Limites de alçada no âmbito do PAT e mandado de segurança

A atividade jurisdicional prestada, em caráter atípico [1], pela administração pública por meio de seus órgãos de contencioso-administrativo tributário submete-se aos princípios constitucionais que compõem o modelo constitucional de processo, os quais devem ser interpretados e aplicados à luz das particularidades das lides tributárias. Essa premissa assume grande relevância quando se tem em mira as noções de contraditório e ampla defesa que, por expressa determinação constitucional (artigo 5°, LV, CF/88 [2]), hão de ser garantidas ao jurisdicionado no âmbito dos processos administrativos, incluídos, neste escaninho, os de natureza tributária.

É nesse contexto que a questão atinente à garantia ao duplo grau de jurisdição no âmbito dos processos administrativos tributários (PATs) tem lugar, em especial em casos específicos em que a legislação processual mitiga o acesso do sujeito passivo às instâncias administrativas de segundo grau a partir de critérios que fogem à razoabilidade. 

O duplo grau de jurisdição, não há dúvidas, constitui corolário direto dos cânones do contraditório e da ampla defesa, contando, também, com menção expressa no texto constitucional (“com os meios e recursos a ela inerentes”), o que faz dele uma garantia inafastável do sujeito passivo tributário no âmbito dos processos administrativos 

Nesse sentido, Rodrigo Dalla Pria explica:

“Corolário dos cânones constitucionais da ampla defesa e da motivação é o – não menos importante – princípio do duplo grau de jurisdição, que também se manifesta no contexto dos processos administrativos tributários. Por duplo grau de jurisdição há que se entender o direito do jurisdicionado de, em face de erro ou de imprecisão do pronunciamento jurisdicional, reprovocar a atividade jurisdicional a fim de obter juízo de revisão da decisão exarada” [3].

De fato, na grande maioria das legislações que estruturam os contenciosos administrativo-tributários dos diversos entes políticos tributantes, essa garantia é expressamente resguardada. Exemplo disso é o que ocorre no âmbito federal, onde o Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), assume a condição de órgão de segundo grau de jurisdição, e, também, na legislação do contencioso tributário paulista, onde essa função é exercida pelo Tribunal de Impostos e Taxas (TIT). 

O que se questiona, nesse específico contexto, não é exatamente a existência ou não de um regime procedimental que garanta ao sujeito passivo o direito à revisão, por órgão de segundo grau de jurisdição, das decisões administrativas que lhes sejam desfavoráveis, mas sim de regras específicas que mitigam o acesso do jurisdicionado aos indigitados órgãos de segundo grau. 

É esse, exatamente, o caso da chamada “regra ou limite de alçada”, que restringe o direito de acesso do sujeito passivo tributário aos órgãos de segunda instância administrativa em razão do valor envolvido na lide. Em tais situações, a despeito de se garantir o direito à recorribilidade, eventual insurgência do sujeito passivo será objeto de apreciação pelo mesmo órgão que proferiu a decisão impugnada, o que resulta em prejuízo às noções de imparcialidade e independência. 

Os chamados “limites de alçada” apresentam-se, portanto, como regras que impedem o acesso aos órgãos de segunda instância administrativa nos casos em que o débito tributário exigido corresponde a valor igual ou inferior ao teto fixado pela legislação processual. No estado de São Paulo, por exemplo, essa limitação está disposta no artigo 40 da Lei estadual nº 13.457/2009 [4] e corresponde a 20 mil Ufesps [5]. Já em âmbito federal, a regra foi inserida pelo artigo 23 da Lei nº 13.988/2020[6], que estabelece o teto 60 salários mínimos.

Assim, autos de infração, devidamente impugnados, que tenham como objeto crédito tributário inferior ao “valor de alçada”, se mantidos em primeira instância, não poderão ser levados à apreciação dos órgãos colegiados de segundo grau. O que se tem, em verdade, é o mero exercício da recorribilidade perante o mesmo órgão que proferiu a decisão recorrida, o qual estará incumbido de exarar verdadeiro juízo de (auto)revisão.

