Consultas fiscais e autovinculação da administração pública em pauta no Carf

É curioso como o acaso guarda caminhos inesperados para todas as ocasiões da vida de uma pessoa, inclusive para uma colunista da ConJur no momento de preparar um texto para o Direto do Carf.

Para o artigo de hoje, havia me proposto a, originalmente, cuidar da discussão a respeito do conceito de “serviços executados no exterior, cujo resultado se verifique no país” para fins de incidência do PIS/Cofins importação, nos moldes do artigo 1º, §1º inciso II da Lei nº 10.865/2004. Isto porque, no dia 16 de agosto de 2022, a 3ª Turma da Câmara Superior de Recursos Fiscais (CSRF) enfrentou o tema no julgamento do Processo 13312.000366/2009-53. Ocorre que, pelo fato de ainda não ter sido publicado o respectivo acórdão, somado à ansiedade de analisar rapidamente o precedente sobre matéria tão interessante, para ter acesso ao conteúdo da decisão fui obrigada a me socorrer à gravação da sessão de julgamento disponível no canal do Carf no YouTube. E foi aí que operou o acaso, tratando de fazer com que a coluna de hoje deixasse de ter como foco a questão específica da incidência do PIS/Cofins importação, passando a quedar-se, isto sim, sobre a força e a importância, no bojo do processo administrativo fiscal, das manifestações emanadas pela Receita Federal em sede consultiva. Afinal, esse foi o ponto nodal das discussões travadas entre os conselheiros no referido precedente, que despertaram algumas reflexões.

Suficientemente descrito o acaso, vamos o caso analisado pelo Carf.

O contribuinte sofreu autuação fiscal para cobrança de PIS/Cofins sobre importação de serviços em razão de remessas efetuadas ao exterior, para fins de pagamento de prestadores lá residentes, no contexto de, entre outros, contratos de prestação de serviço de consultoria para atividades estratégicas de divulgação e colocação de marca no país estrangeiro, bem como serviço de publicidade por veiculação da marca em canais estrangeiros.

Para contextualizar a motivação dessa cobrança, cumpre lembrar que a Lei nº 10.865/2004 estabeleceu a incidência do PIS/Cofins-Importação não só sobre operações internacionais com bens, mas também sobre aquelas relacionadas a prestação de serviços provenientes do exterior, prestados por pessoa física ou pessoa jurídica residente ou domiciliada no exterior.

Nesse contexto, o artigo 1º, §1º incisos I e II da Lei nº 10.865/2004 especifica as duas situações em que será considerada ocorrida a importação de serviços, para fins do PIS/Cofins-Importação, quais sejam: 1) serviços provenientes do exterior executados no país; e 2) serviços executados no exterior, mas com resultado verificado em território nacional. Não se deve perder de vista que em ambas as hipóteses é necessário que o serviço seja prestado por residente ou domiciliado no exterior

No que tange à primeira hipótese, não se apresentam maiores dificuldades. A execução do serviço contratado ocorrerá dentro do território nacional, de modo que o contratado atuará trazendo seu esforço humano para o Brasil, a fim de adimplir com o negócio jurídico firmado. Em assim fazendo, fará jus à contraprestação que será remetida ao exterior para pagamento do serviço aqui prestado, dando origem assim à ocorrência do fato gerador do PIS/Cofins-Importação (artigo 3º, II da Lei nº 10.865/2004).

A celeuma se instaura, isto sim, com relação ao inciso II do § 1º do artigo 1º da Lei nº 10.865/2004, quando prevê a incidência das contribuições em relação aos serviços “executados no exterior, cujo resultado se verifique no país”. Afinal, o que seria tal resultado? É necessário aferir quando existe a tal repercussão em território nacional.

O tema é de fato espinhoso e, alfim, é muito casuístico.

O que de pronto percebemos é que a discussão do PIS/Cofins-Importação anda em paralelo com a discussão do Imposto sobre Serviços (ISS) relativamente à exportação, porque ambos apresentam a ideia de “resultado” da prestação do serviço para fins da tributação, além de possuírem regulamentação publicada em datas muito próximas (vide artigo 2º, I, da Lei Complementar nº 116/2003). Ocorre que, circunstancialmente, o contencioso judicial instaurou-se primeiramente com relação ao ISS, e não com relação ao PIS/Cofins-Importação. Esse fato faz com que, em grande medida, as definições importantes para o tema encontrem-se na jurisprudência acerca da questão da exportação de serviços para fins de ISS, qual seja, o REsp nº 831.124 e o AREsp no 587.403, que geram a conhecida distinção entre resultado utilidade x resultado consumação para fins de interpretação do que seria resultado do serviço verificado no Brasil.

Como já adiantado, não mais visamos, na coluna de hoje, maiores explanações sobre o tema. Aqui basta dizer que os casos concretos analisados pelo STJ apresentavam realidades muito distintas. Enquanto o primeiro cuidou de um serviço cujo término de fato ocorreu no Brasil (conserto das peças de aeronave, não havendo obrigação nenhuma do contratante brasileiro a respeito da colocação dessas peças nas respectivas aeronaves localizadas no estrangeiro); o segundo avaliou caso cuja essência própria do serviço contratado era culminar na obtenção de bem (projeto de engenharia) somente utilizável em território alienígena (local da obra para qual foi desenhado o projeto). Percebemos que o objeto do contrato, no primeiro caso, era de fato restrito ao Brasil, enquanto no segundo caso não. Por isso, não é possível falar em uma mudança de entendimento ou resposta final data pelo STJ a respeito do tema. Disso, é possível, isto sim, dizer que os termos do negócio jurídico pactuado serão fundamentais para se concluir a respeito do local do “resultado” do serviço, seja para fins de não incidência do ISS, seja para fins de incidência do PIS/Cofins-Importação.

Tratando especificamente do tema no âmbito administrativo, em 2017 a Receita Federal adotou interpretação amplíssima ao exarar a Solução de Consulta Cosit nº 51/2017, dizendo que o resultado estaria vinculado ao local onde se dá o proveito econômico da prestação do serviço.

Todavia, a própria RFB apresentou outros atos normativos dissonantes em relação a este (e.g. Solução de Consulta 76/2018).

Alfim, a Solução de Consulta nº 51/2017, foi parcialmente reformada pela Solução de Consulta Cosit nº 99.008/2018 e, posteriormente, o tema foi pacificado por meio da Solução de Divergência nº 3/2020. Esse último ato, assim como os anteriormente mencionados, tratou do caso de comissão paga a agente ou representante comercial residente no exterior, cujos pagamentos são atrelados a captação e intermediação de negócio lá efetuados. Consolidou-se, nessa situação, o entendimento de que não há incidência do PIS/Cofins-Importação, por inexistir hipótese de serviço cujo resultado aqui se verifique.

