Oportunidades da transação tributária federal: será que agora vai?

A partir da divulgação dos atos que regulamentam a transação tributária relativa a débitos inscritos em dívida ativa e para a resolução do contencioso judicial e administrativo, respectivamente, a Portaria PGFN/ME nº 6757/2022 e a Portaria RFB nº 208/2022, a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional e a Receita Federal passaram a apostar suas fichas na atração do interesse dos contribuintes em transacionar seus débitos.

Todos sabem que a Lei nº 13.988/2020 foi o marco instituidor dessa modalidade de liquidação de dúvidas. Relembre-se que, até então, vigiam os programas de parcelamentos especiais, concedidos de tempos em tempos, tais como os chamados de “Refis”, “Refis da crise”, “Refis da Copa”, “Paes” e “Pert”, onde as concessões de redução de multa e juros e prazos de pagamento eram oferecidas indistintamente a todos os contribuintes, independentemente da saúde financeira de cada um.

Diferentemente, na transação celebrada com a Fazenda há um ranqueamento da dívida tributária entre aquela de alta, média, difícil ou de impossível recuperabilidade, isso, à luz da situação econômica individual do devedor. Regra geral, quanto mais difícil a situação de recuperabilidade dos débitos tributários maiores serão os descontos especiais para o pagamento e a liquidação do débito.

Em 22 de junho deste ano foi publicada a Lei nº 14.375/2022 trazendo modificações na legislação até então vigente com o objetivo de estimular o interesse dos contribuintes em transacionar suas dívidas com a União, inserindo no espectro desse acordo os débitos do contencioso administrativo fiscal,  além da regra geral da concessão de redução de até 65% do valor total dos valores a serem transacionados, parcelamento em até 120 meses e , principalmente, a possibilidade de uso  de prejuízo fiscal de IRPJ e de base negativa da CSLL para pagamento de até 70% do saldo remanescente após as reduções, créditos esses do próprio devedor, do responsável ou oriundos de empresas vinculadas societariamente, entre outros.

Nosso objetivo é aqui tecer alguns comentários sobre essa última medida citada, relativa à possibilidade de uso dos saldos de prejuízo fiscal e da base negativa da CSLL, algo que despertou um grande interesse nas empresas diante da possibilidade de escoamento desses créditos fiscais, os quais, muitas vezes, nem mesmo podem ser registrados contabilmente em face da falta de perspectiva de utilização mediante a contraposição a lucros tributáveis futuros.

A Portaria da PGFN nº 6.757/2022 tem um capítulo inteiro dedicado a esse tema. Prevê que esses créditos serão elegíveis para compor o plano de regularização à critério da Procuradoria e que seu uso somente será cabível em relação a créditos considerados irrecuperáveis ou de difícil recuperação e, ainda, se inexistentes ou esgotados outros créditos em desfavor da União. Além disso, é vedado o uso desse benefício nas transações por adesão e na transação simplificada (débitos superiores a R$ 1 milhão e inferiores a R$ 10 milhões).

A indicação de todas essas condições causou surpresa, pois não encontramos tais restrições expressas na Lei nº 14.375/2022 que introduziu esse mecanismo nas transações justamente para despertar o interesse do contribuinte. A portaria aludida provoca, nesta medida, o efeito contrário ao pretendido pela citada norma, frustrando as expectativas de muitos contribuintes que viam a possibilidade de discutir com a procuradora um acordo para liquidação de seus débitos, tendo esses créditos como elementos de composição dos acordos.

De seu turno, a recém editada Portaria RFB nº 208/2022 admite a liquidação de até 70% do saldo remanescente com a utilização de créditos de prejuízo fiscal e de base de cálculo negativa da CSLL na transação de créditos tributários em contencioso administrativo fiscal.

Embora o ato citado estabeleça que o uso desses créditos será concedido a exclusivo critério da RFB, não apresenta as demais condicionantes impostas pela PGFN em detrimento da abertura legal conferida para o uso desses créditos, o que pode representar um caminho mais largo para as negociações de débitos em processos administrativos.

Não obstante esses esclarecimentos trazidos nas citadas portarias, remanescem dúvidas acerca de como será efetuada a análise da capacidade econômica do sujeita passivo pretendente à transação. Sabe-se que, a depender dos parâmetros citados nos atos antes citados, os débitos serão classificados e graduados como do tipo “A” (débito com alta perspectiva de recuperabilidade) até o tipo “D” (débitos irrecuperáveis). Quanto maior a dificuldade de recuperação dos débitos, maiores serão os descontos.

Dependendo do rating apurado, a PGFN e a RFB poderão reduzir ou mesmo não aceitar o pedido de negociação desses créditos. Ademais, mesmo diante de um pedido individual que preencha as condições legais e regulamentares, não se pode garantir que esses entes vão aceitar o acordo pois os referidos órgãos públicos têm o poder discricionário de transacioná-los ou não.

A questão é saber se essas autoridades fiscais estariam dispostas a sentar à mesa de negociações com contribuintes detentores de créditos com alta e média perspectiva de recuperação. Cogitamos, nesse caso, da situação hipotética de uma empresa, com boa saúde financeira, em litígio com a administração tributária por entender indevida determinada imposição fiscal de alto valor, em relação à qual há diferentes visões interpretativas da norma aplicável, em débito superior a R$ 10 milhões. Esse contribuinte poderia estar disposto a renunciar a essa discussão diante da possibilidade de transacionar, mediante o uso de seus créditos de prejuízo fiscal e base negativa. Não estamos aqui a tratar da chamada transação sobre tese (contencioso tributário de relevante e disseminada controvérsia jurídica) em relação a qual a transação somente ocorre por adesão e em condições específicas.  

Com efeito, considerando que não há vedação expressa na legislação nem nas citadas Portarias, empresas com perfil A e B de recuperabilidade poderiam propor a transação, abrindo mão de suas alegações de direito,mediante concessão de prazo de pagamento e com o uso de seus saldos de prejuízo fiscal e de base negativa, ainda que não contassem com os descontos que são conferidos para situações de créditos irrecuperáveis e de difícil recuperação.

Os entes públicos, de sua parte, concordando com a proposição deste tipo de contribuinte, estariam garantindo o cumprimento de dois princípios e objetivos da transação expressos nas portarias publicadas, quais sejam, o da redução da litigiosidade e do atendimento do interesse público.

