ao direito tributário, ora objeto de análise.
Isso, porque as próprias hipóteses de relevância presumida já previstas no novo parágrafo 3º do artigo 105 da Constituição, especialmente a que adota como parâmetro o valor da causa, dão margem a essas distorções, na medida em que compreendem as possibilidades de que uma mesma controvérsia tributária, envolvendo valores distintos em cada caso concreto, tenha sua análise rejeitada pela Corte em relação a determinado contribuinte e, ao mesmo tempo, seja admitida para outro contribuinte, ou, ainda, para o mesmo contribuinte, mas relativamente a outro período, ou outra autuação fiscal, que compreenda valores superiores ao mínimo legal.
O critério do valor da causa, especialmente na esfera tributária, não reflete, necessariamente, a relevância da questão controvertida e pode variar, no caso a caso, em torno da mesma questão jurídica.
Vale pontuar que, no contencioso fiscal, comumente se opta por discutir em abstrato teses tributárias em ações de cunho declaratório, seja em ações declaratórias de inexistência de relação jurídico-tributária, seja em mandados de segurança, nos quais se admite, ainda, que se veicule a pretensão de declaração do direito à compensação tributária, a ser apurada e efetivada na esfera administrativa. Em todos esses casos, eventual proveito econômico não está vinculado diretamente à ação judicial em que se discute o reconhecimento do direito e, portanto, não está refletido no valor atribuído à causa.
Estariam os contribuintes, então, sob o risco de ter negado seu acesso ao STJ tão somente em virtude do instrumento processual utilizado para discutir judicialmente o seu direito, ou, pior, sujeitos a recolher o tributo tido por indevido, ou aguardar efetivas cobranças por meio de autos de infração ou de executivos fiscais, para que possam discutir o mérito da questão tributária em ações judiciais diretamente vinculadas ao proveito econômico em questão, de repetição de indébito ou de desconstituição de cobranças?
Especialmente no que se refere às discussões tributárias, há que se estabelecer um critério que impeça tratamento diverso à mesma questão jurídica. Analisando-se em perspectiva, seriam raros os temas tributários que não sofreriam tratamento distinto quanto à admissibilidade do recurso especial unicamente em virtude da regra que confere relevância presumida a processos que envolvam valores superiores a quinhentos salários-mínimos. É dizer que, ainda que se entendesse que a questão de fundo (controvérsia tributária) não possui relevância, sempre seria possível que determinada situação concreta envolvendo aquela controvérsia fosse admitida com base nessa presunção.
Solução para essa distorção residiria na adoção, pelo legislador ordinário, do critério de se reconhecer relevância presumida aos processos envolvendo a Fazenda Pública, de modo a assegurar que não haja, em matéria de direito tributário, tratamento anti-isonômico a contribuintes tão somente em razão da expressão econômica de determinado caso concreto, ou em razão do instrumento processual utilizado para buscar o reconhecimento do seu direito ou, ainda, do momento em que opta pela discussão judicial da questão — se antes ou depois da cobrança ou do recolhimento. Tal critério não destoaria dos objetivos da criação do novo filtro, já que, como os temas tributários, invariavelmente, interessam a todo o universo de contribuintes, possuem óbvia repercussão econômica na respectiva esfera de competência tributária (federal, estadual ou municipal) e, por envolver a Fazenda Pública, relacionam-se diretamente com a arrecadação tributária — atividade estatal de financiamento de serviços públicos e que funciona como vetor de desenvolvimento socioeconômico. Os requisitos da relevância e da transcendência, nesses casos, são inquestionáveis e, portanto, também devem ser presumidos.
Outro aspecto que merece reflexão se relaciona aos recursos especiais nos quais se discutem nulidades verificadas nos julgamentos em 2º grau de jurisdição, tais como as que resultam em negativa de prestação jurisdicional, em cerceamento de defesa ou, ainda, em julgamentos dissociados da causa ou do pedido, resultando em provimento jurisdicional citra, extra ou ultra petita. A apreciação de questões dessa natureza já não é admitida em sede de recurso extraordinário, dado que o Supremo Tribunal Federal afastou a repercussão geral desses temas por reputá-los intrinsecamente vinculados à legislação infraconstitucional.