Foi justamente o advento da Solução de Divergência n. 3/2020 que impactou decisivamente os debates da CSRF, no sentido de, por maioria de votos, reverter parcialmente a decisão exarada pela turma ordinária do Carf no Acórdão nº 3301-004.585.

Como é consabido, de um lado, temos no âmbito administrativo federal a função jurisdicional de apaziguar litígios entre Fisco e contribuintes por meio do seu contencioso. De outro lado, a Receita Federal atua em caráter consultivo, com o fim precípuo de evitar litígios e promover a segurança jurídica, pelo esclarecimento de dúvidas, conforme disciplina atualmente o Decreto 70.235/72, com as alterações promovidas pelos artigos 48 a 50 da Lei nº 9.430/96, e a IN RFB nº 2.059/2021.

Mas desde a edição da IN RFB nº 1.396/2013, os efeitos da solução de consulta e de divergência que, até então, restringiam-se ao consulente e à Receita Federal, passaram a ser vinculantes no âmbito da Receita Federal, respaldando qualquer o sujeito passivo que aplicar a orientação ali firmada, independentemente de ser o consulente, desde que se enquadre na hipótese por ela abrangida. Tal medida foi muito importante para consagrar não só a já citada segurança jurídica, como também a isonomia entre contribuintes, possibilitando a solução de casos relativos à proteção da confiança de maneira mais homogênea, também em sintonia com a ideia de impessoalidade que deve reger a administração pública.

Daí a questão tão relevante posta nos debates da CSRF [1].

Partindo do pressuposto que os conselheiros entenderam que o caso concreto que estava sob julgamento amoldava-se àquele que fora objeto da Solução de Divergência nº 3/2020, pergunta-se: se a autoridade fiscal não tem o poder lavrar autos de infração usando a interpretação de “resultado do serviço” contrária ao quanto posto na manifestação consultiva, por que poderiam ser mantidos autos de infração pelo Carf sob tal argumento, rechaçado pela própria Receita Federal?

É certo que a administração atuante como aplicadora da lei não se confunde com a administração como órgão judicante [2]. Ademais, o Carf, organicamente, está dentro da estrutura do Ministério da Economia, mas fora da Receita Federal, de modo que as manifestações exaradas em soluções de consulta ou divergência não vinculam formalmente o Carf. Todavia, nada disso parece justificar, tanto por simples lógica como pelo conteúdo do princípio da isonomia, resposta diferente daquela alcançada pelo Carf: na hipótese de a Receita Federal, em sua função consultiva, formalizar interpretação favorável ao contribuinte, tal entendimento merece ser observado no julgamento de cobranças tributárias do mesmo jaez. Afinal, com a Receita Federal — órgão cuja função arrecadatória é zelar pelo patrimônio público da União, via cobrança de tributos — dizendo que determinada situação não configura hipótese de incidência tributária, tem-se manifestação do próprio Estado em prol do particular que não pode ser levianamente ultrapassada. Em tal manifestação a própria administração tributária reconhece que não pode haver tributação.

Corroborando o ponto, vem à tona o princípio da autovinculação da administração pública.

Tal princípio, que visa proibir comportamentos contraditórios, faz todo sentido no contexto do dinamismo da sociedade atual, da falta de densidade da lei e do excesso de legislação, os quais podem dar ensejo a mudanças de opinião e conduta nas relações jurídicas [3].

Em poucas palavras, a lógica da proibição ao comportamento contraditório não é limitar a liberdade de mudança de opinião e de conduta no âmbito jurídico, mas sim brecar os efeitos dessa liberdade quando dela derivar prejuízo àquele que legitimamente confia na orientação que fora oferecida.Daí vem a importantíssima aferição de que a autovinculação “surge justamente em decorrência da circunstância de que as fórmulas legais são insuficientes para resolver todos os conflitos surgidos na sociedade” [4]. Ou seja, a proibição de comportamento contraditório serve como instrumento da justiça material nos casos de violação à confiança legítima dos administrados não solucionados por qualquer regra do direito positivo.

É justamente o que se verifica no caso posto em discussão, em que não há regra formal vinculando o Carf às manifestações da Cosit.

Para a aplicação do princípio da proibição do comportamento contraditório, poder-se-ia levantar a ideia de necessidade de identidade subjetiva, a qual exigiria que os entendimentos geradores da legítima confiança e do dano deveriam emanar da mesma pessoa jurídica, vale dizer, do mesmo órgão administrativo. Como na situação em análise temos órgãos diversos (Receita Federal e Carf), não seria o caso de aplicação do princípio.

Todavia, conforme a mais atual doutrina do direito administrativo, não é esse o entendimento que se alinha com a afirmação do princípio da segurança jurídica enquanto formador do dever constitucional de coerência administrativa.

É essencial, diante da complexidade do tecido social a ser alcançada pelos diversos braços de atuação do poder público, que existam descentralizações, para a melhoria no desempenho das funções administrativas, preservando a unidade da pessoa jurídica de Direito Público da qual fazem parte. Isso, porém, não afasta, mas sim atrai a necessidade de um desempenho congruente, harmônico dos entes e órgãos que compõem essa malha administrativa [5].

Dessarte, ainda que os atos contraditórios emanem de órgãos com competências diferentes, “o critério para aferir a ocorrência do requisito da identidade subjetiva continuará sendo o da mesma Administração Pública, cuja unidade não deixa de existir em virtude da sua divisão interna organizacional” [6].

Não se pode olvidar, ainda, que a teoria da autovinculação administrativa não é benéfica unicamente aos particulares, que terão sua justa expectativa preservada em situações que não foram comtempladas pelo ordenamento jurídico. A administração pública igualmente muito se favorece com seus efeitos, pois a sua atuação de maneira coerente implicará celeridade e integridade da resposta às demandas consultivas; na redução da litigiosidade no contencioso administrativo; na redução dos riscos e dos custos das relações jurídico-administrativas; “e a maior aceitação dos particulares às suas decisões e, por consequência, o reforço da legitimidade de sua atuação” [7].

Percebendo claramente tais elementos, durante os debates do julgamento do Processo 13312.000366/2009-53, a conselheira Liziane Angelotti Meira apresentou manifestação tão inteligente quanto corajosa sintetizando o tema: “não adianta ser mais realista que o rei”.