A redução da litigiosidade seria de claro atendimento, pois o contribuinte desistiria da discussão com o fisco resolvendo pagar o débito sob discussão; além disso, o interesse público também seria observado na medida em que ingressos de recursos financeiros seriam antecipados aos cofres públicos, numa situação em que, não houvesse a transação, tal valor não chegaria ao Tesouro caso o fisco fosse vencido na discussão ou, ainda que ganhasse, decorreria um longo lapso de tempo até que se alcançasse a fase de monetização com o pagamento do débito.

Portanto, parece possível a construção de tal quadro para viabilizar a canalização para a transação de um volume maior de débitos ou inscritos em contencioso administrativo fiscal, desafogando, ainda, o Judiciário e a máquina pública na administração de parte dos processos em curso.

De qualquer sorte, é recomendável que as empresas avaliem esse tipo de negociação, procedendo o mapeamento dos seus débitos, inclusive aqueles objeto de impugnação e de recurso no âmbito de um processo administrativo tributário, avaliando as suas exposições fiscais vis-à-vis a jurisprudência administrativa e judicial a respeito do tema, bem como efetuando a compilação dos saldos de prejuízos fiscais e bases negativas da CSLL das empresas do grupo e análise da perspectiva de utilização. 

A transação é um caminho salutar num país como o Brasil, de altíssima litigiosidade tributária, cenário totalmente adverso aos interesses e ao desenvolvimento do país. Por isso, contribuintes e fisco devem tentar se compor.

Evany Oliveira é sócia da RVC Advocacia e Consultoria Tributária e Empresarial.

Revista Consultor Jurídico, 25 de agosto de 2022, 19h26

Jurisprudência do TIT e do TJ-SP após julgamento do Tema 520 pelo STF

Em abril de 2020, o Supremo Tribunal Federal julgou o RE 665.134/MG (Tema 520), quando fixou a seguinte tese: “O sujeito ativo da obrigação tributária de ICMS incidente sobre mercadoria importada é o Estado-membro no qual está domiciliado ou estabelecido o destinatário legal da operação que deu causa à circulação da mercadoria, com a transferência de domínio”[1].

Ao enfrentar a questão da sujeição ativa do ICMS nas modalidades de importação, a corte conclui que: (1) na importação por conta e ordem de terceiro, é competente para exigir o imposto o estado onde se situa o real adquirente da mercadoria, ou seja, pessoa em nome de quem a tradingou comercial importadora promoveu a importação; (2) especificamente em relação à importação por conta própria, sob encomenda, o destinatário legal da mercadoria é a própria trading ou comercial importadora, de modo que a unidade federativa em que estão localizados tais estabelecimentos é a competente para exigir o ICMS sobre importação. 

Apenas para facilitar a compreensão desse breve texto, vale rememorar as diferenças entre as modalidades de importação. 

A importação por conta e ordem de terceiro caracteriza-se pela existência de uma trading ou comercial importadora que atua como mandatária em nome do real importador da mercadoria; embora promova em seu nome o despacho aduaneiro de importação de mercadorias adquiridas por essa outra empresa, não há com ela um contrato de compra e venda de mercadorias, mas mera prestação de serviços relacionados ao processo de importação. Em tal modalidade de importação, a empresa adquirente é que, via de regra, pactua a compra internacional do bem ou mercadoria, realiza o contrato de câmbio para pagamento da mercadoria e, portanto, figura como sua destinatária jurídica.

Por outro lado, na importação realizada sob encomenda prévia, a empresa importadora adquire mercadorias do exterior por meio de recursos próprios (observada a definição dada pelo artigo 3º da IN RFB 1937/2020) e promove o seu despacho aduaneiro de importação, com o intuito de revendê-las posteriormente ao encomendante/adquirente. Comerciais importadoras e tradings também realizam tal modalidade de importação (que nada mais é do que importação por conta própria), em que a mercadoria estrangeria será posteriormente revendida a pessoa pré-determinada. Há, portanto, duas operações jurídicas distintas: a importação realizada pela trading ou comercial importadora, e a posterior revenda da mercadoria (operação doméstica) ao encomendante.

Na modalidade de importação sob encomenda, portanto, é irrelevante ter havido destinação física da mercadoria ao estabelecimento importador; basta, tão somente, que o negócio jurídico não tenha sido entabulado de forma simulada pela trading ou comercial importadora. Não por outra razão, o STF, ao apreciar a redação do artigo 11, I, “d” da LC 87/96, houve por bem declarar a sua inconstitucionalidade parcial, sem redução de texto, em ordem a se afastar a sua aplicação, como critério único, para eleição do sujeito ativo do ICMS [2].

Esta decisão parecia resolver a grande insegurança presente nas operações por encomenda quando o encomendante e a comercial importadora estivessem localizadas em estados diferentes, na medida em que fez prevalecer o entendimento de que o estado competente para exigir o imposto é aquele em que está estabelecido o destinatário legal (real importador) da mercadoria (critério da destinação legal), sendo irrelevante, para tanto, a localidade para a qual foi remetida fisicamente

Alguns estados, todavia, ainda se reputam competentes para exigir o ICMS importação, principalmente quando o encomendante está sediado em seu território, pelo qual ingressa a mercadoria importada (critério da destinação física). Várias são as autuações lavradas contra empresas que firmam contratos de compra de mercadoria importada sob encomenda prévia com tradings ou comerciais importadoras, pelas quais, além de se exigir o ICMS-importação, glosam-se créditos do imposto relativo à aquisição destes produtos importados.

Essa situação é bastante comum nas hipóteses em que comerciais importadoras residentes em outros estados da federação, realizam importação sob encomenda e desembaraçam as mercadorias no próprio estado em que está situado o encomendante. Por questões logísticas, o produto importado é remetido simbolicamente ao estabelecimento importadora (trading), e remetida diretamente do porto ou local do desembaraço ao estabelecimento encomendante, o que é plenamente lícito e previsto, inclusive, na Instrução Normativa RFB Nº 1.861/2018 [3].

Entretanto, diante da decisão do Supremo Tribunal Federal, que fixou o critério do destinatário legal para fins de fixação do estado competente para exigir o ICMS importação, tem-se notado um movimento de alguns Estados para contornar a decisão da Corte.

