O lucro arbitrado na omissão de receitas e o problema da vagueza

Quanto fios de cabelo alguém precisa ter para ser considerado “calvo”? E quantos quilos, para ser considerado “gordo”? Ou quantos anos, para ser considerado “idoso”? Todos esses termos têm em comum a sua inevitável vagueza, marcada pela dificuldade de determinar a sua aplicação aos chamados “casos-limite”.

Como define Humberto Ávila, em recentíssimo estudo sobre o tema, “o que caracteriza a vagueza é a falta de demarcação dos limites de aplicação do significado ou a falta de precisão ou acurácia dessa aplicação” [1]. Essa indeterminação semântica afeta diretamente a aplicação das regras jurídicas, pois torna igualmente indeterminados os limites do alcance da hipótese de aplicação das regras, diante de casos-limites.

No texto de hoje, analisaremos um problema tão recorrente quanto inexplorado na jurisprudência tributária e que se conecta com a questão da vagueza: diante de uma hipótese de omissão de receitas, quando deve ser arbitrado o lucro? [2] Antes de avançarmos, é preciso esclarecermos um pouco mais como essas discussões se conectam.

Omitir receita nada mais é do que deixar de registrar em sua escrituração ganhos tributáveis no resultado do período, gerando uma redução indevida da base de cálculo dos tributos que se conectam com esses ganhos, como IRPJ, CSLL, PIS e Cofins. A sua verificação pode se dar de duas formas: 1)comprovada, quando a fiscalização colige provas que evidenciam a diferença entre o montante de receitas declaradas e efetivamente ingressadas (p.ex. cotejo da escrituração com pagamentos recebidos por cartão de crédito ou registros de notas fiscais emitidas) ou 2) presumida, com base em previsões legais que estabelecem a presunção de omissão de receita, diante de certos indícios qualificados (p.ex. depósitos bancários de origem não comprovada e saldo credor na conta Caixa).

A conduta de omissão de receitas se conecta com a discussão do Lucro Arbitrado em razão da hipótese de arbitramento prevista no artigo 603, III, do RIR/2018, que determina que se arbitre o lucro quando “a escrituração a que o contribuinte estiver obrigado revelar evidentes indícios de fraudes ou contiver vícios, erros ou deficiências que a tornem imprestável para: i) identificar a efetiva movimentação financeira, inclusive bancária; ou ii) determinar o lucro real“.

A omissão de receitas, tanto presumida como comprovada, é, na melhor das hipóteses, indicativo de vícios, erros ou deficiências na escrituração, quando não se presta a demonstrar fraudes realizadas pelos contribuintes. Entretanto, não são quaisquer erros ou vícios que justificam o arbitramento, mas apenas aqueles que tornem imprestável a escrituração do contribuinte, para os fins estabelecidos em lei.

Ora, a partir de quantos vícios ou erros uma escrituração se torna imprestável? Ou pior, que tipos de vício a tornam imprestável? Lidar com a vagueza dessa qualificação é essencial para que se realize e controle o lançamento tributário, diante da obrigatoriedade do arbitramento, diante das hipóteses legais.

Explica-se: identificada a ocorrência de uma das hipóteses de arbitramento, não há qualquer margem de discricionariedade da fiscalização quanto a escolha de base de cálculo. Pelo contrário, o auditor-fiscal é obrigado realizar o arbitramento, uma vez verificado que se trata de uma hipótese legal para tanto, sob pena de nulidade, por vício material, do lançamento tributário realizado. O Carf tem inúmeros precedentes reconhecendo que “o artigo 47 da Lei nº 8.981, de 1995, ao usar a expressão de que o lucro será arbitrado, nos casos que especifica, não confere faculdade à autoridade fiscal, mas sim comando impositivo quanto à forma de tributação” [3]. Afirma-se, nessa linha, que o arbitramento “não se trata de uma faculdade, mas de efetiva imposição legal” [4] que deve ser observada no lançamento.

Inclusive, a vagueza na aplicação dessa hipótese de arbitramento afeta o crédito tributário em duas oportunidades: a primeira na realização do lançamento, e a segunda na sua revisão, pelos órgãos de contencioso administrativo. Essa constatação, apesar de trivial, é crucial para compreender a relevância dessa questão, pois basta haver uma discrepância de critério entre a administração tributária e o Carf na determinação do que seria “imprestável”, para que o auto de infração seja anulado.

A respeito da apuração do Lucro Arbitrado nas hipóteses de omissão de receita, não identificamos qualquer incompatibilidade da aplicação desse regime de apuração a partir tanto das omissões presumidas quanto das comprovadas. Perante o Direito, a receita apurada por meio da presunção legal é tão válida quanto aquela levantada por meio de provas diretas, e ambas são passíveis de contraprova do contribuinte. Dessa forma, uma vez fixada a receita bruta, ainda que com o cômputo das receitas omitidas, resta afastada peremptoriamente a possibilidade de se aplicar os parâmetros de cálculo do Lucro Arbitrado estabelecidos no artigo 608 do RIR/2018 [5]

Por outro lado, tampouco nos parece que o simples fato de haver receita omitida, por si só, permitiria inferir que a fiscalização deveria se socorrer necessariamente do Lucro Arbitrado. Para essa conclusão, deve-se passar à análise de um outro ponto: a existência ou efetivação do registro de custos e despesas relacionados à receita omitida e escriturada.