Por todas essas razões, é de se aplaudir a decisão exarada na estreia da nova composição da 3ª Turma da CSRF, interpretando o “resultado de serviço” com base no entendimento posto na Solução de Divergência nº 3/2020, quando afastou a cobrança de PIS/Cofins-importação de serviço pelo simples proveito econômico da contratante residente no Brasil. Ao assim fazer deu luz materialmente ao princípio da isonomia e da autovinculação da administração pública, fato que mais do que justifica a mudança do destino da coluna hoje apresentada aos nossos leitores.


[1] A questão dos efeitos de soluções de consulta no Carf, ao que tudo indica, igualmente será objeto de debate quando do julgamento a respeito da figura do “encomendante do encomendante” e da SC Cosit nº 158/2021, no âmbito da interposição fraudulenta de terceiros. Sobre o tema, ver: https://www.conjur.com.br/2022-jan-19/direto-carf-interposicao-fraudulenta-sc-cosit-1582021-1s-reflexos-carf

[2] Sobre a diferenciação entre a função administrativa ativa e a função administrativa judicante ver Botallo, Eduardo Domingos. Curso de Processo Administrativo Tributário. 2ª ed. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 65-66.

[3] SCHREIBER, Anderson. A proibição de comportamento contraditório: tutela da confiança e venire contra factum proprium. São Paulo: Atlas, 2016. p. 4.

[4] FACCI, Lucio Picanço. A proibição de comportamento contraditório no âmbito da Administração Pública: a tutela da confiança nas relações jurídico-administrativas. Revista da Emerj, [s.l.], v. 14, nº 53, p. 199, 2011.

[5] LAURENTIIS, Thais De. Mudança de Critério Jurídico pela Administração Tributária: regime de controle e garantia do contribuinte. São Paulo: IBDT, 2022, p. 313.

[6] FACCI, op. cit., p. 224. 

[7] OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. O papel da advocacia pública no dever de coerência na Administração Pública. Rei – Revista Estudos Institucionais, [s.l.], v. 5, nº 2, p. 389, 6 out. 2019. 

Thais de Laurentiis é conselheira titular do Carf, vice-presidente da Turma 1.201, árbitra no CBMA, doutora e mestre em Direito Tributário pela Faculdade de Direito da USP — com período na Sciences Po/Paris —, especialista pelo Ibet, graduada pela Faculdade de Direito da USP, associada do IBDT e professora de Direito Tributário e Direito Aduaneiro em cursos de pós-graduação e extensão universitária.

Revista Consultor Jurídico, 14 de setembro de 2022, 8h00

O ITBI no divã? Efeitos do acórdão proferido no RE 1.937.821 (parte 1)

1) Introdução
Três decisões recentes dos tribunais superiores têm provocado uma espécie de “crise de personalidade” no Imposto sobre Transmissões de Bens Imóveis (ITBI), gerando questionamentos capazes de abalar a sua trajetória histórico-constitucional e a sua higidez no ordenamento jurídico brasileiro vigente.

A primeira decisão dos tribunais a ser analisada nesta série de artigos é a mais recente e mais polêmica. Trata-se do acórdão proferido pela 1ª Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ) no Recurso Especial nº 1.937.821 (Tema 1.113), com caráter repetitivo, interposto contra decisão colegiada do Tribunal de Justiça de São Paulo, decidindo um Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas.

Antes de passar ao caso concreto, vale acentuar que a análise de decisões judiciais num sistema (que se pretende) de precedentes exige que se percorra algumas etapas na pesquisa e compreensão da jurisprudência e dos julgados individualmente considerados.

Em primeiro lugar, deve-se aferir a situação processual do caso examinado antes de se enveredar pelo seu mérito. Essa etapa é importante porque esse iter analítico tem sido, cada vez mais, solapado por notícias abreviadas ou resumidas sobre a “jurisprudência dos tribunais” nas mídias tradicionais e sociais, que se equivocam sobre as matérias decididas pelos tribunais, ao ponto de serem quase “fake news” jurídicas.

Em segundo lugar, é preciso examinar e compreender alguns elementos que delimitam o campo de cognição do caso, tais como: o objeto da ação originária, os tipos de instrumentos recursais utilizados e o conteúdo dos respectivos julgamentos. Somente assim se poderá compreender o alcance e os limites das decisões recorridas.

2) Aspectos processuais
O caso em foco tem origem em ação judicial de repetição de indébito de ITBI proposta pela empresa Fortress Negócios Imobiliários contra o Município de São Paulo (MSP). Na petição inicial, a empresa requereu a devolução da diferença entre o valor do imposto calculado pela Secretaria Municipal de Fazenda paulistana e o que seria, segundo ela, devido com base no preço pago pela arrematação do imóvel em hasta pública judicial. Na mesma época, outras duas ações semelhantes de repetição de indébito de ITBI foram movidas pela empresa nos municípios paulistas de Bertioga e Itu.

A sentença julgou procedente a ação contra o município de São Paulo, determinando o recálculo do ITBI e adotando como valor venal do imóvel aquele fixado para fins de incidência de IPTU ou o valor da arrematação, “o que fosse maior” — no caso, o último, diante de uma base de cálculo bastante defasada de IPTU. O MSP apelou (13/12/2017) e a empresa, então, requereu a instauração de IRDR. Fez, contudo, uma delimitação ampla para o IRDR, sem mencionar casos semelhantes com necessidade de uniformização, apenas “casos futuros”, indo muito além dos limites processuais estabelecidos pelo artigo 976 do CPC. Apesar disso, o pedido foi deferido.

Esse foi, então, recebido e processado pela Turma Especial de Direito Público do TJ-SP, que determinou a suspensão do curso processual da Apelação (23/04/2018), sem suspender nenhum recurso relativo ao tema. Até mesmo a apelação entre a Fortress e o município de São Paulo acabou julgada pela 14ª Câmara do TJ-SP (28/6/2018) — que não enfrentou a matéria tratada no IRDR, apenas a incidência ou não de juros no indébito pleiteado.

Contra esse Acórdão, foi interposto REsp pelo MSP (8/5/2019), que foi inadmitido na origem, mas acabou sendo conhecido após agravo de instrumento em REsp. Por falta de “pré-questionamento”, o ARESP nº 1.493.616 foi rejeitado em decisão monocrática. A matéria, então, precluiu em 28/2/2020.