Ora, para que haja pleno exercício do direito ao duplo grau de jurisdição não basta garantir ao jurisdicionado a possibilidade de obtenção de um juízo de revisão exarado pela mesma autoridade fiscal que proferiu a decisão recorrida. É necessário que o direito à recorribilidade seja exercido perante órgão de instância superior que possa exercer o controle da legalidade da decisão recorrida de forma independente e imparcial. 

Ademais, não se pode admitir que sujeitos passivos que tenham sido autuados por débitos fiscais de valores distintos sejam submetidos a regimes processuais diferentes, onde aqueles que são titulares de débitos maiores tenham a pleno gozo do direito de recorrer, tal como posto no texto Constitucional, e outros contribuintes, titulares de débitos menores, tenham essa garantia tolhida. Trata-se, em verdade, de uma clara e indesejada inversão de valores, pois o débito fiscal que tem maior potencial lesivo ao erário possui maiores e melhores garantias de controle do que aquele que tem menor potencial lesivo.

Não é preciso maiores esforços interpretativos para concluir que esse tratamento discriminatório ofende, flagrantemente, o princípio da isonomia [7], por não manter correlação lógica entre o fator erigido como critério de distinção (valor da dívida tributária) e a discriminação legal decidida em função dele (não acessibilidade à segunda instância administrativa) [8]

Em nosso sentir, essa situação, por violar direito líquido e certo do sujeito passivo às instâncias recursais ordinárias, autoriza o manejo do mandado de segurança — preventivo ou repressivo — voltado ao processamento, remessa e conhecimento do recurso pelo órgão colegiado administrativo de segunda instância. Em tais circunstâncias, vale insistir, o uso do mandado de segurança terá como fim específico garantir o direito do sujeito passivo ao acesso às instâncias recursais de segundo grau, não estando vinculado a quaisquer questões de mérito do recurso, isto é, da dívida tributária em si, o que afasta a possibilidade de eventual alegação de concomitância entre os processos administrativos e judicial (artigo 38, parágrafo único, da LEF) [9]


[1] Mais detalhes a respeito dessa tomada de posição nos seguintes trabalhos desta coluna:
https://www.conjur.com.br/2022-abr-10/processo-tributario-reforma-contencioso-administrativo-tributario

https://www.conjur.com.br/2022-mai-01/processo-tributario-reforma-contencioso-tributario-parte
https://www.conjur.com.br/2022-abr-17/processo-tributariocooperacao-entre-processo-judicial-administrativo-tributarios

[2] CF/88: “Art. 5º – (…)
LV – aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes.”

[3] DALLA PRIA, Rodrigo. Direito Processual Tributário. 2ª Ed., São Paulo: Noeses, 2020, p. 655. 

[4] Lei estadual nº 13.457/2009: “Art. 40 – Da decisão favorável à Fazenda Pública do Estado no julgamento da defesa, em que o débito fiscal exigido na data da lavratura do auto de infração corresponda a até 20.000 (vinte mil) Unidades Fiscais do Estado de São Paulo – UFESPs, poderá o autuado interpor recurso voluntário, dirigido ao Delegado Tributário de Julgamento”.

[5] Uma Ufesp corresponde a R$ 31,97 (para o ano de 2022), de maneira que, no âmbito do estado de São Paulo o acesso ao TIT supõe dívida tributária superior a R$ 639.400,00.

[6] Lei federal nº 13.988/2020: “Art. 23 – Observados os princípios da racionalidade, da economicidade e da eficiência, ato do Ministro de Estado da Economia regulamentará: 

I – o contencioso administrativo fiscal de pequeno valor, assim considerado aquele cujo lançamento fiscal ou controvérsia não supere 60 (sessenta) salários mínimos;
II – a adoção de métodos alternativos de solução de litígio, inclusive transação, envolvendo processos de pequeno valor.
Parágrafo único. No contencioso administrativo de pequeno valor, observados o contraditório, a ampla defesa e a vinculação aos entendimentos do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais, o julgamento será realizado em última instância por órgão colegiado da Delegacia da Receita Federal do Brasil de Julgamento da Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil, aplicado o disposto no Decreto nº 70.235, de 6 de março de 1972, apenas subsidiariamente”.

