ARTIGO DA SEMANA – Por que o fisco não pode ir ao Judiciário após decisão do CARF?

João Luís de Souza Pereira. Advogado. Mestre em Direito. Professor convidado das pós-graduações da FGV/Direito Rio e do IAG/PUC-Rio.

O Ministro da Fazenda concedeu longa entrevista à jornalista Miriam Leitão, veiculada no canal Globonews na última quarta-feira.

O voto de qualidade de CARF, objeto do Projeto de Lei nº 2384/2023, foi um dos temas abordados na entrevista.

Segundo o Ministro, o restabelecimento do voto de qualidade em favor do fisco é fundamental para restabelecer o equilíbrio, já que só os contribuintes podem recorrer ao Judiciário após decisão desfavorável no CARF.

Ainda de acordo com o Ministro, esta posição é defendida até mesmo pela OCDE.

O Ministro também informou que o PL 2384 prevê a possibilidade de, havendo desempate em favor do fisco, o contribuinte poder realizar o pagamento do principal, sem multa e/ou juros, já que se trata de matéria controvertida.

O discurso do Ministro contém uma inverdade e nos remete à uma antiga discussão.

O déficit de veracidade na resposta do Ministro está na previsão de pagamento do tributo discutido sem acréscimo de multa e juros.

O PL 2384/2023 simplesmente não contém nenhum dispositivo neste sentido.

Os artigos 2º e 3º[1], do PL 2384/2023 apenas dispõem que a Receita Federal poderá disponibilizar métodos preventivos para a autorregularização de obrigações tributárias e que neste casos, dependendo da classificação do contribuinte numa espécie de ranking de conformidade, poderão ser afastadas as penalidades.

Logo, não se trata de afastamento de penalidades e juros, pura e simplesmente, nos casos de exigências fiscais controvertidas e decididas com placar apertado.

A antiga discussão que vem à tona com o discurso do Ministro diz respeito à vedação de acesso do fisco ao Judiciário após decisão final do CARF favorável ao contribuinte.

Dizer que só o contribuinte pode ir ao Judiciário após decisão desfavorável do CARF é reduzir uma discussão complexa ao tamanho de uma azeitona.

Também não é apropriado, sob o ponto de vista de privilégios, comparar fisco e contribuintes.

O fisco, todos sabemos, está numa situação privilegiada porque o crédito tributário goza de garantias e privilégios.

Aliás, como deixa claro o artigo 183, do Código Tributário Nacional, a enumeração das garantias do crédito tributário não se resumem àquelas relacionadas na Lei Geral Tributária. Há diversos outros meios previstos em lei que preservam o crédito da fazenda pública e conferem maior certeza ao recebimento dos valores devidos ao fisco. Portanto, as disposições sobre os privilégios do crédito tributário, a teor do art. 183 do CTN, têm caráter meramente exemplificativo uma vez que podem ser ampliadas por leis específicas.

Fundamentadas no princípio da supremacia do interesse público sobre o particular, as prerrogativas especiais da Fazenda dirigem-se à proteção do crédito público com vistas à satisfação das necessidades coletivas.

Somente a Fazenda Pública pode unilateralmente produzir um título – a Certidão de Dívida Ativa – que será cobrado judicialmente mediante processo de execução. Nenhum credor privado goza desta prerrogativa.

Com total apoio do Judiciário, este título executivo gerado unilateralmente pela Fazenda Pública pode, inclusive, ser objeto de protesto extrajudicial, abalando, não raro, o bom nome comercial de pessoas físicas e jurídicas, bem como causando embaraços ou até mesmo inviabilizando o acesso ao crédito.

Por aí se vê que a comparação entre fisco e contribuinte do ponto de vista dos privilégios não é uma boa medida.

Mas também é preciso indagar o porquê de não ser possível ao fisco recorrer ao Poder Judiciário ao final de processo administrativo no CARF com decisão desfavorável a seu interesse.

Este é uma tema de grande importância, tendo em vista a possibilidade de introdução de um ambiente de insegurança jurídica entre os indivíduos, na exata medida em que nunca se chegará a uma decisão final no âmbito do processo administrativo, comprometendo a plena eficácia do artigo 156, IX, do Código Tributário Nacional, que afirma ser modalidade de extinção do crédito tributário “a decisão administrativa irreformável, assim entendida a definitiva na órbita administrativa, que não mais possa ser objeto de ação anulatória”.