O intuito desse breve artigo é, pois, demonstrar como as cortes administrativas e judiciais têm interpretado e aplicado a decisão do STF, frente a esse novo cenário. Para o efeito de delimitarmos o nosso campo de pesquisa, elegemos a jurisprudência das cortes administrativas e judiciais do Estado de São Paulo. Nesse sentido, levantamos 44 decisões proferidas após o julgamento do Tema 520, das quais 22 o foram pelo Tribunal de Impostos e Taxas (TIT) e 22 pelo Tribunal de Justiça (TJ-SP). Em ordem a sistematizar nossas conclusões, procuramos compilar os principais argumentos utilizados pelo Fisco e aqueles empreendidos pelos tribunais para resolução dos casos. 

Em análise aos argumentos do fisco tanto em sede administrativa quanto judicial, observamos que duas são as principais linhas de questionamento enfrentadas pelo sujeito passivo: (1) autuações que simplesmente ignoram ou tentam reinterpretar a decisão da Suprema Corte, de modo a limitar o seu alcance; (2) autuações que desqualificam as operações de importação por encomenda, de modo que sejam consideradas como importações por conta e ordem e, portanto, tendo o suposto encomendante como destinatário legal da mercadoria.

Exemplo da primeira linha argumentativa encontra-se na da Resposta à Consulta nº 24.816/2021 [4], a qual conclui, em contrariedade ao decidido pelo STF, que nas hipóteses em que a mercadoria é desembaraçada em porto paulista e remetida diretamente a estabelecimento localizado no estado de São Paulo, este seria competente para exigir o ICMS-Importação, ainda que se trate de importação por encomenda. 

Esse posicionamento encontra eco em algumas decisões do Tribunal de Impostos e Taxas, a exemplo do julgamento realizado no processo 4019009-2. Tal entendimento prestigia a aplicação do critério da destinação física, fazendo prevalecer a literalidade artigo 11, I, “d”, da LC 87/96, cuja inconstitucionalidade foi parcialmente declarada pelo STF a fim de se impedir a sua aplicação nas hipóteses de importação por encomenda em que o destinatário legal da mercadoria fosse distinto do destinatário físico.

Além da insistência do Fisco Paulista em aplicar o critério da destinação física nas situações em que o desembaraço da mercadoria importada se dá em seu território, a segunda linha argumentativa levantada pelo Fisco recai sobre se a “substância” da operação por encomenda. Nessa hipótese, argumenta-se que esse embora a operação tenha se revestido dessa roupagem, trata-se, em verdade, de importação por conta e ordem, o que resulta não apenas na cobrança do ICMS importação, mas também na glosa dos créditos tomados em razão operação interestadual de aquisição dos produtos importados pela Trading Company.

No primeiro caso, temos uma discussão de ordem jurídica, que, em tese, parece de fácil solução haja vista que suficientemente dirimida pelo STF; no segundo caso, temos uma discussão de ordem fática, que levanta questões tormentosa acerca da comprovação da essência da operação entabulada — se, de fato, consiste em importação sob encomenda. 

Vejamos, portanto, como tais questões têm sido endereçadas em julgamentos realizados no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP) e no Tribunal de Impostos e Taxas do Estado de São Paulo (TIT).

Das decisões levantadas, pudemos verificar que o precedente do STF fora mencionado e teoricamente aplicado na maior parte dos casos. Apenas 7% dos casos analisados observamos decisões que divergem frontalmente do leading case, por entenderem que o sujeito ativo do ICMS é aquele em que se situa o destinatário físico da mercadoria, e não o do destinatário jurídico. Em contrapartida, 93% das decisões encontradas fazem referência direta ao precedente em questão, mas a maioria (54%) acata o entendimento do fisco no sentido de desconsiderar os contratos de importação “por encomenda” e requalificá-los como importação “por conta e ordem”:

Dentre as inúmeras razões que levaram os tribunais a seguirem a convicção de que a importação se deu por conta e ordem do autuado, algumas são mais relevantes e podem e devem ser destacada. Dentre elas, verifica-se a presença do adquirente nos contratos de câmbio. Segundo o entendimento prevalecente, se a importação por encomenda é realizada pela Comercial Importadora ou trading, o adquirente da mercadoria não deveria constar no contrato de câmbio, já que esta conversão monetária diz respeito apenas à Trading Company, que troca a moeda nacional pela utilizada na negociação com o fornecedor estrangeiro. Consequentemente, a presença do adquirente neste contrato de câmbio indicaria ser ele o real importador (destinatário legal) da mercadoria, e não a comercial importadora, o que justificaria a competência impositiva do estado de São Paulo [5].

Outra questão comumente enfrentada nos julgados analisados diz respeito à real natureza da operação de importação. Nestes casos, apesar de tratarem a operação como importação por encomenda, tanto o adquirente (dito encomendante) quanto a comercial importadora a denominavam, nos contratos e tratativas, como por conta e ordem. Essa situação evidenciaria que os contribuintes estavam apenas buscando aplicar uma tributação mais benéfica, nada obstante a natureza do contrato firmado [6]. Importante registrar que esse entendimento está em linha com a tese fixado pelo STF.

Entretanto, algumas razões que embasam as decisões não são tão assertivas, como por exemplo quando se toma como prova apta a requalificar o contrato de importação sob encomenda o fato de que os custos da importação foram arcados pela adquirente, dita encomendante [7]. Embora se defenda que a mera antecipação de pagamentos para facilitar a operação não implica a conclusão de que o encomendante seria o destinatário legal da operação de importação, já que não é ele quem realiza o negócio jurídico internacional, parte dos julgados analisados entende essa circunstância seria prova da real natureza da operação – importação por conta e ordem. 

Outros julgados indicam que a presença do encomendante nas declarações de importação seriam provas de que ele seria o real importador (destinatário legal), e que teria se utilizado da comercial importadora como facilitadora dos procedimentos necessários à importação e desembaraço da mercadoria [8]. Esta alegação é ainda mais incoerente, já que, uma vez realizada a importação por encomenda, a encomendante sempre constará na Declaração de Importação como futura destinatária das mercadorias, inclusive sob denominação de “Adquirente da Mercadoria”, conforme orientação da própria Receita Federal e Notícia Siscomex Importação n° 56, de 19/5/2006 [9].

