É curioso como o acaso guarda caminhos inesperados para todas as ocasiões da vida de uma pessoa, inclusive para uma colunista da ConJur no momento de preparar um texto para o Direto do Carf.
Para o artigo de hoje, havia me proposto a, originalmente, cuidar da discussão a respeito do conceito de “serviços executados no exterior, cujo resultado se verifique no país” para fins de incidência do PIS/Cofins importação, nos moldes do artigo 1º, §1º inciso II da Lei nº 10.865/2004. Isto porque, no dia 16 de agosto de 2022, a 3ª Turma da Câmara Superior de Recursos Fiscais (CSRF) enfrentou o tema no julgamento do Processo 13312.000366/2009-53. Ocorre que, pelo fato de ainda não ter sido publicado o respectivo acórdão, somado à ansiedade de analisar rapidamente o precedente sobre matéria tão interessante, para ter acesso ao conteúdo da decisão fui obrigada a me socorrer à gravação da sessão de julgamento disponível no canal do Carf no YouTube. E foi aí que operou o acaso, tratando de fazer com que a coluna de hoje deixasse de ter como foco a questão específica da incidência do PIS/Cofins importação, passando a quedar-se, isto sim, sobre a força e a importância, no bojo do processo administrativo fiscal, das manifestações emanadas pela Receita Federal em sede consultiva. Afinal, esse foi o ponto nodal das discussões travadas entre os conselheiros no referido precedente, que despertaram algumas reflexões.
Suficientemente descrito o acaso, vamos o caso analisado pelo Carf.
O contribuinte sofreu autuação fiscal para cobrança de PIS/Cofins sobre importação de serviços em razão de remessas efetuadas ao exterior, para fins de pagamento de prestadores lá residentes, no contexto de, entre outros, contratos de prestação de serviço de consultoria para atividades estratégicas de divulgação e colocação de marca no país estrangeiro, bem como serviço de publicidade por veiculação da marca em canais estrangeiros.
Para contextualizar a motivação dessa cobrança, cumpre lembrar que a Lei nº 10.865/2004 estabeleceu a incidência do PIS/Cofins-Importação não só sobre operações internacionais com bens, mas também sobre aquelas relacionadas a prestação de serviços provenientes do exterior, prestados por pessoa física ou pessoa jurídica residente ou domiciliada no exterior.
Nesse contexto, o artigo 1º, §1º incisos I e II da Lei nº 10.865/2004 especifica as duas situações em que será considerada ocorrida a importação de serviços, para fins do PIS/Cofins-Importação, quais sejam: 1) serviços provenientes do exterior executados no país; e 2) serviços executados no exterior, mas com resultado verificado em território nacional. Não se deve perder de vista que em ambas as hipóteses é necessário que o serviço seja prestado por residente ou domiciliado no exterior
No que tange à primeira hipótese, não se apresentam maiores dificuldades. A execução do serviço contratado ocorrerá dentro do território nacional, de modo que o contratado atuará trazendo seu esforço humano para o Brasil, a fim de adimplir com o negócio jurídico firmado. Em assim fazendo, fará jus à contraprestação que será remetida ao exterior para pagamento do serviço aqui prestado, dando origem assim à ocorrência do fato gerador do PIS/Cofins-Importação (artigo 3º, II da Lei nº 10.865/2004).
A celeuma se instaura, isto sim, com relação ao inciso II do § 1º do artigo 1º da Lei nº 10.865/2004, quando prevê a incidência das contribuições em relação aos serviços “executados no exterior, cujo resultado se verifique no país”. Afinal, o que seria tal resultado? É necessário aferir quando existe a tal repercussão em território nacional.
O tema é de fato espinhoso e, alfim, é muito casuístico.