Esta é uma discussão antiga, que em agosto fará 19 (dezenove) anos. Através do Parecer PGFN/CRJ/N° 1.987/2004[2] e da Portaria do Procurador Geral da Fazenda Nacional n° 820/2004[3] a PGFN afirmou ser possível a reforma judicial por iniciativa da Fazenda Nacional das decisões proferidas pelos então  Conselhos de Contribuintes do Ministério da Fazenda e promoveu a regulamentação das hipóteses em que esta discussão seria cabível.

Diversamente do que concluiu a PGFN, os pensadores do Direito Tributário alinham pelo menos três grandes obstáculos ao ingresso da Fazenda Pública em juízo para reformar decisão que tenha apreciado recursos administrativo fiscal e decidido pelo cancelamento da exigência fiscal.

O primeiro motivo registrado pela doutrinária contrário à ideia de revisão judicial das decisões proferidas em apreciação de recursos administrativos fiscais é a violação ao princípio da segurança jurídica. Segundo esta corrente do pensamento doutrinário, a possibilidade de ingresso da Fazenda em juízo acabaria por instalar o caos, já que nunca os contribuintes teriam a necessária certeza e segurança da imutabilidade das decisões finais em processos administrativos (IVES GANDRA DA SILVA MARTINS[4] – Processo Administrativo Tributário. São Paulo: Centro de Extensão Universitária e Editora Revista dos Tribunais, 1999, p. 78).

O segundo fundamento jurídico relevante apontado pela doutrina afeta diretamente a premissa básica adotada pela Procuradoria da Fazenda Nacional no Parecer PGFN/CRT/N° 1.087/2004, qual seja, o princípio da inafastabilidade do acesso ao Poder Judiciário. De acordo com o pensamento doutrinário predominante, o direito de acesso à jurisdição foi conferido pelo legislador constituinte ao cidadão, mas não ao Poder Público. Trata-se, pois, de uma garantia do cidadão (HUGO DE BRITO MACHADO[5] – Processo Administrativo Tributário. São Paulo: Centro de Extensão Universitária e Editora Revista dos Tribunais, 1999, p. 155).

Uma terceira corrente doutrinária defende que é impossível o acesso da Fazenda Pública à jurisdição no caso em apreço, tendo em vista falecer à Administração interesse processual para reverter em juízo decisão proferida por ela mesma (SACHA CALMON NAVARRO COÊLHO[6] – Processo Administrativo Tributário. São Paulo: Centro de Extensão Universitária e Editora Revista dos Tribunais, 1999, p. 190). 

Também não se pode perder de vista que o Superior Tribunal de Justiça permite o acesso da Fazenda Pública em juízo para obter a revisão de decisão administrativa eivada de nulidade, num verdadeiro exercício de controle judicial da legalidade do ato administrativo, desde que exista prévia disposição legal, obviamente (MS 8.810-DF, DJ 06/10/2003)[7].

Portanto, a impossibilidade de acesso da Fazenda Pública após decisão desfavorável do CARF é tema de grande profundidade que não se resume ao inconformismo do Ministro, da PGFN ou da Diretora do Centro de Política Tributária da OCDE.


[1] Art. 2o A Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil do Ministério da Fazenda poderá́: 

I – disponibilizar métodos preventivos para a autorregularização de obrigações principais ou acessórias relativas a tributos por ela administrados; e 

II – estabelecer programas de conformidade para prevenir conflitos e assegurar o diálogo e a compreensão de divergências acerca da aplicação da legislação tributária. 

§ 1o Nas hipóteses de que trata o caput, a comunicação ao sujeito passivo, para fins de resolução de divergências ou inconsistências, realizada previamente à intimação, não configura início de procedimento fiscal. 

§ 2o A Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil do Ministério da Fazenda disciplinará o disposto neste artigo. 

Art. 3o A Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil do Ministério da Fazenda estabelecerá classificação de contribuintes, de acordo com o grau de conformidade tributária e aduaneira, com base nos seguintes critérios: 

I – regularidade cadastral; 

II – regularidade no recolhimento dos tributos devidos; 

III – aderência entre escriturações ou declarações e os atos praticados pelo contribuinte; 

IV – exatidão das informações prestadas nas declarações e escriturações; e 

V – outros definidos pela Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil do Ministério da Fazenda. 

§ 1o A classificação do contribuinte poderá́ ser utilizada como critério para sua inclusão em programas de conformidade. 

§ 2o No âmbito dos programas de conformidade, a administração tributária adotará as seguintes medidas, graduadas de acordo com a classificação do contribuinte, com vistas à autorregularização dos créditos tributários antes do lançamento: 

I – procedimento de orientação tributária e aduaneira prévia; 

II – deixar de aplicar eventual penalidade administrativa; 

III – prioridade de análise em processos administrativos, inclusive quanto a pedidos de restituição ou ressarcimento de direitos creditórios; e 

IV – atendimento preferencial na prestação de serviços presenciais ou 

virtuais. 