Outro ponto importante levantado pelos julgados foi a falta de comprovação dos pagamentos realizados à comercial importadora. Nestes casos, alegou-se que a ausência de tais documentos não permitia a conclusão de que as operações autuadas seriam, de fato, aquisição doméstica de mercadoria importada sob encomenda. Consequentemente, foi acatada a requalificação da operação para importação por conta e ordem [10].

Por fim, cumpre destacar que em diversas decisões se pontuou que a falta de comprovação das tratativas entre encomendante e comercial importadora levaria à conclusão de que haveria simulação quanto à natureza do contrato firmado. Ou seja, em tais casos houve inversão do ônus da prova para se exigir que o autuado comprovasse que era, de fato, mero encomendante da mercadoria, e não o importador. Nos termos desses julgados, a ausência de comprovação da boa-fé e da lisura do autuado redundariam em fortes indícios a permitirem a requalificação da operação como importação por conta e ordem [11].

Conclui-se, portanto, que o julgamento do Tema 520 não resolve toda a insegurança jurídica que paira sobre a questão. Empresas que busquem realizar operações de aquisição de mercadorias importadas mediante encomenda prévia ao importador, devem fazê-lo com vistas aos riscos de questionamentos envolvidos e às nuances que podem levar os tribunais à requalificação do contrato firmado. Nesse sentindo, recomenda-se enorme cuidado com os pontos formais e substanciais que envolvem a operação, e até mesmo sobre a necessidade de produção de provas prévias, tanto em relação aos documentos relacionados quanto no que diz respeito às próprias tratativas entre as empresas.


[1] Acórdão RE 665.134/MG, disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=752956713

[2] Sobre esse ponto, assim dispôs o voto vencedor do ministro Edson Fachin: “Por consequência, proponho a utilização de técnica de declaração de inconstitucionalidade parcial, sem redução de texto, ao art. 11, I, ‘d’, da Lei Complementar federal 87/96, para fins de afastar o entendimento de que o local da operação ou da prestação, para os efeitos da cobrança do imposto e definição do estabelecimento responsável pelo tributo, é apenas e necessariamente o da entrada física de importado, tendo em conta a juridicidade de circulação ficta de mercadoria emanada de uma operação documental ou simbólica, desde que haja efetivo negócio jurídico.”

[3] Art. 8º — Para cada operação de importação por encomenda, o importador por encomenda deverá emitir, observada a legislação específica: I – nota fiscal de entrada, após o desembaraço aduaneiro das mercadorias, na qual deverão ser informados: (…) II – nota fiscal de venda, na data da saída das mercadorias do estabelecimento do importador por encomenda ou do recinto alfandegado em que realizado o despacho aduaneiro, que terá por destinatário o encomendante predeterminado, na qual deverão ser informados:

[4] ICMS – Importação por encomenda – Desembaraço aduaneiro no mesmo Estado de localização da empresa comercial importadora. I. Na importação por encomenda, ocorrendo o desembaraço aduaneiro e a entrada física da mercadoria no Estado do estabelecimento do importador, a sujeição ativa relativamente aos dois fatos geradores, operação de importação e subsequente operação de venda, será do Estado do importador por encomenda. II. Na importação por encomenda cujo desembaraço aduaneiro ocorre no estado de São Paulo e o estabelecimento do encomendante (local da entrada física) também estiver localizado neste Estado, ocorrem duas operações de circulação de mercadorias, a de importação e a de venda ao encomendante, sendo o imposto de ambas operações devido ao Estado de São Paulo.

[5] A exemplo dos processos 1000552-69.2018.8.26.0372 (TJ-SP) e 4001730-8 (TIT)

[6] A exemplo dos processos 1006729-65.2020.8.26.0053 (TJ-SP) e 4132402-0 (TIT)

[7] A exemplo dos processos 1049903-90.2021.8.26.0053 (TJ-SP) e 4131436-0 (TIT)

[8] A exemplo dos processos 1041508-56.2014.8.26.0053 (TJ-SP) e 4132160-1 (TIT)

[9] https://www.gov.br/receitafederal/pt-br/assuntos/aduana-e-comercio-exterior/manuais/despacho-de-importacao/sistemas/siscomex-importacao-web/declaracao-de-importacao/funcionalidades/elaborar-uma-nova-solicitacao-de-di/preenchimento-da-di-1/formularios-de-dados-gerais-da-solicitacao-de-di/aba-importadort

[10] A exemplo dos processos 4015259-5 (TIT) e 4137079-0 (TIT)

[11] A exemplo dos processos 4108524-3 e 4137079-0 (TIT)

Gabriel Magalhães Borges Prata é advogado tributarista, sócio do escritório Brasil Salomão e Matthes Advocacia, LLM em Direito Tributário pela Queen Mary, Universidade de Londres, mestre pela PUC-SP e professor conferencista do Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (Ibet).

Pedro Monaco Ramalho é advogado tributarista, sócio do escritório Brasil Salomão e Matthes Advocacia, graduado pela Faculdade de Direito de Ribeirão Preto — USP e pós-graduado pela Fundação Getúlio Vargas.

Revista Consultor Jurídico, 24 de agosto de 2022, 19h24

O dilema de Alice e o Gato de Cheshire: a Súmula Carf nº 97 e o caminho a se seguir

Em sua coluna de 16/8/2022, aqui no ConJur (link), Rosaldo Trevisan, com sua escrita sempre brilhantemente técnica e espirituosa, escreveu um artigo relacionando a questão do “Dano ao Erário” nas penalidades aduaneiras a trechos do livro “Alice no País das Maravilhas”, do inglês Lewis Carroll, lançada em 1865. É, sem favor e sem dúvida, uma das minhas obras literárias favoritas, que a cada releitura me apresenta uma nova camada de interpretações e reflexões.

A lembrança da obra me fez rememorar uma célebre a passagem — talvez uma das mais famosas de todo o livro — em que Alice, a protagonista, se encontra com o Gato de Cheshire, o famoso gato sorridente, e estabelecem o seguinte diálogo, adaptado para abrirmos nosso artigo [1]:

Alice: Você poderia me dizer, por favor, qual o caminho para sair daqui?

Gato: Depende muito de onde você quer chegar.