Se na escrituração contábil do contribuinte já se encontram registrados custos e despesas, em regra, não havendo nada que justifique a sua desconsideração, deve-se presumir que eles seriam efetivos, pois a omissão ocorre no registro da receita. Entretanto, o simples fato de haver gastos escriturados não significa que basta confrontá-los com a receita omitida e apurar as bases de cálculo. Aqui, a fiscalização deve verificar se os custos e despesas seriam razoavelmente correlacionáveis à essa receita objeto da omissão.

As situações mais comuns são as seguintes: 1) ausência total de escrituração de despesas/custos e receitas (omissão total de receitas e gastos); 2)escrituração de gastos correlacionados estritamente à receita declarada (omissão parcial de receitas e gastos[6]; e 3) escrituração de todos os gastos, e omissão de parte das receitas (omissão parcial das receitas).

Essa verificação da correlação entre receitas omitidas e gastos escriturados é mais factível de ser realizada nas hipóteses de omissão comprovada de receitas, pois é possível se ter uma dimensão real das operações realizadas, mas não declaradas, por meio de notas fiscais emitidas, operações com cartão, outros registros paralelos, controles de Estoque etc. Nesses casos, é possível a fiscalização verificar se os custos registrados (p.ex., de mercadorias vendidas) correspondem às receitas apuradas.

Caso a fiscalização verifique se tratar de uma omissão parcial apenas das receitas, não haveria óbice à apuração do Lucro Real. Entretanto, em se tratando das hipóteses de omissão total ou parcial de receitas e gastos, a fiscalização deveria, antes de partir para o arbitramento, intimar o contribuinte à regularização da sua escrituração, em prazo hábil, considerando a própria subsidiariedade desse método de apuração do lucro [7].

Intimado o contribuinte, duas situações podem ocorrer: 1) o contribuinte atende à fiscalização no prazo, retificando a sua escrituração, razão pela qual poderia ser apurado o Lucro Real; ou 2) ele não atende à fiscalização, autorizando-se ao arbitramento dos lucros, a partir da receita omitida, e desconsiderando a parcela de gastos escriturados.

Por outro lado, nas hipóteses de omissão por presunção de receitas, esse confronto com os gastos é mais problemático, pois o que há é a receita apurada a partir de elementos indiciários, que não permitem essa correlação direta com os gastos total ou parcialmente escriturados. Nesses casos, como dificilmente será possível concluir que a omissão se deu apenas nas receitas, parece-nos que a fiscalização deveria partir diretamente à intimação para correção da escrituração e, a depender do atendimento pelo contribuinte, apurar o Lucro Real ou Arbitrado.

Caso o contribuinte, após intimação para comprovar os seus gastos, não atender essa determinação e por isso sofrer o arbitramento do lucro, não pode posteriormente buscar na esfera administrativa comprovar exaustivamente esses elementos, buscando uma requalificação da base de cálculo para o Lucro Real — como estabelecido pela Súmula Carf nº 59 [8]. De outro giro, em atendendo a intimação, ou sendo a informação escriturada suficiente para a apuração do Lucro Real, não há qualquer óbice de administrativamente demonstrar novos custos e despesas não escriturados e verificados pela fiscalização, em um contexto de revisão da base de cálculo apurado pelo Fisco.

Além desse ângulo da correlação entre os gastos registrados e as receitas apuradas, usualmente utilizado para verificar a imprestabilidade da escrituração, há um segundo ângulo de análise baseado nas diferenças quantitativas entre as receitas declaradas e as omitidas.

Nas hipóteses de omissão parcial de receitas e gastos, e principalmente em razão da ausência de intimação da fiscalização para complementação dos registros contábeis e fiscais, costuma-se verificar o grau de discrepância entre a receita omitida e a declarada, para determinar se se trata de um caso de imprestabilidade da escrituração. 

Nesses casos, parece haver um casuísmo bastante elevado na determinação de qual grau de diferença seria suficiente a justificar que o lucro deveria ser arbitrado, sob pena de se impor uma margem de lucro irreal ao contribuinte. Vejamos alguns exemplos:

i) Ac. nº 1401-001.773 [9]: apurou-se que uma diferença de 65% entre a receita declarada e a receita omitida, seria uma margem de lucro impossível de ser alcançada, justificando o arbitramento;

ii) Ac. nº 9101-003.136 [10]: apurou-se que as receitas declaradas correspondiam a 3,2% das receitas omitidas; reconhecendo a necessidade do arbitramento;

iii) Ac. nº 1301-001.817 [11]: apurou-se que as receitas omitidas correspondiam a 65% das receitas declaradas, decidindo pela obrigatoriedade do Lucro Arbitrado;

iv) Ac. nº 1402-00.456 [12]: manteve-se o arbitramento do lucro pois a receita declarada correspondia a aproximadamente 10% da receita omitida, apurada a partir de depósitos bancários;

v) Ac. nº 1202-001.065 [13]: cancelou-se o lançamento com base no Lucro Real pois a receita omitida era 32% superior à receita declarada, evidenciado a imprestabilidade da escrituração;

vi) Ac. nº 1201-000.621 [14]: a receita omitida correspondia a 76% da receita declarada, justificando o arbitramento;

Recentemente, a CSRF, por meio do Ac. nº 9101-006.018[15], ao analisar a aplicação da presunção do artigo 42 da Lei nº 9.430/1996, aduziu que “a jurisprudência, em casos de absurda discrepância entre o que foi omitido e o que foi declarado/escriturado, vem flexibilizando a manutenção do regime pelo Lucro Real, considerando aplicável o arbitramento“.