§ 3o A medida prevista no inciso II do § 2o será́ graduada e condicionada em função de: 

I – apresentação voluntária, antes do início do procedimento fiscal, de atos ou negócios jurídicos relevantes para fins tributários para o qual não haja posicionamento prévio da administração tributária; ou 

II – atendimento tempestivo a requisições de informações realizadas pela autoridade administrativa. 

§ 4o A Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil do Ministério da Fazenda disciplinará o disposto neste artigo, inclusive no que se refere à divulgação da classificação dos contribuintes. 

[2] Publicado no Diário Oficial da União – Seção I, de 23/8/2004.

[3] Publicada no Diário Oficial da União – Seção I, de 29/10/2004.

[4] “Parece-me que até por força do ‘princípio-fundamento’ da Constituição, que é o da ‘segurança jurídica’, tal pretensão é inaceitável, visto que se instauraria em relação ao contribuinte que discutiu com sucesso administrativo, mas sem direito à sucumbência, a insegurança absoluta, pois todo o processo em que a Fazenda desempenhou essencialmente os papéis de ‘parte e juiz’, poderia ser reaberto, a qualquer momento, reiniciando-se discussão interminável”.

[5] “O Direito é instrumento de limitação do poder. Sua finalidade essencial consiste em proteger contra quem não tem, aquele que não tem, ou tem menos poder. Por isto mesmo o Estado, o maior centro de poder institucional do planeta, não pode invocar a seu favor as garantias que a ordem jurídica institui para proteger o cidadão, entre as quais se destaca o direito à jurisdição.

As garantias constitucionais são destinadas ao cidadão, e não ao próprio Estado, salvo, é claro, aquelas expressa e explicitamente destinadas, que funcionam como instrumento de preservação da ordem institucional”.

[6] “ninguém pode ir a juízo contra ato próprio, por falta de interesse de agir. De outra parte, a decisão administrativa definitiva, contra a Fazenda Pública, certa ou errada, constitucional ou não, extingue a obrigação tributária.

[7] “o Estado brasileiro submeteu-se a um procedimento destinado à identificação das obrigações e dos respectivos responsáveis. Esse procedimento, cuja instância máxima era o Ministro da Fazenda, hoje se exaure na Câmara Superior de Recursos Fiscais.

O Senhor Ministro deu curso ao apelo, invocando seu poder de controle sobre os conselhos de contribuintes. Ora, a necessidade de controlar pressupõe algo descontrolado. Na hipótese, haveria necessidade de controle, se o conselho de contribuintes houvesse atuado fora do âmbito de sua competência ou sem observar os pressupostos recursais. Nessas circunstâncias, a decisão do conselho seria nula. Bem por isso, o Ministro poderia intervir, para obviar a nulidade.

Na lide objeto deste processo, não se alega que o conselho ultrapassou o âmbito de sua competência ou desconheceu os pressupostos processuais. Simplesmente, afirma-se que o colegiado errou na aplicação da lei”.

ARTIGO DA SEMANA – Denúncia espontânea após decisão judicial

João Luís de Souza Pereira. Advogado. Mestre em Direito. Professor convidado das pós-graduações da FGV/Direito Rio e do IAG/PUC-Rio.

Notícia amplamente divulgada pela imprensa especializada informa que a 2ª Turma da 4ª Câmara da 2ª Seção do CARF admitiu a aplicação do instituto da denúncia espontânea após o contribuinte ter sido intimado de decisão judicial que lhe foi desfavorável.

Segundo a notícia, a empresa teria ingressado em juízo para discutir as contribuições para o SAT/RAT ajustadas pelo Fator Acidentário de Prevenção (FAP). Após o deferimento de medida liminar e sentença de primeira instância favorável, houve reforma do julgado pelo Tribunal.

Intimada do acórdão que reformou a sentença e cassou a liminar, a empresa promoveu o pagamento do débito sem o acréscimo da multa de mora.

O fisco, segundo a notícia, constatou que o pagamento teria sido realizado após o prazo de 30 (trinta) dias de que trata o art. 63, §2º, da Lei nº 9.430/96[1], razão pela qual realizou lançamento de ofício exigindo-lhe a penalidade.