O que de pronto percebemos é que a discussão do PIS/Cofins-Importação anda em paralelo com a discussão do Imposto sobre Serviços (ISS) relativamente à exportação, porque ambos apresentam a ideia de “resultado” da prestação do serviço para fins da tributação, além de possuírem regulamentação publicada em datas muito próximas (vide artigo 2º, I, da Lei Complementar nº 116/2003). Ocorre que, circunstancialmente, o contencioso judicial instaurou-se primeiramente com relação ao ISS, e não com relação ao PIS/Cofins-Importação. Esse fato faz com que, em grande medida, as definições importantes para o tema encontrem-se na jurisprudência acerca da questão da exportação de serviços para fins de ISS, qual seja, o REsp nº 831.124 e o AREsp no 587.403, que geram a conhecida distinção entre resultado utilidade x resultado consumação para fins de interpretação do que seria resultado do serviço verificado no Brasil.
Como já adiantado, não mais visamos, na coluna de hoje, maiores explanações sobre o tema. Aqui basta dizer que os casos concretos analisados pelo STJ apresentavam realidades muito distintas. Enquanto o primeiro cuidou de um serviço cujo término de fato ocorreu no Brasil (conserto das peças de aeronave, não havendo obrigação nenhuma do contratante brasileiro a respeito da colocação dessas peças nas respectivas aeronaves localizadas no estrangeiro); o segundo avaliou caso cuja essência própria do serviço contratado era culminar na obtenção de bem (projeto de engenharia) somente utilizável em território alienígena (local da obra para qual foi desenhado o projeto). Percebemos que o objeto do contrato, no primeiro caso, era de fato restrito ao Brasil, enquanto no segundo caso não. Por isso, não é possível falar em uma mudança de entendimento ou resposta final data pelo STJ a respeito do tema. Disso, é possível, isto sim, dizer que os termos do negócio jurídico pactuado serão fundamentais para se concluir a respeito do local do “resultado” do serviço, seja para fins de não incidência do ISS, seja para fins de incidência do PIS/Cofins-Importação.
Tratando especificamente do tema no âmbito administrativo, em 2017 a Receita Federal adotou interpretação amplíssima ao exarar a Solução de Consulta Cosit nº 51/2017, dizendo que o resultado estaria vinculado ao local onde se dá o proveito econômico da prestação do serviço.
Todavia, a própria RFB apresentou outros atos normativos dissonantes em relação a este (e.g. Solução de Consulta 76/2018).
Alfim, a Solução de Consulta nº 51/2017, foi parcialmente reformada pela Solução de Consulta Cosit nº 99.008/2018 e, posteriormente, o tema foi pacificado por meio da Solução de Divergência nº 3/2020. Esse último ato, assim como os anteriormente mencionados, tratou do caso de comissão paga a agente ou representante comercial residente no exterior, cujos pagamentos são atrelados a captação e intermediação de negócio lá efetuados. Consolidou-se, nessa situação, o entendimento de que não há incidência do PIS/Cofins-Importação, por inexistir hipótese de serviço cujo resultado aqui se verifique.
Foi justamente o advento da Solução de Divergência n. 3/2020 que impactou decisivamente os debates da CSRF, no sentido de, por maioria de votos, reverter parcialmente a decisão exarada pela turma ordinária do Carf no Acórdão nº 3301-004.585.
Como é consabido, de um lado, temos no âmbito administrativo federal a função jurisdicional de apaziguar litígios entre Fisco e contribuintes por meio do seu contencioso. De outro lado, a Receita Federal atua em caráter consultivo, com o fim precípuo de evitar litígios e promover a segurança jurídica, pelo esclarecimento de dúvidas, conforme disciplina atualmente o Decreto 70.235/72, com as alterações promovidas pelos artigos 48 a 50 da Lei nº 9.430/96, e a IN RFB nº 2.059/2021.