Neste ínterim, o 7º Grupo de Direito Público do TJ-SP julgou o IRDR (em 23/05/2019) e seus julgadores:

“FIXARAM A TESE JURÍDICA DA BASE DE CÁLCULO DO ITBI, DEVENDO SER CALCULADO SOBRE O VALOR DO NEGÓCIO JURÍDICO REALIZADO E, SE ADQUIRIDO EM HASTAS PÚBLICAS, SOBRE O VALOR DA ARREMATAÇÃO OU SOBRE O VALOR VENAL DO IMÓVEL PARA FINS DE IPTU, AQUELE QUE FOR MAIOR, AFASTANDO O VALOR DE REFERÊNCIA”

Ao final, do voto-vencedor, o desembargador Burza Neto assinalou que:

“Por essas razões, a base de cálculo do ITBI deve corresponder ao valor venal do bem imóvel transferido e, caso este valor seja inferior ao da negociação, deve prevalecer este último.

Ocorrendo isto, pelo meu voto, no julgamento do incidente, FIXO A TESE JURÍDICA DA BASE DE CÁLCULO DO ITBI, DEVENDO CORRESPONDER AO VALOR VENAL DO IMÓVEL OU AO VALOR DA TRANSAÇÃO, PREVALECENDO O QUE FOR MAIOR.”

Um novo REsp foi interposto pelo MSP contra o acórdão do IRDR (8/8/2019), mas foi inadmitido na origem (4/9/2019). Todavia, após interposição de agravo pelo ente, foi conhecido e convolado pelo STJ em REsp (em 11/5/2021), sob o nº 1.937.821. Em 5/10/2021, esse recurso foi afetado ao regime dos recursos repetitivos. Em 24/2/2022, a 1ª Seção do STJ deu parcial provimento ao recurso do município de São Paulo, com as seguintes conclusões:

a) a base de cálculo do ITBI é o valor do imóvel transmitido em condições normais de mercado, não estando vinculada à base de cálculo do IPTU, que nem sequer pode ser utilizada como piso de tributação;

b) o valor da transação declarado pelo contribuinte goza da presunção de que é condizente com o valor de mercado, que somente pode ser afastada pelo fisco mediante a regular instauração de processo administrativo próprio (artigo 148 do CTN);

c) o Município não pode arbitrar previamente a base de cálculo do ITBI com base em valor de referência estabelecido unilateralmente.

O MSP opôs Embargos de Declaração em 27/4/2022, alegando que o IRDR não resolveu as demandas repetitivas, pois sequer se referiu aos três casos da mesma empresa; que os demais casos apontados como repetitivos (Bertioga e Itu) foram julgados em sentido contrário ao do IRDR pelo TJSPque não havia interesse processual na continuidade do REsp do MSP, contra o acórdão do IRDR; e que a parte do acórdão que desproveu o REsp promoveu uma reformatio in pejus na medida em que adotou o preço do negócio jurídico como base de cálculo do ITBI em detrimento do valor venal de mercado (próprio dos impostos sobre o patrimônio) sem sequer se referir ao critério adotado pelo IRDR – para que se aplicasse o valor maior. Os embargos foram rejeitados sob a alegação genérica de que não havia omissão, obscuridade ou contradição no acórdão do repetitivo.

Em 23/06/2022, o MSP interpôs Recurso Extraordinário ao STF alegando que o REsp seria descabido por força da disciplina constitucional (artigo 105, III, CRFB), na medida em que teria sido interposto contra IRDR decidido em abstrato, o que não seria possível segundo entendimento do próprio STJ (no RE nº 1.798.374). Além disso, diz ter havido agressão ao devido processo legal constitucional (artigo 5º, LIV, CRFB), na medida da reformatio in pejusque teria ocorrido contra o recorrente quando o acordão afastou o critério do IPTU e trouxe critérios abstratos que sequer estavam em discussão. Vale ressaltar que o Recurso Extraordinário ainda não foi julgado, não havendo, assim, trânsito em julgado da decisão do STJ.

2) Efeitos das decisões proferidas no caso
a) Limites Processuais do Acórdão do REsp 1.937.821.
Para além da falta do trânsito em julgado, cumpre observar que, por ser oriundo de um RE interposto contra Acórdão de IRDR de Tribunal Estadual, só pode ser considerada válida e eficaz se estiver vinculada a um caso concreto (“causa decidida”). Do contrário, não seria sequer cabível o seu processamento como apelo especialíssimo, como já assentou o próprio STJ em recente decisão da sua Corte Especial, ao julgar procedente o incidente de inconstitucionalidade suscitado no Recurso Especial 1.798.374 (18/5/2022).

Ainda, é necessário circunscrever a vinculatividade do Acórdão proferido no REsp nº 1.937.821 ao objeto do caso concreto julgado pelo TJ-SP. A repetição de indébito proposta pela Fortress se limita à discussão da base de cálculo do ITBI em arrematações de imóveis ofertados em hastas públicas judiciais. Nesse sentido, a doutrina abalizada de Antônio do Passo Cabral [1], nos comentários do artigo 987, e a de Cássio Scarpinella Bueno [2]assim também entendem na medida em que trazem que apenas um caso concreto a ser julgado (e não um incidente formado a partir de um punhado) seria capaz de legitimar o cabimento daqueles recursos na perspectiva constitucional (artigos 102, III e 105, III, CRFB). 

Com efeito, ainda que o IRDR e o voto do ministro Gurgel de Faria tenham se arvorado em digressões abstratas sobre a base de cálculo e modalidades de lançamento cabíveis na gestão fiscal do ITBI pelos municípios brasileiros, não se pode extrair destes Acórdãos um caráter de norma geral, transcendente dos limites do caso concreto e da res in iudicio deducta. Do contrário, seria uma ultrapassagem dos limites do artigo 976, CPC, e, sobretudo, da competência recursal do STJ, delimitada pelo artigo 105, III, CRFB, conforme confirmado pela Corte Especial do STJ e pelo STF (RE 581. 947). Isso poderia sustentar a inconstitucionalidade suscitada pelo MSP.

Nesse sentido, frisa-se: O entendimento fixado pelo STJ no REsp 1.937.821 só pode ser interpretado como aplicável aos casos de aferição da base de cálculo do ITBI relativos a arrematações de imóveis em hastas públicas e não a todas as hipóteses de alienação sujeitas ao ITBI. Somente essa matéria vinha sendo decidida pelo STJ nesse sentido. Não havia jurisprudência sua que sustentasse editar um tema de Repetitivo para a discussão de base de cálculo de ITBI em outras hipóteses de alienação de imóveis, sobretudo em negócios jurídicos particulares!