[7] “Trata-se, não há dúvidas, de um expediente discriminatório que viola frontalmente o cânone da isonomia, especialmente se considerarmos o fato de os maiores carecedores de justiça tributária serem os sujeitos passivos com menor capacidade econômica e aqueles que realmente se preocupam com uma gestão tributária de excelência (o que não os exime de erros e autuações).” (DALLA PRIA, Rodrigo. Direito Processual Tributário. 2ª ed., São Paulo: Noeses, 2020, p. 658). 

[8] MELLO, Celso Antonio Bandeira de. In Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade. 3ª edição, 9ª tiragem. São Paulo: Malheiros, 2001.

[9] Lei de Execuções Fiscais (LEF): “Artigo 38 – (…)

Parágrafo único — A propositura, pelo contribuinte, de ação prevista neste artigo importa em renúncia ao poder de recorrer na esfera administrativa e desistência do recurso acaso interposto”.

Danilo Monteiro de Castro é advogado, mestre e doutor em Direito Tributário pela PUC-SP, professor do Ibet, juiz do TIT-SP e pesquisador do grupo de estudos de Processo Tributário Analítico do Ibet.

Renato Turatti Miranda é advogado, sócio na Junqueira de Carvalho e Murgel Advogados Associados, mestrando e especialista em Direito Tributário pelo Ibet.

Revista Consultor Jurídico, 11 de setembro de 2022, 8h00

DECISÃO: Falecimento de devedor de crédito tributário antes da citação extingue execução fiscal

A 2ª Turma do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1) decidiu que a União não pode cobrar do espólio nem dos herdeiros a dívida de sócio de uma empresa devedora de tributos que faleceu antes de ser citado na ação de execução fiscal proposta pela Fazenda Nacional.

Esse entendimento foi dado durante o julgamento de agravo de instrumento interposto pelo espólio de um homem na ação de execução contra a decisão que rejeitou o pedido para extinção da ação sem resolução do mérito.

O relator, desembargador federal Hercules Fajoses, destacou em seu voto que as jurisprudências do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e do TRF1 são no sentido de que o redirecionamento da execução fiscal contra o espólio pode ocorrer somente “quando o falecimento do contribuinte ocorrer após sua citação, nos autos da execução fiscal, não sendo admitido, ainda, quando o óbito do devedor ocorrer em momento anterior à própria constituição do crédito tributário”.

O magistrado afirmou que a certidão de óbito comprova que o codevedor faleceu em 28/09/2013, antes da sua citação em 21/01/2015, para figurar no polo passivo na qualidade de corresponsável pelos débitos tributários da devedora principal.

Para o desembargador, “a inclusão do espólio ou dos seus sucessores no polo passivo da demanda configura verdadeira substituição do sujeito passivo da cobrança, o que é vedado, nos termos da Súmula 392 do STJ”.

O Colegiado, por unanimidade, deu provimento ao agravo de instrumento, nos termos do voto do relator.

Processo: 1010048-06.2018.4.01.0000 Data do julgamento: 02/08/2022

 Data da publicação: 04/08/2022

PG/CB

Fonte: Assessoria de Comunicação Social

Tribunal Regional Federal da 1ª Região

ARTIGO DA SEMANA. PERSE: NOVA BATALHA JUDICIAL À VISTA

Buscando atenuar os efeitos da queda de faturamento em razão da pandemia de  COVID-19 foi instituído o PERSE (Programa Emergencial de Retomada do Setor de Eventos) através da Lei nº 14.148/2021.

Após a derrubada de vetos presidenciais, a Lei do PERSE concede duas vantagens importantes: (i) transação com a União dos débitos tributários e não tributários em até 145 parcelas e com descontos de até 70% e (ii)redução para zero das alíquotas de PIS, COFINS, IRPJ e CSLL pelo prazo de 60 meses, a partir de 18/03/2022.