Alice: Não me importa muito onde…

Gato: Nesse caso não faz diferença por qual caminho você vá.

Alice: …desde que eu chegue a algum lugar.

Gato: Oh, esteja certa de que isso ocorrerá, desde que você caminhe o bastante.

O Lucro Arbitrado é uma das bases de cálculo possíveis do imposto de renda, ao lado do Lucro Real e do Lucro Presumido. Apesar do Lucro Real coligir a maior quantidade de elementos com a finalidade de maximizar a pessoalidade na apuração do IRPJ, o Lucro Presumido e o Arbitrado também são baseados em fatos indiciários de capacidade contributiva, ainda que menos pessoais – um se justifica pela liberdade de opção do contribuinte, o outro pela presença de situações nas quais seria impossível ou altamente difícil apurar o Lucro Real.

Em suma, o Lucro Arbitrado é uma base de cálculo possível para o IRPJ, que se justifica pela impossibilidade ou elevadíssima dificuldade para mensurar a renda daquele contribuinte que não mantém livros contábeis, ou os mantém cheios de erros que comprometem sua veracidade, e que não atendem a deveres instrumentais imprescindíveis à essa determinação, em uma evidente concessão à praticabilidade tributária. 

Trata-se, à evidência, de um meio subsidiário de apuração dos tributos sobre a renda. Nesse sentido, o Carf tem reconhecido que “o artigo 47 da Lei nº 8.981, de 1995, ao usar a expressão de que o lucro será arbitrado, nos casos que especifica, não confere faculdade à autoridade fiscal, mas sim comando impositivo quanto à forma de tributação” (acórdão nº 1402-000.728 [2]) e, mais do que isso, que “o arbitramento é medida extrema, que deve ser adotada, principalmente, quando restar impossível a apuração da base de cálculo do imposto de acordo com a forma de tributação escolhida pelo Contribuinte” (acórdão nº 1401-002.200 [3], 1401-005.924 [4]).

A adoção do Lucro Arbitrado é obrigatória diante das hipóteses legais estabelecidas no artigo 603 do RIR/2018. Não é objeto do presente artigo analisá-las, valendo mencionar apenas que se referem a situações com descumprimento de obrigações acessórias, não apresentação de dados escriturais e apresentação de escrituração imprestável — impossibilitando a apuração do lucro —, ou em caso de opção indevida pelo Lucro Presumido. Presente pelo menos uma dessas situações, e se verificando a impossibilidade de coligir elementos para calcular o Lucro Real, a Receita Federal deveráprosseguir com a apuração pelo Lucro Arbitrado.

O cálculo do Lucro Arbitrado pode se dar de duas formas: 1) em se conhecendo a receita bruta, adota-se a forma do artigo 605 do RIR/2018, através da sua multiplicação pelos percentuais utilizados na sistemática de lucro presumido, majorados em 20%, aplicando-se daí as alíquotas cabíveis de IRPJ; 2) caso a receita bruta não seja conhecida, a legislação estabelece parâmetros alternativos para esse cálculo, conforme o artigo 608 do RIR/2018, valendo-se de diversas grandezas distintas, tais como valores em contas de ativo, capital social ou patrimônio líquido, compras realizadas no mês, folha de salários, aluguel mensal etc., aplicando a cada uma um percentual próprio. 

Pois bem. É exatamente na apuração do Lucro Arbitrado, nas hipóteses em que não se conhece a receita bruta, que se situa o problema a ser enfrentado nesse texto. 

É evidente que a escolha por um dos oito métodos alternativos do artigo 608 do RIR/2018 pode conduzir a valores os mais diversos, na apuração do Lucro ArbitradoE.g. considerando uma empresa que tenha um capital social muito inferior ao seu patrimônio líquido, a adoção do primeiro elemento gerará um lucro muito menor que o segundo.

Diante disso, alguns contribuintes alegam que a fiscalização deveria adotar o parâmetro que gere o menor ônus tributário, em um raciocínio construído por analogia do modelo brasileiro de preços de transferência, que adota a regra do melhor método (best method rule), em favor da liberdade do contribuinte em escolher aquele que lhe dê o resultado mais favorável, com base no artigo 20-A da Lei nº 9.430/96.

Por outro lado, esse pleito tem sido rejeitado peremptoriamente com fundamento na Súmula Carf nº 97, que dispõe, verbis:

“Súmula CARF nº 97: O arbitramento do lucro em procedimento de ofício pode ser efetuado mediante a utilização de qualquer uma das alternativas de cálculo enumeradas no art. 51 da Lei nº 8.981, de 20 de janeiro de 1995, quando não conhecida a receita bruta.”

Em diversos acórdãos que analisaram questionamentos dos contribuintes quanto à eleição da base de cálculo, tem se consignado que essa súmula facultaria à fiscalização a escolha de qualquer um dos critérios previstos no artigo 51 da Lei nº 8.981 (equivalente ao artigo 608 do RIR/2018), de formadiscricionária, para o cálculo do Lucro Arbitrado (e.g. acórdãos nº 1402-005.648 [5] e 1201-002.669 [6]).

Nenhum dos lados parece estar correto nessa discussão.

Por um lado, não entendemos que o contribuinte tenha direito ao método menos oneroso, como pleiteado, e tampouco há semelhanças o suficiente para aplicar, por analogia, o regime de preços de transferência.

Entendemos que a escolha do critério não é discricionária, como de resto o artigo 608, §1º, do RIR/2018 [7] já sinaliza, ao determinar a aplicação dos critérios dos incisos V, VI e VII do artigo 608 às atividades comerciais, industriais e de prestação de serviços, respectivamente. Esse dispositivo sinaliza, com acerto, que mesmo no procedimento de apuração do Lucro Arbitrado, a fiscalização deve sempre buscar a eleição de índices de riqueza que estejam mais adequados ao caso.

Nessa linha, a escolha do critério nunca pode ser discricionária. Pelo contrário, cabe à fiscalização demonstrar que o parâmetro escolhido é o mais fidedigno, à luz do caso concreto, para refletir a capacidade econômica do contribuinte, atendendo à determinação do artigo 145, §1º, da CF/88. Para isso, o fiscal deve justificar, no auto de infração, a escolha por determinado método, considerando as características do contribuinte e a informação disponível. 