O preço pago na arrematação em hasta pública (salvo se “preço vil”) já era o valor adotado nas legislações de vários municípios brasileiros [3]. Optavam pela praticidade fiscal na definição do elemento quantitativo do fato gerador abstrato do imposto. Pela publicidade e formalidade dos atos, essa modalidade de alienação imobiliária (em sede judicial) dá segurança jurídica suficiente para que as autoridades fiscais tenham, nesse valor, um indicador objetivo, confiável, do valor venal do imóvel para fins de incidência do ITBI, já que insujeito à livre disposição das partes negociantes. 

b) A decisão de mérito e seus fundamentos (RE 1.937.821): matérias não integrantes da “causa decidida”só podem ser entendidas como obiter dicta
O imperativo processual da “causa decidida” limita o pedido do REsp e o campo de cognição do STJ no caso. Por força do princípio da non reformatio in pejus, a conclusão do julgado só poderia determinar a adoção dos valores fixados pela Prefeitura ou a manutenção do critério alternativo: o valor venal declarado (assumido como indício do valor de mercado efetivo e atual) ou a base de cálculo do IPTU — o que fosse o maior. Neste sentido, a 1ª Seção do STJ jamais poderia derivar os debates para outras hipóteses que não foram objeto do caso concreto e muito menos julgar o caso em desfavor do único recorrente.

A abordagem geral sobre base de cálculo e modalidades de lançamento só pode ser entendida como obiter dicta. Isto é, como manifestaçõescircunstanciais sobre outras hipóteses de incidência do ITBI, diversas das alienações de imóveis decorrentes de arrematações em hastas públicas, em relação às quais o Acórdão não possui teor vinculativo algum. Isso afrontaria os limites constitucionais que balizam a sua competência recursal, a divisão de Poderes e o federalismo fiscal.

c) Limites processuais do acórdão: aplicação restrita ao Poder Judiciário, conveniência ou não, de sua adoção pelas administrações públicas municipais
Por fim, é relevante a discussão sobre a vinculatividade da decisão às administrações públicas municipais. Os municípios que possuírem leis prevendo a incidência do ITBI sobre o valor venal do imóvel (calculado pela prefeitura) estão obrigados a acatar a decisão do STJ? Pode-se adiantar que não.

A decisão do REsp Repetitivo não tem alcance e grau de vinculatividade do Poder Executivo ou das administrações públicas no Brasil. Entretanto, há diversos preceitos processuais insertos no Código de Processo Civil brasileiro determinando a vinculação automática de todos os graus do Poder Judiciário à matéria decidida em recursos repetitivos, inclusive devendo ser deferida tutela da evidência (artigo 311, inciso III do CPC).

No entanto, as municipalidades não estão obrigadas a alterarem a sua legislação. Deve-se ponderar, contudo, em em juízo de conveniência e oportunidade, quanto ao seguimento ou não da decisão do STJ, inclusive em vista de eventual busca pela superação total (overruling) ou parcial (overriding) do precedente por decisão futura do próprio STJ e, especialmente, do STF.

3) Conclusão
A análise do acórdão permite concluir:

1) O Acórdão proferido no REsp nº 1.937.821 não transitou em julgado, sendo objeto de Recurso Extraordinário interposto pelo município de São Paulo, cujo pedido de anulação se baseia, principalmente, em dois fundamentos:

a. O RESP em foco violou a hipótese de cabimento prevista no inciso III, do artigo 105 da Constituição, não podendo versar sobre tema genérico, abstraindo-se da causa decidida, nos termos do que foi recém assentado pela Corte Especial do STJ no julgamento do incidente de inconstitucionalidade nº 1.798.374;

b. O referido RESP não poderia realizar um julgamento extra petita e muito menos promover uma reformatio in pejus, uma vez que o único recorrente era o próprio município de São Paulo, e o julgamento do IRDR ateve-se a critério totalmente distinto e limitado às arrematações;

2) Ainda que houvesse transitado em julgado, o Acórdão proferido em Recurso Especial repetitivo não tem efeitos vinculantes para as administrações públicas tributárias, nem mesmo para a do município de São Paulo – havendo, todavia, o risco de maior velocidade de futuras decisões em litígios judiciais, acolhendo automaticamente os critérios adotados neste acórdão — caso transitado em julgado – ainda que os seus efeitos sejam compreendidos de forma bem mais restrita da que está sendo difundida nas mídias especializadas, restringindo-o aos casos de arrematações em hastas públicas.

3) Diante das limitações processuais impostas pelo critério da “causa decidida”, nos termos do inciso III do artigo 105 da Constituição de 1988, o Acórdão do RESP 1.937.821 só pode ser entendido como válido e eficaz para as discussões acerca da base de cálculo do ITBI para arrematações em hastas públicas, inclusive porque o entendimento pretérito do STJ e de diversas legislações municipais já apontavam o montante do lance vencedor do praceamento do imóvel como valor seguro para fins de fixação da base de cálculo, considerando-o um procedimento formal realizado em sede judicial, capaz de fornecer um valor objetivo e seguro, não disponível à livre negociação e às subjetividades das partes, ainda possa ser criticado por ser uma espécie de “venda forçada”.

Continua parte 2

[1] Cf. In: CABRAL, Antônio do Passo; CRAMER, Ronaldo (coord.). Rio de Janeiro: Forense, 2015, p. 1.452-1.453.

[2] Cf. Manual de Direito Processual Civil. 8 ed., 2002, São Paulo: SaraivaJur.

[3] Cite-se, como exemplo, as seguintes legislações municipais: Porto Alegre (Lei Complementar Municipal n. 197/89); Florianópolis (Lei Complementar nº 007/1997, com a redação dada pela LC 683/2019); Belo Horizonte (Decreto n. 17.026/2018 (regulamenta a Lei nº 5.492/88); Curitiba (Lei Complementar nº 108/2017); Porto Velho (Lei Complementar nº 878/2021).

Ricardo Almeida Ribeiro da Silva é professor da pós-graduação em Direito Tributário da Uerj/Ceped e do PJT/ABDF (Associação Brasileira de Direito Financeiro), mestre em Direito Público pela Uerj, procurador do município do Rio de Janeiro, assessor jurídico da Abrasf e advogado.

Revista Consultor Jurídico, 12 de setembro de 2022, 6h14

Norma cria política para reduzir contencioso tributário judicial e administrativo

A redução da alta litigiosidade do contencioso tributário nacional e seus impactos no Poder Judiciário e na sociedade brasileira são objetivos da nova política judiciária aprovada na 110ª Sessão Virtual do Conselho Nacional de Justiça, realizada entre os dias 18 e 26 de agosto.