Em sua defesa, o contribuinte alega que o pagamento ocorreu dentro do prazo legal e que deve ser considerado como termo inicial do prazo previsto na Lei nº 9.430/96 a data em que o contribuinte foi efetivamente intimado da decisão judicial, ao contrário da data em que foi expedida a intimação eletrônica (tese do fisco). Adicionalmente, a empresa alega que, ainda que tenha transcorrido o prazo legal, o pagamento foi espontâneo, daí porque deve ser observado o art. 138, do Código Tributário Nacional.

De acordo com a reportagem, o CARF acolheu a tese da denúncia espontânea da infração e cancelou a exigência fiscal.

A situação acima descrita traz à reflexão o instituto da denúncia espontânea da infração, previsto, como mencionado, no artigo 138, do Código Tributário Nacional.

Por este dispositivo, o sujeito passivo que, antes de qualquer procedimento de ofício, cumprir a obrigação pagando o tributo devido e, se for o caso, acrescido de correção monetária e juros, não se sujeitará ao pagamento da penalidade correspondente, a chamada multa de mora (0,33% ao dia limitada a 20%).

Anota-se que o dispositivo refere-se a pagamento do tributo se for o caso, deixando claro a possibilidade de cumprimento extemporâneo também da obrigação acessória. No entanto, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça solidificou-se no sentido de que o artigo 138 não contempla o afastamento da multa por cumprimento a destempo da obrigação acessória (Ag. Rg. no A.I. 490.441/PR).

Tratando-se de cumprimento em atraso da obrigação principal relativa a tributo sujeito ao lançamento por homologação, a Súmula STJ nº 360[2] limita a aplicação do instituto aos casos em que o sujeito passivo não tenha declarado o tributo respectivo ao fisco.

A Súmula STJ nº 360, a propósito, acaba por privilegiar aquele que subtrai informações ao fisco e prejudica o sujeito passivo que é transparente. Ora, se a declaração do tributo apurado afasta a espontaneidade em eventual pagamento em atraso, por que declarar?

Voltando ao fato noticiado, a situação, tal como narrada, constitui caso peculiar.

A resposta está no mesmo artigo 63, da Lei nº 9.430/96.

De acordo com o caput do art. 63, “Na constituição de crédito tributário destinada a prevenir a decadência, relativo a tributo de competência da União, cuja exigibilidade houver sido suspensa na forma dos incisos IV e V do art. 151 da Lei nº 5.172, de 25 de outubro de 1966, não caberá lançamento de multa de ofício”.

O parágrafo primeiro do mesmo art. 63 vai além:  “O disposto neste artigo aplica-se, exclusivamente, aos casos em que a suspensão da exigibilidade do débito tenha ocorrido antes do início de qualquer procedimento de ofício a ele relativo”.

Traduzindo: se o contribuinte de um tributo sujeito ao lançamento por homologação (IRPJ, Contribuição previdenciária, PIS, COFINS…) ingressa em juízo para discutir o tributo e obtém medida liminar ou decisão equivalente autorizando-o a não pagar o tributo, cabe ao fisco promover a exigência fiscal para prevenir os efeitos da decadência.

Por que? Porque, na hipótese da decisão final após, digamos, 6 anos, for desfavorável ao contribuinte, o fisco, se não tiver exigido antes, não poderá mais fazê-lo, porque estará extinto seu direito pelo decurso do prazo legal (5 anos).

Exatamente por isso que os órgãos da Administração Tributária costumam ser diligentes em casos de concessão de medida liminar.

Recebido o ofício do juiz comunicando o deferimento da liminar e notificando-o para prestar as informações, o Delegado da Receita Federal determina a instauração de procedimento de ofício face ao contribuinte exatamente para ser constituído o crédito tributário e evitar eventual efeito da decadência.

No caso concreto, ao que parece, esta providência não foi adotada. O contribuinte não sofreu uma autuação ao longo do processo judicial para evitar a decadência.

Consequentemente, se o fisco “papou mosca”, o contribuinte poderá beneficiar-se da denúncia espontânea, mesmo após o prazo de 30 dias de que trata o art. 63, §2º, da Lei nº 9.430/96.                    


[1] Art. 63 – ………………………

§ 2º A interposição da ação judicial favorecida com a medida liminar interrompe a incidência da multa de mora, desde a concessão da medida judicial, até 30 dias após a data da publicação da decisão judicial que considerar devido o tributo ou contribuição. 

[2] O benefício da denúncia espontânea não se aplica aos tributos sujeitos a lançamento por homologação regularmente declarados, mas pagos a destempo.

Compensação tributária, ADI 4296 e necessárias alterações legislativas

João Luís de Souza Pereira

Agora é a vez do Poder Legislativo olhar com maior atenção para esta importante hipótese de extinção do crédito tributário.