Mas desde a edição da IN RFB nº 1.396/2013, os efeitos da solução de consulta e de divergência que, até então, restringiam-se ao consulente e à Receita Federal, passaram a ser vinculantes no âmbito da Receita Federal, respaldando qualquer o sujeito passivo que aplicar a orientação ali firmada, independentemente de ser o consulente, desde que se enquadre na hipótese por ela abrangida. Tal medida foi muito importante para consagrar não só a já citada segurança jurídica, como também a isonomia entre contribuintes, possibilitando a solução de casos relativos à proteção da confiança de maneira mais homogênea, também em sintonia com a ideia de impessoalidade que deve reger a administração pública.
Daí a questão tão relevante posta nos debates da CSRF [1].
Partindo do pressuposto que os conselheiros entenderam que o caso concreto que estava sob julgamento amoldava-se àquele que fora objeto da Solução de Divergência nº 3/2020, pergunta-se: se a autoridade fiscal não tem o poder lavrar autos de infração usando a interpretação de “resultado do serviço” contrária ao quanto posto na manifestação consultiva, por que poderiam ser mantidos autos de infração pelo Carf sob tal argumento, rechaçado pela própria Receita Federal?
É certo que a administração atuante como aplicadora da lei não se confunde com a administração como órgão judicante [2]. Ademais, o Carf, organicamente, está dentro da estrutura do Ministério da Economia, mas fora da Receita Federal, de modo que as manifestações exaradas em soluções de consulta ou divergência não vinculam formalmente o Carf. Todavia, nada disso parece justificar, tanto por simples lógica como pelo conteúdo do princípio da isonomia, resposta diferente daquela alcançada pelo Carf: na hipótese de a Receita Federal, em sua função consultiva, formalizar interpretação favorável ao contribuinte, tal entendimento merece ser observado no julgamento de cobranças tributárias do mesmo jaez. Afinal, com a Receita Federal — órgão cuja função arrecadatória é zelar pelo patrimônio público da União, via cobrança de tributos — dizendo que determinada situação não configura hipótese de incidência tributária, tem-se manifestação do próprio Estado em prol do particular que não pode ser levianamente ultrapassada. Em tal manifestação a própria administração tributária reconhece que não pode haver tributação.
Corroborando o ponto, vem à tona o princípio da autovinculação da administração pública.
Tal princípio, que visa proibir comportamentos contraditórios, faz todo sentido no contexto do dinamismo da sociedade atual, da falta de densidade da lei e do excesso de legislação, os quais podem dar ensejo a mudanças de opinião e conduta nas relações jurídicas [3].
Em poucas palavras, a lógica da proibição ao comportamento contraditório não é limitar a liberdade de mudança de opinião e de conduta no âmbito jurídico, mas sim brecar os efeitos dessa liberdade quando dela derivar prejuízo àquele que legitimamente confia na orientação que fora oferecida.Daí vem a importantíssima aferição de que a autovinculação “surge justamente em decorrência da circunstância de que as fórmulas legais são insuficientes para resolver todos os conflitos surgidos na sociedade” [4]. Ou seja, a proibição de comportamento contraditório serve como instrumento da justiça material nos casos de violação à confiança legítima dos administrados não solucionados por qualquer regra do direito positivo.
É justamente o que se verifica no caso posto em discussão, em que não há regra formal vinculando o Carf às manifestações da Cosit.
Para a aplicação do princípio da proibição do comportamento contraditório, poder-se-ia levantar a ideia de necessidade de identidade subjetiva, a qual exigiria que os entendimentos geradores da legítima confiança e do dano deveriam emanar da mesma pessoa jurídica, vale dizer, do mesmo órgão administrativo. Como na situação em análise temos órgãos diversos (Receita Federal e Carf), não seria o caso de aplicação do princípio.
Todavia, conforme a mais atual doutrina do direito administrativo, não é esse o entendimento que se alinha com a afirmação do princípio da segurança jurídica enquanto formador do dever constitucional de coerência administrativa.
É essencial, diante da complexidade do tecido social a ser alcançada pelos diversos braços de atuação do poder público, que existam descentralizações, para a melhoria no desempenho das funções administrativas, preservando a unidade da pessoa jurídica de Direito Público da qual fazem parte. Isso, porém, não afasta, mas sim atrai a necessidade de um desempenho congruente, harmônico dos entes e órgãos que compõem essa malha administrativa [5].