Mais do que tentar estabelecer uma média “numérica”, um exame qualitativo dos casos permite inferir que na maioria deles, ao se apurar essa diferença quantitativa entre receita omitida e declarada, analisa-se se a adição da primeira à segunda não geraria margens de lucro irreais para as atividades das pessoas jurídicas fiscalizadas, até mesmo porque não se pode perder de vista que o tributo não é instrumento de sanção ao contribuinte que não mantém a regularidade de suas obrigações acessórias.

Considerando essa preocupação, o problema se torna como se chegar a uma margem de lucro parâmetro, para fins de cotejo com o caso concreto?

Há casos em que as margens são evidentemente irreais, onde não há o problema da vagueza em relação à imprestabilidade, pela “absurda discrepância”. Mas há situações em que essas margens entram em um campo de indeterminação prática que parece apontar para dois caminhos possíveis: 1) a utilização de provas apresentadas pela própria fiscalização ou pelo contribuinte, a respeito da margem de lucro média do setor; ou 2) adotar como parâmetro as margens presumidas pela própria legislação do imposto de renda, na apuração do Lucro Arbitrado, com fulcro no artigo 605 do RIR/2018.

Como se viu, a hipótese de arbitramento do lucro sob análise é, inescapavelmente, vaga. Não há como se determinar aprioristicamente o que seria uma escrituração imprestável, nos termos do artigo 605, III do RIR/2018. Isso não quer dizer que não se possa pensar em parâmetros para análise dos casos, ou mesmo de procedimentos no âmbito das fiscalizações, voltadas a contornar essa dificuldade de definição sem que se caia em um casuísmo jurisprudencial. 

A observância dos parâmetros propostos acima nos parece trazer uma maior operacionalidade prática à apuração dos tributos em hipóteses de omissão de receitas, com um ganho de segurança para os contribuintes e para a fiscalização.

*Retomando os trabalhos da Direto do Carf, todos os colunistas desejam um feliz 2023 aos nossos leitores, esperando que sigam acompanhando e consultando nossas considerações sobre a jurisprudência do Carf nesse ano vindouro.


[1] ÁVILA, Humberto. Teoria da Indeterminação no Direito. São Paulo: Malheiros, 2022, p.37-38.

[2] O tema foi explorado por mim e pelo colunista Fernando Brasil de Oliveira Pinto no artigo “O Lucro Arbitrado nas Hipóteses de Omissão de Receitas” (In: Marcelo Magalhães Peixoto; Alexandre Evaristo Pinto. (Org.). 100 anos do Imposto sobre a Renda no Brasil. 1ed.São Paulo: MP Editora, 2022, v. 1, p. 321-338). As reflexões trazidas aqui partem das considerações lá propostas para avançar na sistematização do tema.

[3] Ac. nº 1402-000.728, Rel. Moisés Giacomelli, j. 29/09/2011.

[4] Ac. nº 1201-004.787, rel. Efigênio de Freitas, j. 14/4/2021. No mesmo sentido, Ac. nº 1302-004.548, rel. Paulo Henrique Silva Figueiredo, j. 18/6/2020.

[5] Art. 608. O lucro arbitrado, quando não conhecida a receita bruta, será determinado por meio de procedimento de ofício, com a utilização de uma das seguintes alternativas de cálculo (…)

[6] Nesse caso, pode haver a escrituração de parte dos gastos relacionados à receita omitida.

[7] Nesse sentido, Ac. 1402-001.606, rel. Fernando Brasil de O. Pinto, j. 12/3/2014. No mesmo sentido, acórdãos nº 1302-002.915 e 9101-003.644.

[8] “A tributação do lucro na sistemática do lucro arbitrado não é invalidada pela apresentação, posterior ao lançamento, de livros e documentos imprescindíveis para a apuração do crédito tributário que, após regular intimação, deixaram de ser exibidos durante o procedimento fiscal”.

[9] Redator Guilherme Adolfo dos Santos Mendes, j. 26/1/2017.

[10] Rel. Gerson Guerra, j. 03/11/2017.

[11] Rel. Wilson Fernandes Guimarães, j. 24/3/2015.

[12] Rel. Moisés Giacomelli, j. 25/2/2011.

[13] Rel. Orlando José Gonçalves Bueno, j. 7/11/2013.

[14] Rel. Guilherme Adolfo dos Santos Mendes, j. 24/11/2011.

[15] Rel. Luis Henrique Marotti Toselli, j. 28/3/2022.

Carlos Augusto Daniel Neto é sócio do escritório Daniel & Diniz Advocacia Tributária, em estágio pós-doutoral em Direito Tributário na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), doutor em Direito Tributário pela Universidade de São Paulo (USP), mestre em Direito Tributário pela PUC-SP, ex-conselheiro titular da 1ª e 3ª Seções do Carf, pesquisador do NEF/FGV e do Nupem/IBDT e professor permanente do mestrado profissional do Cedes e de diversos cursos de pós-graduação.