O  julgamento do Supremo Tribunal Federal na Ação Direta de Inconstitucionalidade 4296, ocorrido em 09/06/2021, que declarou a inconstitucionalidade do art. 7º, §2º, da Lei 12.016/2009, tem impacto profundo no instituto da compensação tributária.
A compensação é modalidade de extinção do crédito tributário prevista nos arts. 156, II, 170 e 170-A, do Código Tributário Nacional.
A relação entre mandado de segurança e compensação tributária remonta ao início dos anos 1990, justamente a partir da Lei 8.383/91.
Mesmo prevista originalmente nos arts. 156, II, e 170, do CTN, como uma das hipóteses de extinção do crédito tributário, somente em dezembro de 1991 surgiu a regulamentação da compensação tributária pelo art. 66, da Lei nº 8.383/91.
Como se vê, durante um longo período, os contribuintes que tinham efetuado  pagamento de tributo a maior ou indevidamente somente poderiam obter o ressarcimento do indébito através de pedidos administrativos ou judiciais de restituição.
A restituição administrativa ou judicial do indébito tributário possui uma série de inconvenientes, que vão desde as limitações ao reconhecimento do pagamento indevido ou a maior até o recebimento através de precatórios judiciais.
Surgindo como uma alternativa viável a estas situações desconfortáveis, a Lei nº 8.383/91 (e suas alterações) regulamentou inicialmente o instituto da compensação tributária.
Posteriormente, a Lei 9.129/95 deu nova redação ao artigo 89, da Lei nº 8.212/91, disciplinando a compensação das contribuições previdenciárias.
Na sequência, surgiu o artigo 74, da Lei 9.430/96 (com várias alterações), instituindo uma nova modalidade de compensação, restrita aos tributos administrados pela então Secretaria da Receita Federal.
A compensação tributária, à evidência, somente será cabível quando o sujeito passivo for ao mesmo tempo credor e devedor da Fazenda Pública, tendo como justificativa o fato de não ser razoável que aquele que se encontre nesta situação seja obrigado a pagar o que deve para, então, pleitear a restituição do que pagou indevidamente ou a maior. Por isso, não há nada mais justo do que a lei prever um encontro de contas entre os sujeitos da relação jurídica tributária nesta hipótese, afastando o solve et repete.
Embora a compensação tenha surgido como uma verdadeira luz no fim do túnel, os órgãos de administração tributária impuseram diversos óbices à sua concretização, prevendo restrições ao direito de compensar por normas infralegais com sérios vícios de legalidade que, por vezes, acabam por inviabilizar o direito de compensar tributos pagos indevidamente ou a maior nos termos da lei.
Consequentemente, os contribuintes recorrem ao Poder Judiciário para afastar o ato ilegal da autoridade administrativa que, em cumprimento às normas infralegais, restringem ou impossibilitam indevidamente o direito à compensação tributária tal como previsto na(s) lei(s) reguladora(s) da compensação. 
Ainda nos início dos anos 1990, havia dúvida sobre o cabimento do mandado de segurança como a via processual adequada para fazer valer o direito à compensação na forma da lei, afastando as restrições veiculadas por Instruções Normativas – sempre elas – e Ordens de Serviço ilegais.
Entendendo que o caso é de típico ato ilegal praticado por autoridade administrativa com violação a direito líquido e certo do contribuinte, consolidou-se a jurisprudência pelo cabimento do mandado de segurança na espécie. Aliás, não tardou muito para o Superior Tribunal de Justiça sumular a questão: “Súmula STJ nº 213 –  O mandado de seguranc¸a constitui ac¸a~o adequada para a declarac¸a~o do direito a` compensação tributária”.
Definida a questão do cabimento do mandado de segurança para o reconhecimento do direito à compensação tributária, também coube ao STJ definir que a compensação tributária não poderia ser deferida por provimento jurisdicional liminar, como assentou a Súmula STJ nº  212 desde a sua primeira redação: “A compensação de créditos tributários na~o pode ser deferida por medida liminar”.
A Súmula STJ nº 212, surgida originalmente em 1998 (DJ 02/10/1998), inspirou o Poder Executivo a propor a redação do art. 170-A, do CTN, no que foi atendido pelo Congresso Nacional, através da Lei Complementar nº 104/2001.
Alguns anos depois, deixando ainda mais claro o teor da Súmula STJ nº 212 e aquilo que passou a prever o art. 170-A, do CTN, surgiu o art. 74, §12, II, “d”, da Lei nº 9.430/96, introduzido pela Lei nº 11.051/2004, dispondo que deve ser considerada não declarada a compensação cujo crédito seja decorrente de decisão judicial não transitada em julgado.  
Também é certo que a mesma Súmula 212 deu ensejo à vedação expressa à compensação tributária por medida liminar em mandado de segurança prevista no art. 7º, §2º, da Lei nº 12.016/2009.
Interessante é observar os motivos que levaram o STJ, já em 1998, a sumular a  vedação à compensação tributária via medida liminar.  