Mais ainda, a escolha do critério não deve ser voltada nem a maximizar e nem a minimizar o ônus tributário, mas sim buscar estabelecer uma conexão por proximidade com a forma como a empresa aufere suas receitas

Por exemplo, ao se fiscalizar uma empresa de tecnologia, cujos rendimentos sejam majoritariamente derivados da exploração de intangíveis, não faz sentido se optar pela folha de salários ou pelo aluguel mensal devido como índices, pois gerarão um lucro distorcido. Em uma situação como essa, deve-se buscar a soma do valor dos ativos, ou o seu patrimônio líquido, como critérios mais fidedignos.

Em suma: a escolha do critério dentre os listados no artigo 608 do RIR/2018 não é discricionária, devendo guardar um grau relevante de conexão com a própria atividade da pessoa jurídica, podendo ser objeto de contestação pelo contribuinte, caso a opção se demonstre arbitrária.

E quanto ao teor da Súmula nº 97?

Com a devida vênia, analisando os acórdãos precedentes da referida súmula [8], parece-nos que aplicá-la para validar essa suposta discricionariedade é um equívoco

A tônica dos precedentes se relaciona à obrigação do Fisco apurar o Lucro Arbitrado, com base em um dos critérios do artigo 51 da Lei nº 8.981/95, nos casos em que a receita bruta do contribuinte não seja conhecida, e não a respeito da existência de liberdade da fiscalização na escolha de qual método utilizar. 

Compulsando todas as decisões, se verifica que em nenhuma delas os contribuintes argumentavam pela utilização de um ou outro critério dentre os previstos no referido artigo, mas contra a própria realização do arbitramento. Não há, nos precedentes, qualquer discussão acerca da existência de discricionariedade ou não da fiscalização na eleição dos métodos arrolados no artigo 608 do RIR/2018.

É curioso comparar a redação da súmula com a ementa do acórdão nº 101-94.964, de onde ela foi “extraída”, que dispõe: “Cabível o arbitramento do lucro através de procedimento de ofício, mediante a utilização de uma das alternativas de cálculo enumeradas no art. 51 da Lei nº 8.981, de 20 de janeiro de 1995, quando não conhecida à receita bruta“. 

Como se vê, enquanto a ementa falava em “utilização de uma das alternativas“, o texto da súmula ficou “utilização de qualquer uma das alternativas“, explicitamente dando a entender que o seu conteúdo se relacionaria à discricionariedade da fiscalização, induzindo os aplicadores em erro, ao ostentar uma redação que não está em conformidade com seus precedentes.

Portanto, entendemos que a súmula Carf nº 97 não poderia ser aplicada aos casos em que o contribuinte questione a escolha do critério de arbitramento do lucro, nas hipóteses de receita bruta não conhecida, com base no artigo 608 do RIR/2018.

Por meio da aplicação equivocada do referido enunciado sumular, o Carf tem permitido aos auditores-fiscais reproduzir, de forma distorcida, o dilema daAlice: ao alegarem não saber onde pretendem chegar, a súmula faz as vezes do Gato de Cheshire, avisando que qualquer caminho serve, para quem não se importa com o destino.

Trata-se de um falso dilema, pois a fiscalização possui, sim, um objetivo: a mensuração — da melhor forma possível — da capacidade econômica do contribuinte, mesmo nas hipóteses em que se recorra a elementos indiciários para apuração da base de cálculo. O Lucro Arbitrado é uma base de cálculo subsidiária em relação ao Lucro Real, mas essa concessão à praticabilidade não confere ao arbitramento natureza punitiva nem implica uma supressão absoluta do princípio da capacidade contributiva na eleição do critério adotado.

Ora, se há um destino a alcançar, o dilema se desfaz, pois nem todos os caminhos passam a ser igualmente válidos, e o conselho da nossa Súmula-Gato, de que “qualquer uma das alternativas de cálculo” poderia ser utilizada, perde qualquer sentido.

Trata-se, em rigor, de mais uma súmula cujo teor discrepa do conteúdo dos precedentes que a formaram, contribuindo para uma confusão no momento de sua aplicação e, ao final, no bloqueio de um possível e legítimo argumento de defesa dos contribuintes, na hipótese de arbitramento dos lucros. 

Em outra passagem da obra de Carroll, Alice vê o Gato desaparecendo devagar, da ponta do rabo até sobrar apenas o seu sorriso, e exclama: Epa! Eu já vi muitos gatos sem sorriso, mas nunca um sorriso sem gato! É a coisa mais curiosa que já vi em toda a minha vida!“. Parafraseando a primeira parte da afirmação, posso dizer que já vi muitos precedentes sem súmulas que os resumissem, mas nunca espero ver por aí súmulas que não sejam de acordo com seus precedentes. Quanto à segunda parte da frase, fica difícil parafraseá-la, quando tem se tornado cada vez menos curiosa a identificação desse fenômeno nas súmulas do Carf.

Temos nos esforçado em demonstrar, ao longo de diversos artigos desta coluna, que as súmulas do Carf têm muitos problemas na sua formação e na sua aplicação, por exemplo, no caso das Súmulas 11 (link), 169 (link) e 172 (link)que demandam uma revisitação crítica e urgente por parte da doutrina e do próprio tribunal, institucionalmente e por seus conselheiros. Àquelas que não atenderem aos standards jurídicos de criação e aplicação, deve valer a ordem preferida da Rainha de Copas: Cortem-lhe a cabeça!“.


[1] Adaptado a partir de: CARROLL, Lewis. Alice no País das Maravilhas, 2ª ed. São Paulo: Objetivo, 2000, p.81.

[2] Rel. Moisés Giacomelli, j. 29/9/2011.

[3] Rel. Luiz Augusto de Souza, j. 21/2/2018.

[4] Redator Designado André Severo Chaves, j. 18/10/2021.

[5] Rel. Evandro Correa Dias, j. 17/6/2021.

[6] Rel. Gisele Bossa, j. 21/11/2018.