Historicamente, o STJ assumiu relevante papel no controle de legalidade dos julgamentos proferidos pelos Tribunais de apelação, não sendo raros os casos de anulação dos julgamentos de 2º grau e de determinação de nova apreciação da causa a partir de balizas fixadas pela instância Superior. Trata-se, por exemplo, de situações em que determinado fundamento, embora tivesse aptidão para influenciar o resultado, não tenha sido adequadamente enfrentado ou, ainda, de hipóteses em que não foi observada norma processual de aplicação obrigatória, tal como a técnica de julgamento ampliado do recurso de apelação nos casos de julgamentos não unânimes.
Considerando-se os rígidos limites cognitivos do recurso especial, no qual não se admite o reexame de fatos e a análise de legislação local, por exemplo, a adequada apreciação e a correta delimitação desses elementos pelas instâncias ordinárias são de fundamental importância para o exercício do controle de legalidade pelo Superior Tribunal de Justiça. Especificamente em discussões tributárias, disposições de leis estaduais e municipais (bem como elementos fáticos a elas relacionados) mostram-se extremamente relevantes — dado que o sistema tributário nacional, pautado na repartição de competências rígidas, defere a esses entes federados a competência para instituir e cobrar alguns dos principais tributos que compõem a matriz tributária brasileira, tais como aqueles sobre bens e serviços — o ICMS e o ISS. Esses elementos, ainda, muitas vezes se relacionam a requisitos jurídicos estabelecidos na legislação federal, dado que cabe ao legislador complementar federal estabelecer normas gerais sobre tributos de competência dos estados e dos municípios.
Como irá reagir o STJ em relação a recursos especiais que, por força de obstáculos processuais quanto à questão de fundo, são essencialmente fundados na nulidade do acórdão recorrido? A questão processual, por si só, será tida por relevante, ou deverá ser examinada a questão de fundo discutida no processo, ainda que ela não seja submetida à instância superior nesse momento processual?
A rigor, a inobservância de ritos procedimentais ou da própria lei processual consiste em violação autônoma à legislação federal e, portanto, possui relevância também autônoma, mesmo nos casos em que a discussão de fundo, por sua natureza, venha a enfrentar obstáculos de conhecimento no STJ. Na seara tributária, ainda que questões de relevo sejam disciplinadas por legislação local ou sejam intimamente dependentes da análise de aspectos materiais da incidência do tributo e da ocorrência do fato gerador (essencialmente fáticas), é de suma importância que essas questões sejam adequadamente decididas pelos Tribunais locais e que, quando verificados vícios de julgamento, haja a possibilidade de correção (controle de legalidade) pelo STJ.
Esses e diversos outros aspectos, a serem objeto de reflexões futuras, deverão ser levados em consideração tanto pelo legislador ordinário, na regulamentação infraconstitucional, quanto pelo próprio Superior Tribunal de Justiça, na construção jurisprudencial do conceito de “relevância”, para que o instrumento venha a se compatibilizar com o papel constitucional do Tribunal e não resulte na supressão de competências que lhe foram atribuídas pelo constituinte originário.
É preciso clareza, ainda, na compreensão de que a função de impedir a subida de recursos ao Tribunal já é exercida pela sistemática dos recursos repetitivos, por meio da qual se fixam teses jurídicas aplicáveis a todos os demais processos sobre aquele tema, uniformizando-se, assim, a jurisprudência. O requisito da relevância, na forma como instituído, não concebe meios de uniformização (seja porque prevê exceções relacionadas ao valor envolvido, e não à matéria, seja porque prevê que a análise seja feita pelas Turmas, e não pelos Órgãos uniformizadores do Tribunal — Seções e Corte Especial) e, assim, sua utilização deverá encontrar meios de harmonização com o atendimento das demais competências constitucionais atribuídas ao STJ.
Fonte: Conjur 10/08/2022