Do exame dos julgados que deram origem à Súmula STJ 212, observa-se do RMS 8206 que o Tribunal da Cidadania concluiu que a ausência de periculum in mora impede o deferimento liminar da compensação. Isto porque, “no âmbito do procedimento administrativo, a recorrente pode ainda valer-se das reclamações e recursos pertinentes.”
No mesmo RMS 8206, a Segunda Turma do STJ deixou claro que também não seria o caso de deferimento da compensação naquela fase processual porque “medida liminar tem caráter nitidamente satisfativo”.
Ao decidir o Recurso Especial 150.796, a Segunda Turma do STJ reafirmou a inexistência de periculum in mora para autorizar a imediata compensação, embora desta vez concluindo que “O deferimento liminar pressupõe a iminência de lesão irreversível” e daí concluiu que “Na compensação tributária, tal ameaça não existe, vez que se o contribuinte não efetuar, de imediato, a compensação,  poderá, oportunamente, pleitear a restituição de indébito”.
No julgamento do REsp 153.933 a Segunda Turma ratificou a necessidade de processo judicial ou administrativo para a apuração da liquidez e certeza do crédito a compensar, assim como novamente reconheceu a natureza satisfativa da medida liminar que defere a compensação tributária.
Ao apreciar o Recurso Especial 137.489, a Primeira Turma do STJ concluiu que no juízo de cognição sumária o juiz não tem condições de aferir a origem dos débitos e créditos, tampouco a liquidez e certeza dos créditos a compensar.
A primeira Seção do STJ, no julgamento do Recurso Especial 158.768 , concluiu que  “A cautelar não se presta para afirmação da suficiência,
certeza e liquidez dos créditos lançados como compensáveis”.
Em síntese, pode-se dizer que o STJ entendeu que a compensação tributária, por ser modalidade de extinção do crédito tributário, cria uma situação definitiva e por isso mesmo não poderia ser deferida por medida liminar, provimento jurisdicional de nítida natureza precária e provisória. O STJ, enfim, concluiu que a compensação tributária e a medida liminar em mandado de segurança seriam incompatíveis.
Ao declarar a inconstitucionalidade do art. 7º, §2º, da Lei do Mandado de Segurança, o STF acabou com esta restrição ao deferimento de medida liminar que autorize a compensação tributária.
No julgamento da ADI 4296, o STF decidiu que “A cautelaridade do mandado de segurança é ínsita à proteção constitucional ao direito líquido e certo e encontra assento na própria Constituição Federal. Em vista disso, não será possível a edição de lei ou ato normativo que vede a concessão de medida liminar na via mandamental, sob pena de violação à garantia de pleno acesso à jurisdição e à própria defesa do direito líquido e certo protegida pela Constituição”.
Em outras palavras, o STF deixou claro que não pode haver uma norma estipulando como regra uma vedação à concessão de medida liminar, sob pena de esvaziamento do mandado de segurança e de uma restrição indevida ao acesso à jurisdição.
Do mesmo modo, o julgamento da ADI 4296 importa na declaração de inconstitucionalidade do art. 170-A, do CTN, e do art. 74, §12, II, “d”, da Lei nº 9.430/96, porque, sendo possível a concessão de medida liminar em mandado de segurança para deferir a compensação tributária, não há fundamento constitucional para a norma que impõe aguardar o trânsito em julgado para a concretização de compensação tributária.
Para simplificar o que poderia dar margem à discussão, a Primeira Seção do STJ, na sessão de 14/09/2022, determinou o cancelamento da Súmula nº 212 (DJe 19/09/2022).
No entanto, ainda não foram revogados o art. 170-A, do CTN e o art. 74, §12, II, “d”, da Lei nº 9.430/96.
Os Projetos de Lei Complementar nº 124/2022 (Senado Federal) e 141/2022 (Câmara dos Deputados), ambos originários dos trabalhos da Comissão de Juristas instaurada pelo Senado Federal com vistas a promover alterações no processo administrativo e tributário nacional, não contemplaram a revogação do art. 170-A, do CTN, lamentavelmente.
Também não se tem notícia de iniciativa tendente a revogar o art. 74, §12, II, “d”, da Lei nº 9.430/96, o que já seria um alívio.
A manutenção do art. 170-A, do CTN e o art. 74, §12, II, “d”, da Lei nº 9.430/96 não faz nenhum bem à utilização desta justa modalidade de extinção do crédito tributário, até porque a declaração de inconstitucionalidade do art. 7º, §2º, da Lei nº 12.016/2009, não confere um cheque um branco para o deferimento de compensações tributárias via medidas liminares em mandado de segurança.
Como qualquer medida liminar da Lei nº 12.016/2009, aquela que deferir a compensação tributária dependerá do preenchimento dos requisitos da relevância dos fundamentos jurídicos da impetração e da ineficácia de decisão final favorável ao contribuinte. Tudo a ser bem examinado pelo juiz ao despachar inicial.
O STF e o STJ já contribuíram na concessão de maior amplitude à compensação tributária.
Agora é a vez do Poder Legislativo olhar com maior atenção para esta importante hipótese de extinção do crédito tributário.