[7] Art. 608. (…) § 1º. As alternativas previstas no inciso V ao inciso VII do caput , a critério da autoridade lançadora, poderão ter a sua aplicação limitada, respectivamente, às atividades comerciais, industriais e de prestação de serviços e, na hipótese de empresas com atividade mista, ser adotados isoladamente em cada atividade

[8] Acórdãos Precedentes: Acórdão nº 107-07.325, de 10/9/2003; Acórdão nº 105-14.330, de 18/03/2004; Acórdão nº 101-94.964, de 18/5/2005; Acórdão nº 107-08419, de 25/1/2006; Acórdão nº 1202-00.074, de 17/6/2009; Acórdão nº 1803-001.578, de 07/11/2012

Carlos Augusto Daniel Neto é sócio do escritório Daniel & Diniz Advocacia Tributária, em estágio pós-doutoral em Direito Tributário na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), doutor em Direito Tributário pela Universidade de São Paulo (USP), mestre em Direito Tributário pela PUC-SP, ex-conselheiro titular da 1ª e 3ª Seções do Carf, pesquisador do NEF/FGV e do Nupem/IBDT e professor permanente do mestrado profissional do Cedes e de diversos cursos de pós-graduação.

Revista Consultor Jurídico, 24 de agosto de 2022, 8h01

PROMESSAS TRIBUTÁRIAS DE CAMPANHA

Ainda de olho nas campanhas eleitorais, observamos dois temas tributários que ganharam repercussão nesta semana: a criação de um imposto sobre grandes fortunas e a correção da tabela do Imposto de Renda das Pessoas Físicas.

Para mitigar a situação dos que vivem sob extrema pobreza, Ciro Gomes propõe a criação de um benefício previdenciário constitucional que irá englobar o Auxílio Brasil, a aposentadoria rural e o Benefício de Prestação Continuada (BPC). Para financiar o tal benefício previdenciário constitucional, Ciro Gomes conta com as atuais fontes de custeio, mas também propõe uma receita extra originária do Imposto Sobre Grandes Fortunas (IGF).

Sem entrar no mérito dos valores que podem ser arrecadados com o IGF, não podemos deixar de apontar um óbice constitucional gravíssimo à proposta de Ciro Gomes: tratando-se de um imposto, o total arrecadado a título de IGF não poderá ter uma destinação específica.

O legislador constituinte, fiel à natureza não vinculada dos impostos – esta importante espécie tributária – fixou, no art. 167, IV, o famoso princípio da não afetação da receita de impostos. Este princípio segue uma lógica bem arraigada no Código Tributário Nacional: como os impostos não têm como fato gerador uma atividade estatal, muito pelo contrário, o produto de sua arrecadação não pode financiar uma despesa específica.

Portanto, Ciro Gomes, busque outra fonte de receita para o seu  benefício previdenciário constitucional, desde que não seja uma CPMF, por favor!

As campanhas de Lula, Bolsonaro e do próprio Ciro Gomes estão divulgando a necessidade de correção da tabela do imposto de renda devido pelas pessoas físicas (IRPF).

O que muda são os limites de isenção e as novas faixas de tributação que propõem.  

A preocupação em corrigir a Tabela do IRPF é legítima, mas como defendemos há anos, não é melhor solução para o problema.

Corrigir a Tabela não soluciona o mais importante problema do IRPF no Brasil: a exata fixação da base de cálculo do imposto.

Diversamente de outros países, o IRPF brasileiro incide sobre rendimentos que são utilizados pelo cidadão para sua subsistência e que representam gastos realizados pelas pessoas físicas para arcar com despesas que são dever do Estado.

A dedução de despesas médicas somente na Declaração faz com que o contribuinte acabe por antecipar durante o ano mais imposto do que deveria pagar. Além disso, por mais que sejam dedutíveis na DIPF os gastos com a mensalidade do plano de saúde e outras despesas médicas, a pesada conta dos remédios pagos na farmácia não pode ser abatida, como se o profissional de saúde tivesse o dom de resolver todos os problemas sem a prescrição de medicamentos.

A dedução das despesas com instrução somente na Declaração também perpetua injustiça, isto sem contar o limite na dedução desta despesa que precisa ser abolido.

Também há casos em que a legislação brasileira não admite em hipótese alguma a dedução. Basta lembrar que, no Brasil, as despesas necessárias à habitação – aluguéis ou prestações da casa própria – não podem ser deduzidas no cálculo do IRPF, seja a cada mês, seja na DIPF. 

Estas são apenas algumas situações que fazem com que o IRPF incida sobre rendimentos que são utilizados em despesas necessárias à existência digna do ser humano, o chamado mínimo existencial.

Há um novo Congresso Nacional em formação. Fica o alerta…

Filtros de conteúdo para o processo administrativo tributário

Como no judicial, também o processo administrativo sofre com o paradoxo da ampla acessibilidade versus o volume daí resultante — e, por derivação, a ampliação do tempo para sua solução.

Há, por certo, oscilações — a ideia de inafastabilidade, no plano judicial, é sabidamente mais intensa que em nível administrativo; há recortes (temporais, por exemplo) que fazem o acesso à jurisdição administrativa mais estreito etc.

A lógica, em sua essência é a mesma, porém: historicamente, operamos com a dominante interpretação (por momentânea conveniência, para alguns; por convicção intransponível, para outros) de que é desejo constitucional que a jurisdição, quer a administrativa, quer a convencionalmente exercida pelo Judiciário, seja amplamente acessí(á)vel, aspecto que selaria uma das faces do Estado de Direito, sobretudo no pós-ditadura [revalidamos, com essa breve observação, nossa particular convicção de que o percurso histórico, marcadamente o que foi vivido pelos grandes autores que fizeram as bases do Direito Público brasileiro, diz muito sobre a interpretação que carregamos sobre certos institutos, mesmo que não conheçamos ou que não tenhamos vivido a passagem de uma para outra dessas frações da história jurídica nacional (antecedente e posterior à Constituição de 1988)].

Podemos (ou melhor, devemos) reconhecer, no entanto, que o processo de amadurecimento democrático a que nos submetemos, passados mais de trinta anos, talvez já seja suficiente para nos colocar numa posição menos “absolutista” quanto ao “tamanho” que seguiremos dando à ideia de inafastabilidade de jurisdição — uma reflexão que nos agita a todos no ambiente tributário judicial e que deve ser transposta, da mesma forma, para o administrativo.

Mas não queremos falar, aqui, de acessibilidade no plano formal, senão material, de conteúdo, numa perspectiva que poderia colaborar para a minimização do problema de estoque processual e de tempo de duração, por conseguinte.