A resolução institui a Política Judiciária Nacional de Tratamento Adequado à Alta Litigiosidade do Contencioso Tributário e busca garantir o direito à solução dos conflitos tributários de forma efetiva, proporcionando celeridade e acesso à Justiça. A aprovação do ato normativo originou a Resolução CNJ 471/2022, que contém medidas que visam promover uma mudança cultural no contencioso tributário.

A Semana Nacional da Autocomposição Tributária está prevista para ocorrer sempre em outubro e buscará, por meio da realização de mutirões e mobilizações, estimular a realização de acordos entre as partes envolvidas em demandas tributárias. 

Também foi aprovada a criação da Rede Nacional de Tratamento Adequado à Alta Litigiosidade do Contencioso Tributário, que procurará estimular a cooperação entre o ambiente tributário administrativo e judicial, observar precedentes em matérias tributárias, além de celebrar protocolos institucionais para intercâmbio de informações e provas, diligências e ações de assistência e orientação aos contribuintes.

Diagnóstico
A formulação da política prevista nas normas aprovadas teve como base o documento Sistematização do Diagnóstico do Contencioso Judicial Tributário, concebido pela Secretaria Especial de Programas, Pesquisas e Gestão Estratégica do CNJ. A obra reúne os resultados obtidos no Diagnóstico do Contencioso Judicial Tributário, elaborado pelo Insper para o CNJ, de maneira elucidativa acrescida de discussão e proposição de medidas concretas, com o objetivo de não apenas reduzir a litigiosidade, mas em especial promover uma mudança na cultura.

Relator da proposta, o conselheiro Marcus Vinícius Rodrigues enfatizou que o CNJ será o impulsionador da política por meio da Comissão de Solução Adequada de Conflitos. “À Comissão caberá instituir ações, pesquisas e projetos para redução da alta litigiosidade, visando a aplicação uniforme da legislação tributária no âmbito do Poder Judiciário, o respeito aos precedentes da matéria e o estímulo à solução adequada de conflitos tributários, sempre por meio do incremento da cooperação entre o ambiente tributário administrativo e judicial”.

Presidente da Comissão Permanente de Solução Adequada de Conflitos, Rodrigues ressaltou que os tribunais deverão atuar pela implementação da política de tratamento à elevada litigiosidade do contencioso tributário. “Todos devem buscar interlocução com outros tribunais e com os órgãos integrantes da rede constituída por todos os órgãos do Poder Judiciário e por entidades públicas e privadas parceiras, inclusive universidades e instituições de ensino”.

Mais cooperação
A Sistematização do Diagnóstico do Contencioso Judicial Tributário Nacional integra os resultados obtidos na seara administrativa e na seara judicial. Também observa precedentes, incentiva a celebração de protocolos institucionais e a realização de estudos futuros focados nos contenciosos tributários, nas procuradorias e nas administrações tributárias do governo federal, estadual e municipal. Rodrigues observou que os estudos ressaltaram que existe uma carência em termos de cooperação entre os atores do sistema.

“Tudo isso revela a urgência para integrar as searas administrativa e judicial, bem como o estabelecimento de laços com os contribuintes. Apenas fortalecendo a confiança entre as partes envolvidas no contencioso tributário, poderemos alcançar a efetiva garantia de direitos”. Segundo ele, a política não se restringe a garantir direitos, mas tem a ambição de ser o pontapé inicial para uma mudança de cultura na relação fisco, contribuinte e Judiciário, “ultrapassando os velhos conceitos de embate para uma nova agenda de cooperação”.

No voto, o relator lembrou ainda que os relatórios Justiça em Números têm apontado as execuções fiscais como o principal fator de morosidade do Poder Judiciário, correspondendo a 36% do total de casos pendentes em 2020, chegando à taxa de congestionamento de 87%. Com informações da assessoria de imprensa do CNJ.

Ato Normativo 0005089-62.2022.2.00.0000

Limites de alçada no âmbito do PAT e mandado de segurança

A atividade jurisdicional prestada, em caráter atípico [1], pela administração pública por meio de seus órgãos de contencioso-administrativo tributário submete-se aos princípios constitucionais que compõem o modelo constitucional de processo, os quais devem ser interpretados e aplicados à luz das particularidades das lides tributárias. Essa premissa assume grande relevância quando se tem em mira as noções de contraditório e ampla defesa que, por expressa determinação constitucional (artigo 5°, LV, CF/88 [2]), hão de ser garantidas ao jurisdicionado no âmbito dos processos administrativos, incluídos, neste escaninho, os de natureza tributária.

É nesse contexto que a questão atinente à garantia ao duplo grau de jurisdição no âmbito dos processos administrativos tributários (PATs) tem lugar, em especial em casos específicos em que a legislação processual mitiga o acesso do sujeito passivo às instâncias administrativas de segundo grau a partir de critérios que fogem à razoabilidade. 

O duplo grau de jurisdição, não há dúvidas, constitui corolário direto dos cânones do contraditório e da ampla defesa, contando, também, com menção expressa no texto constitucional (“com os meios e recursos a ela inerentes”), o que faz dele uma garantia inafastável do sujeito passivo tributário no âmbito dos processos administrativos 

Nesse sentido, Rodrigo Dalla Pria explica:

“Corolário dos cânones constitucionais da ampla defesa e da motivação é o – não menos importante – princípio do duplo grau de jurisdição, que também se manifesta no contexto dos processos administrativos tributários. Por duplo grau de jurisdição há que se entender o direito do jurisdicionado de, em face de erro ou de imprecisão do pronunciamento jurisdicional, reprovocar a atividade jurisdicional a fim de obter juízo de revisão da decisão exarada” [3].

De fato, na grande maioria das legislações que estruturam os contenciosos administrativo-tributários dos diversos entes políticos tributantes, essa garantia é expressamente resguardada. Exemplo disso é o que ocorre no âmbito federal, onde o Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), assume a condição de órgão de segundo grau de jurisdição, e, também, na legislação do contencioso tributário paulista, onde essa função é exercida pelo Tribunal de Impostos e Taxas (TIT). 

O que se questiona, nesse específico contexto, não é exatamente a existência ou não de um regime procedimental que garanta ao sujeito passivo o direito à revisão, por órgão de segundo grau de jurisdição, das decisões administrativas que lhes sejam desfavoráveis, mas sim de regras específicas que mitigam o acesso do jurisdicionado aos indigitados órgãos de segundo grau. 