João Luis de Souza Pereira
Advogado especializado em Direito Tributário, sócio fundador de JL PEREIRA ADVOGADOS, com sede no Rio de Janeiro. Membro da Comissão de Direito Financeiro e Tributário do Instituto dos Advogados Brasileiros. Mestre em Direito pela Universidade Estácio de Sá e Professor convidado da Pós-graduação da FGV/Direito Rio e do IAG/ PUC-Rio. Foi Conselheiro do Primeiro Conselho de Contribuintes do Ministério da Fazenda (atual CARF) de 1997 a 2004.

Fonte: https://www.migalhas.com.br/depeso/388552/compensacao-tributaria-adi-4296-e-necessarias-alteracoes-legislativas

ARTIGO DA SEMANA – IPVA sobre embarcações e aeronaves?

João Luís de Souza Pereira. Advogado. Mestre em Direito. Professor convidado das pós-graduações da FGV/Direito Rio e do IAG/PUC-Rio.

Entre as propostas do Relatório do Grupo de Trabalho Destinado a Analisar e Debater a PEC nº 45/2019 (Reforma Tributária) está a alteração no IPVA.

O Grupo de Trabalho propõe duas mudanças no IPVA: (a) que o imposto passe a incidir sobre a propriedade de veículos aquáticos e aéreos; e (b) que o imposto seja progressivo em razão do impacto ambiental do veículo. 

Como se sabe, o IPVA é o imposto estadual que incide sobre a propriedade de veículos automotores. 

A Constituição também estabelece que 50% do produto da arrecadação deste imposto seja repassado ao municípios.

Portanto, é claro o interesse dos Estados e Municípios no incremento da arrecadação do imposto.

Mas não é esta a justificativa do Grupo de Trabalho para as mudanças propostas no IPVA.

Antes de mais nada, é preciso recordar que a incidência do IPVA sobre aeronaves e embarcações aquáticas já prevista em leis estaduais, mas afastada pelo Supremo Tribunal Federal.

Para o STF, a criação do IPVA pela Constituição de 1988 teve como propósito a substituição da antiga Taxa Rodoviária Única (TRU), razão pela qual a incidência do imposto sobre veículos não terrestres contrariaria os desígnios do legislador constituinte (RE 134.509/AM e outros).

O Grupo de Trabalho procura justificar a previsão constitucional de incidência do IPVA sobre veículos aquáticos e aéreos na busca da isonomia tributária[1].

Esta justificativa não faz sentido.

A igualdade tributária existe para tratar da mesma forma aqueles que estejam em posição equivalente.

Famílias que usam veículos terrestres para deslocamento diário não estão em posição de equivalência com os proprietários de bens de alto valor e utilizados para fins recreativos.

O Grupo de Trabalho afirma que a ideia não é tributar os chamados veículos aquáticos e aéreos utilizados em atividades produtivas[2]. Pretendem, com isso, mirar nas embarcações e aeronaves de pessoas físicas.

Daí cabe a pergunta: alguém já imaginou um avião ou lancha na declaração de bens e direitos de uma pessoa física? Acorda, deputado!

O Grupo de Trabalho também propõe que o IPVA seja progressivo em razão do impacto ambiental do veículo[3].

Diversos Estados já preveem em suas leis que o IPVA tenha alíquotas diferenciadas em razão da utilização de diesel, gasolina, álcool ou energia elétrica.

Não há questionamento quanto à esta utilização extrafiscal do IPVA.

Logo, cabe outra pergunta: por que entupir a Constituição com mais este dispositivo?