O problema para o gozo dos benefícios do PERSE não está na Lei nº 14.148/2021, mas na Portaria do Ministro da Economia nº 7.163/2021.

Segundo a Portaria ME 7.163/2021, somente farão jus aos benefícios do PERSE as pessoas jurídicas que, exercendo as atividades econômicas relacionadas no Anexo II da, já estivessem em situação regular no CADASTUR (arts. 21 e 22 da Lei nº 11.771/2008) na data de publicação da Lei nº 14.148/2021.

Com esta restrição, bares, restaurantes, lanchonetes e diversas outras empresas não poderão negociar seus débitos em até 145 parcelas com descontos e muito menos deixarão de pagar PIS/COFINS/IRPJ/CSLL pelo prazo de 5 (cinco) anos!

A grande questão que está sendo levada ao Judiciário é uma só: pode uma Portaria Ministerial criar restrições ao gozo de incentivo fiscal não prevista na Lei?

A jurisprudência do STF e do STJ responde negativamente a esta questão.

Inúmeros julgados dos Tribunais Superiores afirmam que as Portarias, inequívocas normas infralegais, não podem inovar, criar condições não previstas em ato do Poder Legislativo.

Consequentemente, as empresas interessadas em usufruir os benefícios do PERSE, mas que não tenham inscrição no CADASTRUR, têm boas chances de obter uma decisão judicial que lhes garanta a transação de seus débitos em até 145 meses e o não pagamento de PIS/COFINS/IRPJ/CSLL pelo prazo de 5 (cinco) anos, contados de 18/03/2022.

A hora é essa!!!!

Propostas aprovadas buscam reformar processos administrativo e tributário

A comissão criada em março deste ano para propor a atualização do Código Tributário Nacional e da legislação que trata do processo administrativo na administração pública encerrou as atividades, nesta quarta-feira (6/9), com a entrega de 16 propostas estruturantes. Entre anteprojetos de lei e ações para simplificação de normas, as medidas propõem ampla reforma em ações que incentivam a solução consensual de conflitos em matéria tributária, a redução do contencioso tributário, a desjudicialização, a diminuição da litigiosidade entre fisco e contribuintes, a simplificação de processos e a composição entre as partes.

Composta por 20 juristas, a comissão foi instalada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) e pelo Senado Federal, sendo coordenada pela ministra do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Regina Helena Costa. Nos temas relacionados ao processo tributário, a relatoria foi feita pelo secretário especial de Programas, Pesquisa e Gestão Estratégica do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), Marcus Livio Gomes. Nos assuntos vinculados ao processo administrativo, a relatoria ficou a cargo do secretário-geral do CNJ, Valter Shuenquener.

Na entrega oficial do relatório conclusivo ao presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, o presidente do CNJ, ministro Luiz Fux, avaliou que as propostas são de extrema importância para o Sistema de Justiça. “A reforma do processo administrativo e tributário visa dar mais eficiência para que os procedimentos sejam mais rápidos. Ao mesmo tempo, criamos instrumentos para a desjudicialização do processo administrativo e tributário em iniciativa que vai ajudar a desabarrotar os tribunais.”

Fux salientou que os anteprojetos foram formulados em 180 dias e representam um trabalho de alta complexidade e profundidade. “Realizado por um verdadeiro pool da inteligência jurídica do direito tributário e administrativo do país”, disse o ministro em referência aos juristas e especialistas que integraram a comissão.

Tributário

Na parte do processo tributário, a comissão entregou oito propostas estruturantes: nova lei ordinária do processo administrativo tributário da União; nova lei ordinária de execução fiscal; nova lei ordinária de custas da justiça federal; lei complementar a inserir norma geral de prevenção de litígios, consensualidade e do processo administrativo tributário no Código Tributário Nacional; lei ordinária de criação de arbitragem em matéria tributária aduaneira; lei ordinária de mediação tributária da União; lei ordinária sobre processo de consulta tributária da União; e lei complementar de criação do Código de Defesa do Contribuinte.