Revista Consultor Jurídico, 11 de janeiro de 2023, 9h28

ISS sobre honorários de sucumbência e a exigência de regime especial

Existem algumas situações em matéria tributária que são completamente absurdas, além de trágicas, acarretando problemas enormes para os contribuintes. Uma delas diz respeito à cobrança de ISS sobre honorários de sucumbência, previstos no artigo 85 do Código de Processo Civil, ao estabelecer que “a sentença condenará o vencido a pagar honorários ao advogado do vencedor”.

O que alguns municípios vêm buscando é que as sociedades de advocacia 1) emitam Nota Fiscal referente aos honorários de sucumbência, e 2) paguem ISS sobre essa receita. A situação é esdrúxula e, segundo observo, 3) esconde segundas intençõesfiscalistas. 

Comecemos pela emissão da Nota Fiscal de Serviços, observando que a lei processual tem por base a regra do “quem perde, paga os honorários ao advogado do vencedor”. Logo, a Nota Fiscal deve ser emitida para quem? No caso, os honorários não serão devidos por quem contratou o advogado, mas por quem perdeu a demanda, observando-se ainda que os advogados que receberão os honorários jamais prestaram serviços a quem os está pagando. Não se trata de honorários contratuais, mas de sucumbência, considerando ainda que estes “constituem direito do advogado e têm natureza alimentar” (CPC, artigo 85, §14), sendo permitido ao advogado “requerer que o pagamento dos honorários que lhe caibam seja efetuado em favor da sociedade de advogados que integra na qualidade de sócio” (CPC, artigo 85, §15).

Logo, se tanto e quando muito, a emissão da Nota Fiscal (que não pode  ser “de serviços”) serviria para acobertar o gasto realizado por quem perdeu a demanda, e não para quem contratou os serviços do advogado. A despeito de ser absurdo obrigar alguém a emitir um documento fiscal para quem não o contratou, essa regra poderia ter alguma razoabilidade exclusivamente para efeito dos tributos federais — afinal, tais valores comporão a receita bruta daquela sociedade de advogados para fins de apuração de Pis, Cofins, Imposto de Renda da Pessoa Jurídica e Contribuição Social dobre o Lucro Líquido. Nesse sentido, a Nota Fiscal jamais poderia ser “de serviços”, já que não existe serviço advocatício prestado à parte vencida. Como os Municípios não admitem Nota Fiscal que não seja “de serviços”, essa não pode ser emitida, sendo suficiente um recibo e o lançamento do montante recebido como receita tributável na contabilidade da sociedade que receber os honorários de sucumbência, para fins federais. É verdade que algumas sociedades emitem Notas Fiscais de Serviços sobre honorários de sucumbência, porém o fazem por mera liberalidade, pois, a rigor, nenhum serviço foi prestado a quem as está remunerando — afinal, adotar esse procedimento facilita a apuração contábil dos tributos federais, além de evitar problemas com o fisco municipal.

Também não faz sentido algum usar tal receita para a cobrança de Imposto sobre Serviços (ISS), que, como o nome indica, incide sobre os serviçosprestados pelas sociedades de advogados. Afinal, qual serviço foi prestado pelos advogados ao vencido naquela demanda, o qual desembolsará os honorários de sucumbência que vierem a ser estipulados pelo Poder Judiciário? Absolutamente nenhum. Observa-se que sequer deverá haver a emissão de Nota Fiscal de Serviços, pois, como visto, não houve prestação de serviços a quem paga. Logo, usar tal receita para fins de tributação municipal é algo que não faz sentido.

Minha suspeita é que esse procedimento busca afastar as sociedades de advogados do sistema de tributação per capita previsto na Lei Complementar 406/68, artigo 9º, §§1º e 3º. Não restam dúvidas que as sociedades de advogados possuem direito a serem tributadas per capita, em especial após sedimentado o entendimento do STF no Tema 918 de Repercussão Geral, relatado pelo Ministro Edson Fachin, assim lavrado: “Inconstitucionalidade de lei municipal que estabelece impeditivos à submissão de sociedades profissionais de advogados ao regime de tributação fixa ou per capita em bases anuais na forma estabelecida pelo Decreto-Lei n. 406/1968 (recepcionado pela Constituição da República de 1988 com status de lei complementar nacional)”.

Ocorre que diversos Municípios transformaram o que é um direito em um regime especial, como fez o Município de São Paulo através da Lei nº 17.719/21 (artigo 13, que alterou o artigo 15 da Lei municipal nº 13.701, de 2003). O erro está em que o direito de as sociedades profissionais serem tributadas “per capita” é ex-lege, não havendo espaço jurídico para o Município negar tal incidência — não existe âmbito de discricionariedade; existe âmbito fiscalizatório, o que é completamente diferente. Logo, é flagrante a abusividade de exigir que as sociedades de advogados requeiram anualmente regime especial, pois transforma o que é um direito, em uma faculdade, que pode ser negada pelo poder concedente, que estabelece critérios e condicionantes para o exercício desse direito, pois, sendo regime especial, o que é um direito dos contribuintes se transforma em algo discricionário, a critério da municipalidade.