Pelo visto, os membros do Grupo de Trabalho estão, como se diz na gíria, “viajando”. E não é por via marítima ou aérea…


[1] “De fato, a intenção da proposta é trazer mais isonomia à tributação do patrimônio, permitindo que bens de alto valor e utilizados para fins recreativos sejam onerados da mesma forma que os carros utilizados pelas famílias para seu deslocamento diário. Trata-se de medida que trará maior progressividade ao Sistema Tributário e que é demanda recorrente de grande parte dos Parlamentares, independentemente de legislatura ou de partido”.

[2] “…não pretendemos que o tributo incida sobre bens de capital das empresas, como, por exemplo, plataformas de petróleo. Esse imposto não terá o viés de onerar a atividade produtiva…” 

[3] “Outra mudança sugerida pelo Grupo é a possibilidade de o IPVA ser progressivo em razão do impacto ambiental do veículo. Essa alteração está em linha com as propostas ambientais mais modernas defendidas mundialmente e caminha no mesmo sentido dos acordos de adequação de emissão de carbono em que o Brasil é signatário. Trata-se de proposta, portanto, em sintonia com o contexto mundial atual em relação tanto à tributação quanto à defesa do meio ambiente”. 

ARTIGO DA SEMANA – Cuidado com a Reforma Tributária!

João Luís de Souza Pereira. Advogado. Mestre em Direito. Professor convidado das pós-graduações da FGV/Direito Rio e do IAG/PUC-Rio.

A divulgação do Relatório do Grupo de Trabalho Destinado a Analisar e Debater a PEC nº 45/2019 trouxe a tema da Reforma Tributária novamente à tona.

Reforma Tributária é o tema da moda e vem à tona em todo início de mandato.

Como mandatos se iniciam a cada dois anos, a Reforma Tributária está sempre presente no centro das discussões.

Alterar os tributos já discriminados na Constituição antes de se debater o tamanho do Estado não faz o menor sentido. A manutenção de um Estado grande (ou máximo) demanda muitos recursos. Um Estado mínimo não depende tanto do que se arrecada, além de receber uma boa injeção de recursos decorrentes de privatizações.

Também é de se estranhar a preocupação com uma Reforma Tributária ao passo que a legislação tributária infraconstitucional continua caótica.

A complexidade dos tributos brasileiros tem menos origem na Constituição do que na leis que os instituem e na extensa gama de normas infralegais que os regulamentam.

Aliás, os mesmos legisladores que se preocupam em reformar o Sistema Tributário Nacional não demonstram a mesma preocupação em simplificar as normas do PIS/COFINS e do IRPJ, por exemplo.

Igualmente não se pode esquecer a grande tendência do Congresso Nacional em piorar o que poderia simplificar a vida dos contribuintes ou tornar a tributação mais justa.

Antes de inventar IVA, IBS, Imposto Seletivo e cashbacks, os legisladores deveriam olhar para a extensão da não-cumulatividade dos tributos, de modo a garantir a ampla possibilidade de compensação de créditos decorrentes das operações anteriores.

Imaginar a disciplina ou a regulamentação da tributação sobre o valor adicionado por norma infraconstitucional chega a dar calafrios!

Nunca é demais lembrar que a não-cumulatividade do ICMS, nascida da Constituição e aprimorada pela Lei Kandir, vem sendo objeto de sucessivas normas infraconstitucionais que, ao longo do tempo, restringem as possibilidades de creditamento do imposto pago nas etapas anteriores.

Reflita: os mesmos legisladores que pretendem reformar o Sistema Tributário Nacional votaram a aprovaram as Leis Complementares  92/97, 99/99, 114/2002, 122/2006, 138/2010 e 171/2019 que fizeram com que a ampla não-cumulatividade do ICMS somente ocorra a partir de 01/01/2033.

O mesmo Congresso Nacional, que hoje se debruça sobre PECs para introduzir cashback na tributação do consumo, não demonstrou preocupação em provocar o Executivo e/ou aprovar leis que, ao longo dos anos, tenham corrigido a tabela do Imposto de Renda das Pessoas Físicas, perpetuando uma tributação injusta sobre expressiva camada da população de 2015 ao começo de 2023.

O mesmo Congresso Nacional que defende a Reforma Tributária promulgou diversas Emendas Constitucionais para introduzir novos tributos (CPMF, CIDE, PIS/COFINS-Importação…) e para “constitucionalizar” questões que o STF afirmou ou estava em vias de afirmar serem inconstitucionais (substituição tributária para frente, incidência do ICMS em qualquer importação…).

Portanto, tratando-se de Reforma Tributária, todo cuidado é pouco…

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