No último mês de setembro de corrente ano tive o prazer de participar em Belo Horizonte, na vetusta casa de Afonso Pena, do I Seminário Conjunto de Direito Tributário e Aduaneiro, realizado em parceria entre a Fundação Getúlio Vargas de São Paulo (FGV-SP) e a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) [1], oportunidade em que tratei do tema a ser abordado no texto de hoje.
Como é sabido, a classificação fiscal apresenta enorme relevância jurídica e sob diferentes perspectivas. Para o Direito Econômico, pode refletir em questões de direito concorrencial. Já sob o viés do Direito Tributário, pode impactar em maior ou menor incidência de uma dada exação. E, para a perspectiva do Direito Aduaneiro, a classificação fiscal de uma mercadoria pode, entre outra coisas, definir os tipos de exigências documentais em uma dada operação de comércio exterior e, consequentemente, o tipo de fiscalização a ser empregada pela aduana brasileira.
Preocupado em garantir essa atuação da aduana, o legislador imputa ao administrado o dever de classificar adequadamente a mercadoria objeto do Comex, sob pena de incidência da multa prescrita no artigo 711, inciso I do Regulamento Aduaneiro [2] (RA), equivalente a 1% sobre o valor aduaneiro da mercadoria indevidamente classificada.
Em regra, a incidência dessa multa se dá em procedimentos de revisão aduaneira [3], em que a fiscalização afasta a classificação fiscal originalmente indicada pelo administrado (classificação X) e, por sua vez, enquadra a mercadoria em outra classificação fiscal (classificação Y), usualmente mais gravosa sob a perspectiva de incidência tributária, o que gera a lavratura de autos de infração tanto para exigir a diferença tributária, como também para imputar a sanção aduaneira sob análise.
Acontece que, uma vez instaurado o contencioso administrativo fiscal na hipótese acima referida, não raramente a conclusão adota pelo Carf é no sentido de que nem a indicação do administrado (classificação X) nem a da fiscalização (classificação Y) são adequadas, imputando ao bem analisado uma terceira classificação (classificação Z).
Nessa situação, a jurisprudência do Carf é uníssona em afastar a incidência tributária, decorrente da divergência de classificação fiscal [4]. A questão que permanece controversa, todavia, diz respeito a incidência ou não da multa de 1% prevista no citado artigo 711, inciso I do RA.
De forma muito objetiva, as questões por trás dessa celeuma se resumem nos seguintes pontos:
1. o tipo infracional do art. 711, inciso I do RA depende de um elemento subjetivo, ainda que na modalidade culposa?
2. em caso positivo, a existência de uma terceira classificação fiscal atribuída pelo CARF configuraria em erro escusável em favor do administrado, afastando a multa aplicada?
3. a existência de uma terceira classificação fiscal, já em sede de contencioso administrativo, não redundaria em uma decisão surpresa, o que, por sua vez, seria ofensivo ao devido processo legal substancial e seus consectários lógico: o contraditório e a ampla defesa?
Antes, todavia, de apresentar nossas considerações para tais perguntas, é importante desde já apontar que o CARF já apontou uma derradeira solução ao problema, retratada pela sua Súmula 161, verbis:
“O erro de indicação, na Declaração de Importação, da classificação da mercadoria na Nomenclatura Comum do Mercosul, por si só, enseja a aplicação da multa de 1%, prevista no art. 84, I da MP nº 2.158-35, de 2001, ainda que órgão julgador conclua que a classificação indicada no lançamento de ofício seria igualmente incorreta” (negrito nosso).
Súmulas nada mais são do que enunciados normativos sintetizadores do posicionamento de um órgão julgador para uma dada questão posta ao seu julgamento. Percebe-se, portanto, que a súmula é fruto da jurisprudência do tribunal, a qual, por seu turno, se consolida a partir de precedentes do órgão para a matéria. Daí ser possível afirmar que uma súmula não tem vida própria, motivo pelo qual a sua convocação para a resolução de um caso depende, obrigatoriamente [5], da identificação dos motivos que lhe deram origem.
Ademais, levando em consideração que, sob uma perspectiva estritamente processual, as súmulas encerram em definitivo um debate [6], já que impeditivas de recurso, é necessário que o seu advento pressuponha a maior aproximação possível de um esgotamento discursivo quanto ao tema sumulado, sob pena da súmula lavrada precipitar, indevidamente, o fim de um debate jurídico ainda pouco amadurecido.
Dito isso, é relevante identificar os precedentes que originaram a Súmula Carf 161, sendo eles: Acórdãos da CSRF nºs 9303-006.331 [7] (21/2/2018), 9303-008.194 [8], (21/2/2019) e 9303-006.474 [9] (14/3/2018), todos julgados por voto de qualidade antes da prescrição do artigo 19-E da Lei nº 10.522/02. Aliás, aqui já se encontra a primeira crítica a súmula 161 do tribunal, uma vez que oriunda de um posicionamento dividido e que só teria encampado a tese fazendária por ser anterior ao sobredito artigo 19-E da Lei nº 10.522/02 [10].