Relator dessas proposições, Marcus Livio Gomes afirmou que o trabalho privilegiou a consensualidade e a ampliação do direito de defesa e das garantias dos contribuintes, “sem descuidar principalmente da Fazenda Pública e dos recursos públicos, que são a base e o alicerce para o cumprimento das decisões fundamentais da Carta Constitucional”.

Administrativo

Na seara do processo administrativo, também foram apresentadas oito expressivas contribuições: “O caráter nacional da matéria procedimento em processo administrativo”; “Processo eletrônico como instrumento para o incremento da eficiência e transparência da administração”; “O regime jurídico do ato administrativo”; “O silêncio da administração pública”; “A consagração da participação popular por meio de audiência pública e consulta pública no processo administrativo”; “Revisão da Lei n. 9.784/1999 que disciplina o processo administrativo federal”; “Análise de impacto”; e “Contribuições para o aperfeiçoamento do regramento do direito administrativo sancionador”.

Sobre a importância da contribuição, o relator Valter Shuenquener destacou que o trabalho foi norteado pela preocupação com o contraditório e a ampla defesa, visando à desjudicialização e à busca pela neutralidade administrativa na condução dos processos.

Propostas estruturantes

Na visão da ministra Regina Helena, as propostas são estruturantes para o aperfeiçoamento da legislação e voltadas à melhora das relações jurídicas entre os contribuintes e o fisco no plano das relações processuais administrativas e judiciárias. “É uma contribuição de grande envergadura que acreditamos possa ser aproveitada pelo Senado.”

Ao receber o relatório final, Rodrigo Pacheco disse que as propostas serão encaminhadas como projetos de lei do Senado e que os juristas serão chamados a participar de debates. Na iniciativa de converter as propostas em proposições legislativas mirando a conversão em leis efetivas, o presidente do Senado informou que irá tratar da relevância da reforma do processo administrativo e tributário com o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira. “Pretendo instaurar uma comissão para tratar desses temas para que tenhamos a ligeireza necessária na apreciação e aprovação pelo Senado.”

Texto: Luciana Otoni
Edição: Thaís Cieglinski
Agência CNJ de Notícias

Modulação que bate em Chico deveria bater em Francisco

Tem sido objeto de controvérsia, e geradora de insegurança jurídica, a maneira como um instituto — criado para dar segurança — vem sendo utilizado pelo Supremo Tribunal Federal: a modulação dos efeitos de suas decisões, ou, em outros termos, a limitação temporal de sua eficácia.

Um aspecto que pode ser destacado é a atenção aos requisitos que deveriam ser observados, a fim de se fazer uma modulação desse tipo, independentemente da lide subjacente ou das partes que nela litigam. Trata-se de algo excepcional, destinado, nas palavras de Paulo Bonavides, a evitar que se crie, com a declaração de inconstitucionalidade, uma situação “ainda mais inconstitucional”.

Precisamente por isso, a modulação exige, primeiro, que se esteja diante de situação na qual a declaração de inconstitucionalidade criará efeitos negativos excepcionais e expressivos.

Mas não só. É preciso, ainda, que, além do efeito negativo excepcional, se esteja diante de situação em que a pessoa que sofre tais efeitos, ou ônus, agia de boa fé e não poderia antevê-los, não sendo razoável exigir dela que os tivesse previsto.

Esses são, por exemplo, os requisitos exigidos pela Corte Europeia de Justiça (ECJ) para proceder a essa limitação temporal, não se permitindo que a mera necessidade de restituir tributos indevidos — consequência lógica, e nada excepcional, de toda decisão que afirma inválida a norma que os cria — seja motivo para modulações. Também não se modula quando a invalidade decorre da aplicação de entendimento jurisprudencial que era, ou deveria ser, conhecido por parte de quem editou a norma em sentido contrário, criando o tributo mesmo assim.