São situações como essas que maculam o relacionamento Fisco-Contribuinte, pois criam  empecilhos que acabam por dificultar o pleno exercício de direitos pelos contribuintes. Nada impede que o Município fiscalize e imponha penalidades em caso de infrações. Mas é uma arbitrariedade fazer com que o contribuinte periodicamente necessite requerer um direito que lhe é plenamente assegurado, e, ainda mais, sob condições.

Enfim, minha suspeita é que a exigência de emissão de Nota Fiscal de Serviços para quem jamais contratou os serviços jurídicos, visa desenquadrar as sociedades de advogados do regime especial que os Municípios indevidamente exigem para manter a tributação per capita, que, repete-se, é ex-lege, não estando sujeita a nenhuma condicionalidade.

Fernando Facury Scaff é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP), advogado e sócio do escritório Silveira, Athias, Soriano de Mello, Bentes, Lobato & Scaff Advogados.

Revista Consultor Jurídico, 9 de janeiro de 2023, 8h00

A questão tributária em recuperação judicial: começa a ser trilhado o fim do impasse?

A reforma da Lei 11.101/2005 buscou em certa medida aclarar pontos específicos e superar divergências que na prática geravam o que parte da doutrina denomina “jurisprudência lotérica”, em que as partes passam a contar com um fator imponderável: dependendo de quem for o juiz da causa, seu destino poderá ser completamente diferente.

No tocante à questão tributária, embora mantida a redação do artigo 57 da Lei 11.101/2005, que prevê a comprovação da regularidade fiscal como requisito para a concessão da recuperação judicial e cuja aplicação era mitigada pelos tribunais pátrios, a Lei 14.112/2020 trouxe importantes alterações com relação ao prosseguimento das execuções fiscais (artigo 6º, §7º-B da Lei 11.101/2005), melhores condições de parcelamento e transação envolvendo débitos tributários (artigos 10-A, 10-B e 10-C da Lei 10.522/2002) e novas hipóteses de convolação em falência (artigo 73, V e VI da lei 11.101/2005).

Diante da mudança legislativa, que colocou à disposição das recuperandas novos incentivos ao equacionamento dos débitos tributários, parte da jurisprudência e da doutrina passou a entender que a orientação anterior no sentido de que o juízo recuperacional poderia dispensar a exigência da certidão negativa para a concessão da recuperação judicial estaria superada.

Neste sentido, o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) passou a exigir prova da regularidade fiscal das recuperandas para a concessão da recuperação judicial, em especial nos casos em que a aprovação do plano de recuperação judicial ocorreu após a vigência da reforma da Lei 11.101/2005. Com a alteração do entendimento outrora sedimentado inclusive para os processos em andamento, concluiu-se que não há direito adquirido a regime jurídico decorrente de construção jurisprudencial, concedendo-se prazos que variam de 30 a 180 dias para a comprovação da regularidade fiscal, inclusive ex officio.

No entanto, a questão não se uniformizou na medida em que o próprio STJ, mesmo após a vigência da reforma, tem mantido o posicionamento até então vigente em decisões monocráticas, no sentido de manter a dispensa da providência do artigo 57 da Lei 11.101/2005, considerada incompatível com o princípio da preservação da empresa.

Em síntese, a partir daí, passamos a ter o TJ-SP, na maioria dos casos, exigindo prova da regularidade fiscal como requisito legal para a homologação do plano de recuperação judicial ou eventuais aditivos, e o STJ mantendo a mesma linha do entendimento anterior à reforma legislativa nas inúmeras decisões monocráticas recentemente proferidas sobre o tema.

Diante desse quadro, o TJ-SP, cumprindo seu papel fundamental de uniformização da jurisprudência (artigo 926 do CPC), aprovou em 24/11/2022 os seguintes enunciados:

Enunciado XIX: Após a vigência da Lei 14.112/2020, constitui requisito para a homologação do plano de recuperação judicial, ou de eventual aditivo, a prévia apresentação das certidões negativas de débitos tributários, facultada a concessão de prazo para cumprimento da exigência.

Enunciado XX: A exigência de apresentação das certidões negativas de débitos tributários é passível de exame de ofício, independentemente da parte recorrente.

O Enunciado XIX tem fundamental importância para a análise da questão e deve ser interpretado à luz da jurisprudência atual do TJ-SP. Com efeito, a partir da sua redação interpreta-se que a comprovação da regularidade fiscal é requisito para a homologação de planos de recuperação judiciais e eventuais aditivos, sendo que o TJ-SP estabeleceu como critério temporal a data da deliberação assemblear:

“Direito intertemporal. Não há direito adquirido a regime jurídico. Precedentes do Supremo Tribunal Federal. Requisitos para concessão de recuperação judicial que devem ser apurados tal como previstos, no ordenamento jurídico, à época da deliberação da assembleia geral de credores sobre o plano de recuperação judicial. Tempus regit actum. Art. 5º, XXXVI, da Constituição Federal; art. 6º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro. Assim, não se pode invocar orientação jurisprudencial anterior à entrada em vigor da Lei 14.112/2020 caso a deliberação assemblear seja posterior, como ocorre na hipótese” (TJ-SP; Agravo de Instrumento 2067179-82.2021.8.26.0000; relator: des. Cesar Ciampolini; 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Foro Central Cível – 2ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais; data do julgamento: 20/10/2021; data de registro: 27/10/2021).