Dessarte, ainda que os atos contraditórios emanem de órgãos com competências diferentes, “o critério para aferir a ocorrência do requisito da identidade subjetiva continuará sendo o da mesma Administração Pública, cuja unidade não deixa de existir em virtude da sua divisão interna organizacional” [6].
Não se pode olvidar, ainda, que a teoria da autovinculação administrativa não é benéfica unicamente aos particulares, que terão sua justa expectativa preservada em situações que não foram comtempladas pelo ordenamento jurídico. A administração pública igualmente muito se favorece com seus efeitos, pois a sua atuação de maneira coerente implicará celeridade e integridade da resposta às demandas consultivas; na redução da litigiosidade no contencioso administrativo; na redução dos riscos e dos custos das relações jurídico-administrativas; “e a maior aceitação dos particulares às suas decisões e, por consequência, o reforço da legitimidade de sua atuação” [7].
Percebendo claramente tais elementos, durante os debates do julgamento do Processo 13312.000366/2009-53, a conselheira Liziane Angelotti Meira apresentou manifestação tão inteligente quanto corajosa sintetizando o tema: “não adianta ser mais realista que o rei”.
Por todas essas razões, é de se aplaudir a decisão exarada na estreia da nova composição da 3ª Turma da CSRF, interpretando o “resultado de serviço” com base no entendimento posto na Solução de Divergência nº 3/2020, quando afastou a cobrança de PIS/Cofins-importação de serviço pelo simples proveito econômico da contratante residente no Brasil. Ao assim fazer deu luz materialmente ao princípio da isonomia e da autovinculação da administração pública, fato que mais do que justifica a mudança do destino da coluna hoje apresentada aos nossos leitores.
[1] A questão dos efeitos de soluções de consulta no Carf, ao que tudo indica, igualmente será objeto de debate quando do julgamento a respeito da figura do “encomendante do encomendante” e da SC Cosit nº 158/2021, no âmbito da interposição fraudulenta de terceiros. Sobre o tema, ver: https://www.conjur.com.br/2022-jan-19/direto-carf-interposicao-fraudulenta-sc-cosit-1582021-1s-reflexos-carf
[2] Sobre a diferenciação entre a função administrativa ativa e a função administrativa judicante ver Botallo, Eduardo Domingos. Curso de Processo Administrativo Tributário. 2ª ed. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 65-66.
[3] SCHREIBER, Anderson. A proibição de comportamento contraditório: tutela da confiança e venire contra factum proprium. São Paulo: Atlas, 2016. p. 4.
[4] FACCI, Lucio Picanço. A proibição de comportamento contraditório no âmbito da Administração Pública: a tutela da confiança nas relações jurídico-administrativas. Revista da Emerj, [s.l.], v. 14, nº 53, p. 199, 2011.
[5] LAURENTIIS, Thais De. Mudança de Critério Jurídico pela Administração Tributária: regime de controle e garantia do contribuinte. São Paulo: IBDT, 2022, p. 313.
[6] FACCI, op. cit., p. 224.
[7] OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. O papel da advocacia pública no dever de coerência na Administração Pública. Rei – Revista Estudos Institucionais, [s.l.], v. 5, nº 2, p. 389, 6 out. 2019.
Thais de Laurentiis é conselheira titular do Carf, vice-presidente da Turma 1.201, árbitra no CBMA, doutora e mestre em Direito Tributário pela Faculdade de Direito da USP — com período na Sciences Po/Paris —, especialista pelo Ibet, graduada pela Faculdade de Direito da USP, associada do IBDT e professora de Direito Tributário e Direito Aduaneiro em cursos de pós-graduação e extensão universitária.
Revista Consultor Jurídico, 14 de setembro de 2022, 8h00