Divergimos, todavia, dessa crítica. O posicionamento de um órgão judicativo colegiado é do órgão e não dos seus integrantes, pouco importando se essa posição se deu por votação unânime, maioria ou voto de qualidade. A decisão exarada se reveste de institucionalidade, se desprendendo das pessoas dos seus julgadores e se vinculando ao órgão julgador [11]. Do contrário, qualquer mudança na composição do órgão sempre será um convite à revisão de precedentes, o que atenta contra as ideias de estabilidade, integridade e coerência das decisões de caráter judicativo (artigo 926 do CPC).
O problema da súmula 161 é outro, qual seja, a sua anímica motivação, haja vista a carestia do debate travado nos precedentes que lhe originaram. Em outros termos, tais precedentes sequer se aproximaram do esgotamento discursivo alhures mencionado.
Ao se analisar o primeiro dos acórdãos aqui citados, o de número 9303-006.331, o que se observa é um debate circunscrito à adequada classificação fiscal do produto em apreço, um circuito integrado eletrônico. Não há, entretanto, uma linha sequer, por parte do voto vencedor [12], a respeito das discussões que efetivamente deveriam ter pautado o julgamento e que foram acima sintetizadas em três questões.
Já nos acórdãos 9303-008.194 e 9303-006.474, a motivação se resume a dois pontos: (1) a multa por erro de classificação é infração objetiva, ou seja, independeria de qualquer elemento volitivo; e, (2) o erro do contribuinte é suficiente para a incidência do tipo infracional, pouco importando o erro de classificação também perpetrado pela fiscalização, donde conclui, com um salto hermenêutico, inexistir preterição ao direito de defesa do administrado.
Em relação ao primeiro fundamento, embora discordemos dele [13], há uma manifestação do colegiado a seu respeito. O que não há, entretanto, é uma posição a respeito de que o apontamento de uma terceira classificação fiscal pelo Carf implica uma decisão surpresa e, portanto, ofensiva ao devido processo legal, ao contraditório e a ampla defesa. A lacônica afirmação do voto vencedor de que não vislumbra “preterição ao direito de defesa” no caso concreto é o típico exemplar de decisão imotivada [14]. Há, portanto, notória deficiência discursiva no debate, o que impediria se cogitar o advento de um enunciado sumular para o tema.
Por fim, já aproveitamos esse espaço para responder àqueles que entendem que, no que tange a multa analisada, o apontamento de uma classificação fiscal seria um “plus” motivacional por parte da fiscalização e, portanto, medida desnecessária na lavratura de autos de infração com esse específico propósito, bastando ao fisco apontar o erro na classificação perpetrada pelo administrado. Discordamos, diametralmente, desse posicionamento.
O ato de classificar é ato comissivo, de organizar em classes. Assim, ao apontar um pretenso erro na classificação fiscal eleita pelo administrado, é dever da fiscalização também indicar a classificação adequada, em respeito a imperiosa necessidade de motivação dos atos administrativos, obstáculo democrático ao arbítrio estatal. No mais, empregando as pertinentes palavras do já citado conselheiro Charles Mayer de Castro Souza em sua declaração de voto:
“…para apontar um erro de classificação fiscal, o Fisco deve indicar as regras de classificação não observadas e a classificação fiscal correta. E assim é porque, não fosse pelo caráter norteador das Regras de Interpretação do Sistema Harmonizado – as quais se direcionam a apontar como chegar à correta classificação fiscal do produto importando, não à errada! – Administração Tributária deve informar ao administrado (no caso, o importador), não apenas o erro que cometera, mas, também, como deveria ter agido, a fim de que o erro não venha a se repetir, com todas as consequências daí advindas (o art. 2º, parágrafo único, da Lei n. 9.784, de 199, impõe que, nos processos administrativos, a atuação da Administração Pública se dê segundo padrões éticos de probidade, decoro e boa-fé” (negrito do autor, grifo nosso).
Sim, queridos leitores, o Estado brasileiro ainda é democrático e, como tal, impõe que a administração pública haja com boa-fé, não podendo essa impor “pegadinhas” ao seu mandatário, o administrado.
[1] Para assistir as palestras proferidas: https://youtu.be/aNBFLCyeifk.
[2] Art. 711. Aplica-se a multa de um por cento sobre o valor aduaneiro da mercadoria:
I – classificada incorretamente na Nomenclatura Comum do Mercosul, nas nomenclaturas complementares ou em outros detalhamentos instituídos para a identificação da mercadoria;
(…).