O Supremo Tribunal Federal talvez não esteja sendo tão atento a tais premissas, notadamente quando se trata de lei instituidora de tributo depois declarada inconstitucional. A modulação tem sido a regra, como se nota em casos como o da exclusão do ICMS da base de cálculo do PIS e da Cofins, da invalidade das alíquotas excessivas do ICMS incidente sobre energia elétrica, das normas que ampliavam os prazos decadenciais e prescricionais para lançamento e cobrança de contribuições previdenciárias, ou do diferencial de alíquota do ICMS nas operações destinadas a não contribuintes do imposto, apenas para citar alguns exemplos. Levantada a questão apenas da tribuna, pela Fazenda que se percebe perdedora durante a sessão, ou mesmo só depois, em declaratórios, a modulação foi concedida em todos esses casos, porque a mera necessidade de restituição seria um “prejuízo”.

Sem entrar no mérito, aqui, da questão de saber se havia alguma dúvida sobre a essencialidade da energia elétrica, ou da necessidade de lei complementar para traçar prazos de decadência tributária, por exemplo, o fato é que igual complacência não se tem visto, em situações nas quais o novo entendimento, de cuja limitação temporal se cogita, prejudica o contribuinte que se pautava por critérios anteriores e pela decisão substituídos. Nesses casos, aliás, há um agravante: o contribuinte não raro confia em jurisprudência que já existe, pacífica, afirmando a invalidade do tributo, e quando a questão chega ao STF, este altera esse entendimento, passando a afirmar devida a exação. A mudança, que por vezes se dá na jurisprudência da própria Corte Maior, pega contribuintes de surpresa, e pune aqueles que inclusive haviam há muito deixado de recolher a exação. Foi o que se deu, por exemplo, no que tange à revogação da isenção de Cofins das sociedades de profissionais, cuja invalidade havia sido reconhecida pelo STJ (Súmula 276/STJ), tendo o STF reiteradas vezes afirmado que a questão não lhe competia examinar, por ser meramente infraconstitucional. Com a alteração do entendimento, afirmou-se válida a revogação, e devida a contribuição por todos aqueles que vinham há anos sem a recolher, por confiarem na jurisprudência.

Atualmente, coloca-se na corte a questão de saber se deve ser modulada a decisão que afirmou válida a incidência de contribuição patronal sobre o terço de férias (RE 1.072.485). Muitos contribuintes vinham, há anos, sem recolher a exação, confiando em uma jurisprudência pacífica formada a respeito. Até que a Corte Maior afirma a validade da cobrança, sem qualquer ressalva ou observação excepcional quanto àqueles que, amparados no entendimento anterior, não a vinham recolhendo. Suscitada então a necessidade de modulação, diante da surpresa da reviravolta jurisprudencial, a questão está pendente, interrompida por pedido de destaque do ministro Fux.

Caso não haja a modulação, neste caso, haverá mais do que um prejuízo expressivo — pois às exações não computadas como custo, que as empresas agora terão de pagar, ainda se acrescerão multas e juros —; haverá um golpe na confiança de quem assim agia por levar a sério as orientações do Poder Judiciário. E, se a modulação ressalvar apenas aqueles que já entraram com ações até alguma data a ser estabelecida no passado, o que às vezes ocorre, ter-se-á mais uma sinalização para que, na dúvida, se judicialize o quanto antes toda e qualquer questão, incentivo nada bom diante do atual cenário de congestionamento desnecessário do Poder Judiciário. Mas o pior, se não houver modulação, será a mensagem de que só tem direito à segurança o poder público, que edita normas inconstitucionais para se beneficiar, não raro em desrespeito à jurisprudência já firmada; já o cidadão, em nome do qual historicamente se criaram Constituições e catálogos de direitos fundamentais, destinatário último destes, quando segue os pronunciamentos judiciais e com base neles se organiza, não tem.

Hugo de Brito Machado Segundo é mestre e doutor em Direito, professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará, professor do Centro Universitário Christus (graduação/mestrado), membro do Instituto Cearense de Estudos Tributários (Icet) e da World Complexity Science Academy (WCSA), advogado e visiting scholar da Wirtschaftsuniversität de Viena (Áustria).

Revista Consultor Jurídico, 7 de setembro de 2022, 8h00

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