É esse, exatamente, o caso da chamada “regra ou limite de alçada”, que restringe o direito de acesso do sujeito passivo tributário aos órgãos de segunda instância administrativa em razão do valor envolvido na lide. Em tais situações, a despeito de se garantir o direito à recorribilidade, eventual insurgência do sujeito passivo será objeto de apreciação pelo mesmo órgão que proferiu a decisão impugnada, o que resulta em prejuízo às noções de imparcialidade e independência. 

Os chamados “limites de alçada” apresentam-se, portanto, como regras que impedem o acesso aos órgãos de segunda instância administrativa nos casos em que o débito tributário exigido corresponde a valor igual ou inferior ao teto fixado pela legislação processual. No estado de São Paulo, por exemplo, essa limitação está disposta no artigo 40 da Lei estadual nº 13.457/2009 [4] e corresponde a 20 mil Ufesps [5]. Já em âmbito federal, a regra foi inserida pelo artigo 23 da Lei nº 13.988/2020[6], que estabelece o teto 60 salários mínimos.

Assim, autos de infração, devidamente impugnados, que tenham como objeto crédito tributário inferior ao “valor de alçada”, se mantidos em primeira instância, não poderão ser levados à apreciação dos órgãos colegiados de segundo grau. O que se tem, em verdade, é o mero exercício da recorribilidade perante o mesmo órgão que proferiu a decisão recorrida, o qual estará incumbido de exarar verdadeiro juízo de (auto)revisão.

Ora, para que haja pleno exercício do direito ao duplo grau de jurisdição não basta garantir ao jurisdicionado a possibilidade de obtenção de um juízo de revisão exarado pela mesma autoridade fiscal que proferiu a decisão recorrida. É necessário que o direito à recorribilidade seja exercido perante órgão de instância superior que possa exercer o controle da legalidade da decisão recorrida de forma independente e imparcial. 

Ademais, não se pode admitir que sujeitos passivos que tenham sido autuados por débitos fiscais de valores distintos sejam submetidos a regimes processuais diferentes, onde aqueles que são titulares de débitos maiores tenham a pleno gozo do direito de recorrer, tal como posto no texto Constitucional, e outros contribuintes, titulares de débitos menores, tenham essa garantia tolhida. Trata-se, em verdade, de uma clara e indesejada inversão de valores, pois o débito fiscal que tem maior potencial lesivo ao erário possui maiores e melhores garantias de controle do que aquele que tem menor potencial lesivo.

Não é preciso maiores esforços interpretativos para concluir que esse tratamento discriminatório ofende, flagrantemente, o princípio da isonomia [7], por não manter correlação lógica entre o fator erigido como critério de distinção (valor da dívida tributária) e a discriminação legal decidida em função dele (não acessibilidade à segunda instância administrativa) [8]

Em nosso sentir, essa situação, por violar direito líquido e certo do sujeito passivo às instâncias recursais ordinárias, autoriza o manejo do mandado de segurança — preventivo ou repressivo — voltado ao processamento, remessa e conhecimento do recurso pelo órgão colegiado administrativo de segunda instância. Em tais circunstâncias, vale insistir, o uso do mandado de segurança terá como fim específico garantir o direito do sujeito passivo ao acesso às instâncias recursais de segundo grau, não estando vinculado a quaisquer questões de mérito do recurso, isto é, da dívida tributária em si, o que afasta a possibilidade de eventual alegação de concomitância entre os processos administrativos e judicial (artigo 38, parágrafo único, da LEF) [9]


[1] Mais detalhes a respeito dessa tomada de posição nos seguintes trabalhos desta coluna:
https://www.conjur.com.br/2022-abr-10/processo-tributario-reforma-contencioso-administrativo-tributario

https://www.conjur.com.br/2022-mai-01/processo-tributario-reforma-contencioso-tributario-parte
https://www.conjur.com.br/2022-abr-17/processo-tributariocooperacao-entre-processo-judicial-administrativo-tributarios

[2] CF/88: “Art. 5º – (…)
LV – aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes.”

[3] DALLA PRIA, Rodrigo. Direito Processual Tributário. 2ª Ed., São Paulo: Noeses, 2020, p. 655. 

[4] Lei estadual nº 13.457/2009: “Art. 40 – Da decisão favorável à Fazenda Pública do Estado no julgamento da defesa, em que o débito fiscal exigido na data da lavratura do auto de infração corresponda a até 20.000 (vinte mil) Unidades Fiscais do Estado de São Paulo – UFESPs, poderá o autuado interpor recurso voluntário, dirigido ao Delegado Tributário de Julgamento”.

[5] Uma Ufesp corresponde a R$ 31,97 (para o ano de 2022), de maneira que, no âmbito do estado de São Paulo o acesso ao TIT supõe dívida tributária superior a R$ 639.400,00.

[6] Lei federal nº 13.988/2020: “Art. 23 – Observados os princípios da racionalidade, da economicidade e da eficiência, ato do Ministro de Estado da Economia regulamentará: 

I – o contencioso administrativo fiscal de pequeno valor, assim considerado aquele cujo lançamento fiscal ou controvérsia não supere 60 (sessenta) salários mínimos;
II – a adoção de métodos alternativos de solução de litígio, inclusive transação, envolvendo processos de pequeno valor.
Parágrafo único. No contencioso administrativo de pequeno valor, observados o contraditório, a ampla defesa e a vinculação aos entendimentos do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais, o julgamento será realizado em última instância por órgão colegiado da Delegacia da Receita Federal do Brasil de Julgamento da Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil, aplicado o disposto no Decreto nº 70.235, de 6 de março de 1972, apenas subsidiariamente”.

[7] “Trata-se, não há dúvidas, de um expediente discriminatório que viola frontalmente o cânone da isonomia, especialmente se considerarmos o fato de os maiores carecedores de justiça tributária serem os sujeitos passivos com menor capacidade econômica e aqueles que realmente se preocupam com uma gestão tributária de excelência (o que não os exime de erros e autuações).” (DALLA PRIA, Rodrigo. Direito Processual Tributário. 2ª ed., São Paulo: Noeses, 2020, p. 658). 

[8] MELLO, Celso Antonio Bandeira de. In Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade. 3ª edição, 9ª tiragem. São Paulo: Malheiros, 2001.

[9] Lei de Execuções Fiscais (LEF): “Artigo 38 – (…)

Parágrafo único — A propositura, pelo contribuinte, de ação prevista neste artigo importa em renúncia ao poder de recorrer na esfera administrativa e desistência do recurso acaso interposto”.