Além disso, o Enunciado XIX, à luz do entendimento acima colacionado, abrange expressamente as hipóteses de aditamento a planos de recuperação judicial, sendo este ponto essencial para a solução de possíveis controvérsias, pois em razão da pandemia de Covid-19 diversas empresas que já tinham seus planos homologados em data anterior à vigência da Lei 14.112/2020 (23/01/2021) e apresentaram novos aditivos passaram a sustentar a inaplicabilidade da nova lei para condicionar a nova homologação à prova da regularidade fiscal.

Desse modo, de acordo com a análise aqui exposta, todas as deliberações assembleares sobre planos de recuperação judicial ou eventuais aditivos ocorridas após a vigência da Lei 14.112/2020 seguem o princípio geral do tempus regit actum, devendo a sua homologação ser precedida da apresentação das certidões negativas de débitos tributários prevista no art. 57 da Lei 11.101/2005.

Já o Enunciado XX vai em linha com o entendimento já sedimentado pelo TJSP, no sentido de que compete ao Judiciário o exame de ofício a questão da legalidade do processo recuperacional e falimentar na medida em que se trata de questão de ordem pública e em conformidade com o artigo 933 do CPC devem ser conhecidas de ofício. Aliás, não é por outra razão que o enunciado deixa expresso que a essas situações aplica-se o efeito translativo dos recursos, o que significa dizer que a questão de deve ser conhecida pelo órgão julgador mesmo que o recurso tenha objeto distinto.

Evidente que a edição dos enunciados acima não implica o fim dos debates, por dois motivos.

O primeiro, é que o entendimento do TJ-SP, apesar de ter de ser respeitado por todos os órgãos julgadores do estado de São Paulo, salvo melhor juízo, não vincula, por óbvio, o STJ, o que significa dizer que a questão da comprovação da regularidade fiscal como requisito para a concessão da recuperação judicial e se pode a questão ser conhecida de ofício pelo órgão julgador fatalmente continuará sendo objeto de inúmeros recursos especiais até pronunciamento específico quanto à divergência.

O segundo, é que alguns pontos importantes ainda não foram objeto de uniformização e, portanto, não são tratados pelos enunciados. Destacamos, a nosso ver, os principais:

a) A despeito da mudança jurisprudencial no tocante à aplicação do art. 57 da Lei 11.101/2005, não há, ainda, definição quanto às consequências de eventual não apresentação das certidões negativas, se sobrestamento ou extinção do processo, revogação do stay period ou convolação da recuperação judicial em falência.

b) As novas regras relacionadas a parcelamento e transação tributários são direcionadas à Fazenda Nacional, com possibilidade de edição de leis semelhantes pelos demais entes da federação. Nesse sentido, a possibilidade de equacionamento das dívidas tributárias de empresas em recuperação judicial em âmbito estadual e municipal não é uniforme e, nesse cenário, o Judiciário deve se deparar também com a questão da exigibilidade ou dispensa das certidões negativas das demais Fazendas Públicas, consideradas as peculiaridades de cada caso.

c) É possível que existam débitos tributários em litígio sem garantia do juízo, o que, salvo melhor juízo, impossibilitaria a obtenção de certidão positiva com efeito negativo. Ao se deparar com situações de impossibilidade de obtenção das certidões negativas ou positivas com efeito negativo, deverá o Judiciário avaliar, de acordo com as circunstâncias concretas, qual a melhor solução a ser adotada.

Todos esses últimos pontos são essenciais, pois além do inequívoco objetivo do legislador de preservar a atividade empresarial e seus benefícios econômicos e sociais, os tribunais superiores já consolidaram o entendimento que a Fazenda Pública não pode criar óbices ao livre exercício da atividade econômica (artigo 170, CF) como meio coercitivo para cobrança de tributos (Súmulas 70, 3.323 e 547/STF e 127/STJ).

Apesar de todos os problemas que ainda serão enfrentados, não há dúvida de que toda solução começa com o primeiro passo e este foi dado pelo TJ-SP, provocando desta feita que o STJ também se pronuncie em breve sob a forma de enunciado ou por meio de julgamentos colegiados.

Oreste Nestor de Souza Laspro é advogado, administrador judicial. Professor de Direito Processual da Faculdade de Direito da USP (Universidade de São Paulo).

Revista Consultor Jurídico, 9 de janeiro de 2023, 8h00

ARTIGO DA SEMANA – Perspectivas Tributárias 2023

João Luís de Souza Pereira – Advogado. Mestre em Direito. Professor convidado das pós-graduações da FGV/Direito-Rio e do IAG/PUC-Rio

Feliz Ano Novo!

Terminado o recesso forense de fim de ano, há temas importantes que poderão entrar nas pautas de julgamentos dos Tribunais Superiores.

Destacamos alguns temas tributários em Recursos Repetitivos que foram afetados à Primeira Seção do STJ, bem como questões tributárias que tiveram a Repercussão Geral reconhecida no STF ao longo de 2022 e que poderão ser julgadas neste ano.

SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

Tema Repetitivo 1125:

Possibilidade de exclusão do valor correspondente ao ICMS-ST da base de cálculo da Contribuição ao PIS e da COFINS devidas pelo contribuinte substituído.

Relator: Min. Gurgel de Faria

Recurso(s) Especial(is):  1.896.678 e 1.958.265

Tema Repetitivo 1164:

Definir se incide contribuição previdenciária patronal sobre o auxílio-alimentação pago em pecúnia.