§ 2º. O valor da multa referida no caput será de R$ 500,00 (quinhentos reais), quando do seu cálculo resultar valor inferior, observado o disposto nos §§ 3o a 5º.
[3] O tema da revisão aduaneira já foi objeto, em alguma medida, de outras colunas desse espaço: ConJur – Alteração de critério jurídico na revisão aduaneira; ConJur – Subfaturamento e subvaloração em matéria aduaneira e o Carf; ConJur – Sobre os limites à revisão do despacho decisório.
[4] A título de exemplo, vide os Acórdãos Carf 9303-01.153, 3301-003.646 e 3301-003.147.
[5] O termo obrigatório é aqui empregado não apenas de forma retórica, mas também na sua perspectiva técnica, haja vista o mandamento estabelecido no art. 489, § 1º, inciso V do CPC, aplicável subsidiariamente aos processos administrativos fiscais, nos termos do art. 15 do mesmo Codex. Esse é o teor dos prescritivos citados:
Art. 489 (…).
§ 1º. Não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que:
(…).
V – se limitar a invocar precedente ou enunciado de súmula, sem identificar seus fundamentos determinantes nem demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta àqueles fundamentos;
(…).
Art. 15. Na ausência de normas que regulem processos eleitorais, trabalhistas ou administrativos, as disposições deste Código lhes serão aplicadas supletiva e subsidiariamente.
[6] No âmbito do Carf, tal previsão está prevista no art. 67, §3º do seu Regimento Interno. Aliás, nesse tribunal, a contraposição à súmula é tão séria que pode redundar na perda do mandato daquele Conselheiro que resolver contrariá-la, nos termos do art. 45, inciso VI do Ricarf.
[7] Conselheiro relator Demes Brito.
[8] Conselheiro redator designado Andrada Márcio Canuto Natal.
[9] Conselheiro relator Andrada Márcio Canuto Natal.
[10] Endossando tais críticas: ConJur – Perder-se no labirinto: o erro na classificação de mercadorias.
[11] Tratando da importância desse senso de institucionalidade judicativa para fins de desenvolvimento de um modelo de stare decisismetodologicamente adequado, já nos manifestamos aqui: RIBEIRO, Diego Diniz. Precedentes em matéria tributária e o novo CPC. In: Paulo César Conrado. (Org.). Processo Tributário Analítico. São Paulo: Noeses, 2016, v. III, p. 111-140.
[12] Esse debate só é trazido na declaração de voto do conselheiro Charles Mayer de Castro Souza.
[13] Coadunamos com o posicionamento externado por Leonardo Branco e Thális Andrade em preciso texto publicado pelo ConJur (ConJur – “Amanhã vai ser outro dia” — o Direito Aduaneiro Sancionador). Assim se manifestam os citados autores:
Assim, a menos que se abdique da capacidade de decidir, ou a menos que os vivos admitam ser inteiramente governados pelos mortos, para usar a famosa frase de Comte [9], depurando-se da atividade de dizer o direito qualquer inclinação pessoal, a responsabilidade é comungada pela comunidade dos intérpretes. Não nos permitimos conceber a existência de um ‘(…) juiz maquínico que recebe a lei posta como comando suficientemente apto para legitimar qualquer ação ou regime de força, por mais distante que os efeitos estejam com relação às suas crenças‘.
Um exemplo disso é a equivocada leitura que parte da doutrina e da jurisprudência fizeram do § 2º do artigo 94 do Decreto-Lei nº 37/66, reproduzida nos regulamentos de 1985, 2002 e 2009, decretando-se a responsabilização ‘objetiva’ de qualquer pessoa física ou jurídica que concorra para uma violação da legislação aduaneira, por ação ou omissão. O dispositivo, ao cominar a pena ‘independente da intenção’ do agente ou responsável, pouco importando a efetividade, natureza e extensão dos efeitos do ato, tornou prescindível a comprovação do dolo (salvo disposição expressa em contrário, ou seja, aqueles casos em que a demonstração da intenção dolosa é textualmente exigida), e jamais da culpa, como demonstramos em outras oportunidades.
[14] Já tratamos desse específico tema aqui: ConJur – Motivação das decisões administrativas.
Diego Diniz Ribeiro é advogado tributarista e aduanerista, sócio do Daniel & Diniz Advocacia, ex-conselheiro titular do Carf na 3ª Seção de Julgamento, professor de Direito Tributário, Direito Aduaneiro, Processo Tributário e Processo Civil, doutorando em Processo Civil pela USP, mestre em Direito Tributário pela PUC-SP, pós-graduado em Direito Tributário pelo Ibet e pesquisador do NEF da FGV-SP e do grupo de estudos de Processo Tributário Analítico do Ibet.
Revista Consultor Jurídico, 5 de outubro de 2022, 8h00