Danilo Monteiro de Castro é advogado, mestre e doutor em Direito Tributário pela PUC-SP, professor do Ibet, juiz do TIT-SP e pesquisador do grupo de estudos de Processo Tributário Analítico do Ibet.

Renato Turatti Miranda é advogado, sócio na Junqueira de Carvalho e Murgel Advogados Associados, mestrando e especialista em Direito Tributário pelo Ibet.

Revista Consultor Jurídico, 11 de setembro de 2022, 8h00

Modulação que bate em Chico deveria bater em Francisco

Tem sido objeto de controvérsia, e geradora de insegurança jurídica, a maneira como um instituto — criado para dar segurança — vem sendo utilizado pelo Supremo Tribunal Federal: a modulação dos efeitos de suas decisões, ou, em outros termos, a limitação temporal de sua eficácia.

Um aspecto que pode ser destacado é a atenção aos requisitos que deveriam ser observados, a fim de se fazer uma modulação desse tipo, independentemente da lide subjacente ou das partes que nela litigam. Trata-se de algo excepcional, destinado, nas palavras de Paulo Bonavides, a evitar que se crie, com a declaração de inconstitucionalidade, uma situação “ainda mais inconstitucional”.

Precisamente por isso, a modulação exige, primeiro, que se esteja diante de situação na qual a declaração de inconstitucionalidade criará efeitos negativos excepcionais e expressivos.

Mas não só. É preciso, ainda, que, além do efeito negativo excepcional, se esteja diante de situação em que a pessoa que sofre tais efeitos, ou ônus, agia de boa fé e não poderia antevê-los, não sendo razoável exigir dela que os tivesse previsto.

Esses são, por exemplo, os requisitos exigidos pela Corte Europeia de Justiça (ECJ) para proceder a essa limitação temporal, não se permitindo que a mera necessidade de restituir tributos indevidos — consequência lógica, e nada excepcional, de toda decisão que afirma inválida a norma que os cria — seja motivo para modulações. Também não se modula quando a invalidade decorre da aplicação de entendimento jurisprudencial que era, ou deveria ser, conhecido por parte de quem editou a norma em sentido contrário, criando o tributo mesmo assim.

O Supremo Tribunal Federal talvez não esteja sendo tão atento a tais premissas, notadamente quando se trata de lei instituidora de tributo depois declarada inconstitucional. A modulação tem sido a regra, como se nota em casos como o da exclusão do ICMS da base de cálculo do PIS e da Cofins, da invalidade das alíquotas excessivas do ICMS incidente sobre energia elétrica, das normas que ampliavam os prazos decadenciais e prescricionais para lançamento e cobrança de contribuições previdenciárias, ou do diferencial de alíquota do ICMS nas operações destinadas a não contribuintes do imposto, apenas para citar alguns exemplos. Levantada a questão apenas da tribuna, pela Fazenda que se percebe perdedora durante a sessão, ou mesmo só depois, em declaratórios, a modulação foi concedida em todos esses casos, porque a mera necessidade de restituição seria um “prejuízo”.

Sem entrar no mérito, aqui, da questão de saber se havia alguma dúvida sobre a essencialidade da energia elétrica, ou da necessidade de lei complementar para traçar prazos de decadência tributária, por exemplo, o fato é que igual complacência não se tem visto, em situações nas quais o novo entendimento, de cuja limitação temporal se cogita, prejudica o contribuinte que se pautava por critérios anteriores e pela decisão substituídos. Nesses casos, aliás, há um agravante: o contribuinte não raro confia em jurisprudência que já existe, pacífica, afirmando a invalidade do tributo, e quando a questão chega ao STF, este altera esse entendimento, passando a afirmar devida a exação. A mudança, que por vezes se dá na jurisprudência da própria Corte Maior, pega contribuintes de surpresa, e pune aqueles que inclusive haviam há muito deixado de recolher a exação. Foi o que se deu, por exemplo, no que tange à revogação da isenção de Cofins das sociedades de profissionais, cuja invalidade havia sido reconhecida pelo STJ (Súmula 276/STJ), tendo o STF reiteradas vezes afirmado que a questão não lhe competia examinar, por ser meramente infraconstitucional. Com a alteração do entendimento, afirmou-se válida a revogação, e devida a contribuição por todos aqueles que vinham há anos sem a recolher, por confiarem na jurisprudência.

Atualmente, coloca-se na corte a questão de saber se deve ser modulada a decisão que afirmou válida a incidência de contribuição patronal sobre o terço de férias (RE 1.072.485). Muitos contribuintes vinham, há anos, sem recolher a exação, confiando em uma jurisprudência pacífica formada a respeito. Até que a Corte Maior afirma a validade da cobrança, sem qualquer ressalva ou observação excepcional quanto àqueles que, amparados no entendimento anterior, não a vinham recolhendo. Suscitada então a necessidade de modulação, diante da surpresa da reviravolta jurisprudencial, a questão está pendente, interrompida por pedido de destaque do ministro Fux.

Caso não haja a modulação, neste caso, haverá mais do que um prejuízo expressivo — pois às exações não computadas como custo, que as empresas agora terão de pagar, ainda se acrescerão multas e juros —; haverá um golpe na confiança de quem assim agia por levar a sério as orientações do Poder Judiciário. E, se a modulação ressalvar apenas aqueles que já entraram com ações até alguma data a ser estabelecida no passado, o que às vezes ocorre, ter-se-á mais uma sinalização para que, na dúvida, se judicialize o quanto antes toda e qualquer questão, incentivo nada bom diante do atual cenário de congestionamento desnecessário do Poder Judiciário. Mas o pior, se não houver modulação, será a mensagem de que só tem direito à segurança o poder público, que edita normas inconstitucionais para se beneficiar, não raro em desrespeito à jurisprudência já firmada; já o cidadão, em nome do qual historicamente se criaram Constituições e catálogos de direitos fundamentais, destinatário último destes, quando segue os pronunciamentos judiciais e com base neles se organiza, não tem.

Hugo de Brito Machado Segundo é mestre e doutor em Direito, professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará, professor do Centro Universitário Christus (graduação/mestrado), membro do Instituto Cearense de Estudos Tributários (Icet) e da World Complexity Science Academy (WCSA), advogado e visiting scholar da Wirtschaftsuniversität de Viena (Áustria).

Revista Consultor Jurídico, 7 de setembro de 2022, 8h00

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