Relator: Min. Gurgel de Faria

Recurso(s) Especial(is): 1.995.437 e 2.004.478

Tema Repetitivo 1170:

Definir se é cabível a incidência de contribuição previdenciária sobre os valores pagos a empregado a título de décimo terceiro salário proporcional referente ao aviso prévio indenizado.

Relator: Min. Paulo Sérgio Domingues

Recurso(s) Especial(is): 1.974.197, 2.000.020, 2.003.967 e 2.006.644

Tema Repetitivo 1174:

Possibilidade de excluir os valores relativos à contribuição previdenciária do empregado e trabalhador avulso e ao imposto de renda de pessoa física, retidos na fonte pelo empregador, da base de cálculo da contribuição previdenciária patronal e das contribuições destinadas a terceiros e ao SAT/RAT.

Relator: Min. Herman Benjamin

Recurso(s) Especial(is): 2.005.029, 2.005.087, 2.005.289 e 2.005.567

SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

Tema de Repercussão Geral 1195:

Trata-se de recurso extraordinário em que se discute, à luz dos artigos 2º, 24, I, 150, IV, e 155, II, da Constituição Federal, a possibilidade de o percentual de multas fiscais de caráter punitivo não qualificadas em razão de sonegação, fraude ou conluio ser fixado em montante superior ao valor do tributo devido, ante a proporcionalidade, a razoabilidade e o não-confisco em matéria tributária, bem como ser reduzido pelo Poder Judiciário.

Relator: Min. Nunes Marques

Recurso(s) Extraordinário(s): 1.335.293

Tema de Repercussão Geral 1198:

Recurso extraordinário em que se discute, à luz dos artigos 1º, IV, 5º, XIII, XXII, XXXV e LV, 146, III, a, 150, I, II, IV e V, 155, III, e 170, parágrafo único, da Constituição Federal, se a Lei 13.296/2008 do Estado de São Paulo, questionada na ADI 4.376, Rel. Min. Gilmar Mendes, pode submeter locadora de veículos ao recolhimento de IPVA relativo aos automóveis colocados para locação naquele Estado, mesmo que a empresa seja sediada em outro Estado da federação, onde realiza o registro de toda sua frota e recolhe referido tributo, bem como submeter seus clientes locatários como responsáveis solidários da obrigação tributária. Ademais, questiona-se a proporcionalidade e vedação ao confisco na seara tributária, pela imposição de multa tributária de 100% (cem por cento) após a inscrição do débito em dívida ativa.

Relator: Min. André Mendonça

Recurso(s) Extraordinário(s): 1.357.421 (com Agravo)

Tema de Repercussão Geral 1217:

Recurso extraordinário em que se discute, à luz dos artigos 1º, 5º, XXII, 22, IV, 24, I, 30, II, III, e 146, III, b, da Constituição Federal, a aplicabilidade do entendimento firmado no Tema 1.062 (ARE 1.216.078-RG, Rel. Min. Dias Toffoli) aos casos em que lei municipal estabeleça índice de correção monetária e taxa de juros de mora incidentes sobre créditos tributários, sem limitação aos percentuais fixados pela União para os mesmos fins, atualmente a Taxa Selic.

Relatora: Min. Cármen Lúcia

Recurso(s) Extraordinário(s): 1.346.152

Tema de Repercussão Geral 1153:

Recurso extraordinário em que se discute, à luz dos artigos 146, III, “a”, e 155, III, da Constituição Federal, se os estados-membros e o Distrito Federal podem, no âmbito de sua competência tributária, imputar ao credor fiduciário a responsabilidade tributária para o pagamento do IPVA, ante a ausência de lei de âmbito nacional com normas gerais sobre o referido tributo e, ainda, a qualidade de proprietário de veículo automotor, considerada relação jurídica entre particulares e a propriedade resolúvel conferida ao credor pelo direito privado.

Relator: Min. Luiz Fux

Recurso(s) Extraordinário(s): 1.355.870

Precatórios para pagamento ou amortização das dívidas tributárias

A Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN) vem publicando atos normativos voltados à regulamentação da transação de créditos inscritos em dívida ativa da União, dentre os quais destacamos a Portaria PGFN nº 14.402/20 e nº 6.757/2022 e que recebem nossa atenção por aspecto pragmático importante: autorização para o uso de precatórios para pagamento ou amortização das dívidas tributárias.

Precatórios, sabe-se, são requisições de pagamento expedidas pelo Judiciário para materializar a satisfação de dívidas da Fazenda Pública em favor do particular derivadas de condenação judicial definitiva.

Para o emprego do precatório de terceiro na transação, exige-se a cessão fiduciária do direito creditório estampado no precatório em favor da União, na qual deve constar o valor integral do precatório e providenciada por meio de escritura pública lavrada no Cartório de Registro de Títulos e Documentos.

Importante destacar que, apesar de a cessão fiduciária exercer a função ordinária de garantia, para fins da transação opera como meio de amortização ou liquidação do crédito tributário transacionado. Isto porque, tendo por objeto o direito creditório portado pelo titular do precatório, ela, a cessão fiduciária, realiza-se, em suma, pela transmissão do domínio creditório.

O contrato de cessão fiduciária contará, como parte cedente do crédito, o contribuinte ou o terceiro detentor do direito e, como parte cessionária, a União, que receberá, em transmissão, os direitos e deveres que lhe competem, estando representada por autoridade compositiva dos quadros funcionais da RFB no caso da transação regulamentada pela Portaria RFB nº 208/2022, ou pela PGFN na transação regulamentada pela Portaria PGFN nº 6757/2022.

Importante mencionar a hipótese em que o crédito do precatório seja superior à dívida tributária. Os referidos atos normativos estabelecem que, caso remanesça saldo do precatório, após a liquidação do débito transacionado, os valores poderão ser devolvidos ao contribuinte, desde que não tenha em seu nome outras inscrições ativas perante a PGFN ou débitos em aberto administrados pela Receita Federalo.

Mas, esse saldo  remanescente do precatório pode ser utilizado para amortização ou liquidação do saldo devedor de parcelamento de dívida no âmbito da Receita (parágrafo único artigo 73 da Portaria RFB nº 208/2022), ou tratando-se de inscrições ativas parceladas, garantidas ou suspensas por decisão judicial, esses valores permanecerão em conta à disposição do juízo até o encerramento das respectivas ações judiciais, ou também poderão servir como garantia em substituição a outras garantias anteriormente  prestadas (parágrafos 1º e 2º do artigo 83 da Portaria PGFN nº 6757/2022[1]).

Tratando-se de hipótese em que não existam outros débitos ou outras inscrições ativas contra o devedor, o saldo remanescente do precatório deverá ser devolvido ao devedor-cedente.

Consoante o artigo 72 da Portaria RFB nº 208/2022e o artigo 82 da Portaria PGFN nº 6757/2022, a dívida transacionada somente será reputada liquidada, isto é, extinta, quando depositado o valor do precatório em conta à disposição do juízo.

Diante dessa regra, poder-se-ia indagar: por que não se considera o momento da cessão fiduciária como fator para a extinção do crédito tributário e liberação do devedor? 

Para responder a essa questão, há que se voltar ao plano constitucional onde está definido o procedimento para que se considere satisfeita a dívida expressa em precatório: (1) requisição do pagamento pelo Presidente do Tribunal que tenha proferido a decisão; (2) inclusão no orçamento da entidade tributante das verbas necessárias ao pagamento do precatório que devem ser (3) apresentados até 1º de julho de cada ano; (4) pagamento atualizado até o final do exercício seguinte ao da apresentação do precatório, observada a ordem cronológica.

O esgotamento desse iter definido como necessário na Constituição, parece-nos, justificar legitimamente a postergação do efeito extintivo do crédito tributário tal como posta nos referidos dispositivos normativos das portarias.

Admitir que a extinção do crédito tributário somente se perfaz com o pagamento do precatório é pertinente, o que, contudo, não deixa de ser um problema para o contribuinte, pois, cientes de que esse percurso pode demorar meses, como fica, até lá, a situação fiscal do contribuinte? Seria possível considerá-la regular? 

Entendemos que sim, pois esse período entre expedição e pagamento do precatório materializa nítido caso de moratória, contemplada como causa de suspensão de exigibilidade no inciso I, do artigo 151 do Código Tributário Nacional (CTN)[2], justamente porque consagra postergação do pagamento de crédito tributário até a efetiva liberação e pagamento do precatório.

Assume essa moratória caráter individual, operada mediante a assinatura de termo de transação, mas não está ela apta a gerar direito adquirido, podendo ser revogada de ofício caso o respectivo beneficiário não consiga satisfazer os termos da transação a que se vinculou.

Não temos dúvida sobre a relevância de medida desse quilate para a relação fisco e contribuinte, uma vez apta a reduzir iniquidades de nosso sistema jurídico especialmente a do pagamento de precatórios, admitindo, positivamente, a ideia do encontro de créditos e débitos  da União, para com isso trazer celeridade na resolução da crise de inadimplência de ambos sujeitos da relação tribuária.


[1] Art. 83. Remanescendo saldo de precatório depositado, os valores poderão ser devolvidos ao devedor-cedente, desde que não existam outras inscrições ativas do devedor.
§ 1º Se as inscrições ativas estiverem parceladas, o devedor poderá optar pela utilização dos valores para amortização ou liquidação do saldo devedor.
§ 2º Se as inscrições estiverem garantidas ou suspensas por decisão judicial, os valores permanecerão em conta à disposição do juízo até o encerramento das respectivas ações judiciais, sendo possível a substituição das garantias anteriormente prestadas pelo saldo remanescente depositado.

[2] Art. 151. Suspendem a exigibilidade do crédito tributário: I – moratória; (…).

Íris Vânia Santos Rosa é advogada, doutora e mestre em Direito Tributário pela PUC-SP, professora do mestrado do IBET-SP, professora de Direito Tributário e Processo Tributário do curso de graduação da Fundação Santo André (FSA), professora do curso de especialização em Direito Tributário da PUC-SP e do Ibet, professora do curso de extensão “Processo Tributário Analítico” do Ibet e pesquisadora do Grupo de Estudos “Processo Tributário Analítico” do Ibet.

Mariane Targa de Moraes Tenório é advogada do escritório Saad, Santos Rosa, Behling e Munhoz; mestre e especialista em Direito Tributário pelo Ibet.

Revista Consultor Jurídico, 1 de janeiro de 2023, 8h00

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