Em tempos como os atuais, em que tanto falamos — às vezes, inapropriadamente — de “precedente”, sabemos que certos temas podem e devem ser desde logo tomados como jurisdicionalmente acertados.

Sem entrar no debate (para nós estéril) sobre se essa premissa vale para o intercâmbio de “precedentes” do Judiciário para o plano do processo administrativo [mas já admitindo que, se o que nos faceia é decisão de caráter vinculante (premissa, pensamos, para a manutenção da unidade do sistema), existiria, sim, essa intercambialidade], é preciso inferir: há um campo da experiência jurisdicional que, na medida de sua evolução, vai tornando certos temas alheios a debate (o tema em si, frisemos, não as particularidades fáticas do caso), daí sobrevindo uma espécie de camada apta a reter a formação de processos “novos” sobre bases temáticas “velhas”.

Essa espécie de raciocínio — plenamente viável com as peças normativas de que dispomos hoje — constituiria um tipo de juízo de delibação prévio, com caráter conteudístico e não meramente formal, podendo significar um bom caminho na solução do problema a que antes nos referíamos — do volume de processos e do derivado alongamento em seu tempo de duração.

Essa providência foi inicialmente pensada, em nível judicial, já há tempos, especificamente em 2006, com a introdução do artigo 285-A no Código de Processo Civil então vigente (o de 1973) [1]. Se não foi escandalosamente aplicado em ambiente tributário, dada a formatação não tão interessante das hipóteses ali vertidas, o fato é que esse passo histórico não pode ser esquecido: não é nova a preocupação de nosso sistema processual com o estabelecimento de um filtro preliminar de natureza conteudística-material.

Plantada naquela ocasião, a ideia avançou várias casas no “jogo” da operatividade prática com o Código de 2015, diploma que a reescreveu de modo a assentar, agora sim, hipóteses muito bem delineadas. O fez em seu artigo 332, disposição cuja leitura vale muito à pena refazer:

“Art. 332. Nas causas que dispensem a fase instrutória, o juiz, independentemente da citação do réu, julgará liminarmente improcedente o pedido que contrariar:

I – enunciado de súmula do Supremo Tribunal Federal ou do Superior Tribunal de Justiça;

II – acórdão proferido pelo Supremo Tribunal Federal ou pelo Superior Tribunal de Justiça em julgamento de recursos repetitivos;

III – entendimento firmado em incidente de resolução de demandas repetitivas ou de assunção de competência;

IV – enunciado de súmula de tribunal de justiça sobre direito local.

§ 1º O juiz também poderá julgar liminarmente improcedente o pedido se verificar, desde logo, a ocorrência de decadência ou de prescrição.

§ 2º Não interposta a apelação, o réu será intimado do trânsito em julgado da sentença, nos termos do art. 241.

§ 3º Interposta a apelação, o juiz poderá retratar-se em 5 (cinco) dias.

§ 4º Se houver retratação, o juiz determinará o prosseguimento do processo, com a citação do réu, e, se não houver retratação, determinará a citação do réu para apresentar contrarrazões, no prazo de 15 (quinze) dias.”

Pensando em nível pragmático, é nosso particular interesse realçar o tanto que esse dispositivo pode funcionar, sobretudo quando lidos com atenção os incisos de seu caput, como importante filtro processual — não por aspectos formais, insistamos, mas pela eventual inconsistência do mérito articulado, uma decorrência que há de (ou deveria) ser vista como natural, para sistemas que prestigiam a força de determinados atos decisórios (caso em que o Brasil se coloca).

No âmbito federal, o assunto já gravitava sobre nossas cabeças antes mesmo da introdução do artigo 285-A no Código de Processo Civil de 1973, em razão da Lei nº 10.522/2002, cujo artigo 19, em sua redação original, autoriza(va) a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional a deixar de interpor recurso ou a desistir do interposto, desde que inexista outro fundamento relevante, na hipótese de a decisão “recorrenda” versasse sobre matérias que, por exemplo, estivessem pacificadas no Supremo Tribunal Federal ou no Superior Tribunal de Justiça.

O dispositivo em questão ganhou (e segue ganhando) renovada redação, mas sempre mantida a mesma lógica — válida tanto para a atuação da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, como para a da Receita, sobretudo no que se refere à constituição do crédito tributário —, a saber, de que os “precedentes” impactam (ou podem impactar) positivamente, como filtros de mérito, retendo a formação de novas lides tributárias (aí incluídas, realcemos, as administrativas), assim como o desenvolvimento das que já se instauraram.

Em termos práticos, sem prejuízo do que se contém na Lei nº 10.522/2002, a operação de que falamos poderia ser perfeitamente desenvolvida pelos julgadores administrativos em geral (não só no plano federal) à conta do artigo 332 do Código de Processo Civil de 1973, dada a aplicabilidade preconizada pelo artigo 15 do mesmo codex [2], vale dizer, proposta “demanda” administrativa fundada em tese vencida por decisão tal qual as descritas nos incisos do dispositivo, seria possível o julgamento liminar de mérito do caso, medida que, a um só tempo, (1) tenderia a colocar as jurisdições de que falamos (a judicial e a administrativa) em desejável harmonia, (2) romperia o uso do processo administrativo apenas para fins de adiamento, (3) sem imprimir, a par dessas “vantagens”, um rompimento com o devido processo legal, dado o encaminhamento preconizado nos parágrafos 4° e 5°, preceitos que, além de garantirem a óbvia recorribilidade da decisão (que no caso de um órgão colegiado seria preferencialmente emitida, porque liminar, pelo relator), ainda asseguram o anômalo emprego pelo mesmo julgador, do juízo de retratação — a ser naturalmente utilizado quando constatado que o julgamento liminar se deu fora da pressuposta adequação do caso presente com caso “precedente”.


[1] Art. 285-A. Quando a matéria controvertida for unicamente de direito e no juízo já houver sido proferida sentença de total improcedência em outros casos idênticos, poderá ser dispensada a citação e proferida sentença, reproduzindo-se o teor da anteriormente prolatada.

§ 1º Se o autor apelar, é facultado ao juiz decidir, no prazo de 5 (cinco) dias, não manter a sentença e determinar o prosseguimento da ação.

§ 2º Caso seja mantida a sentença, será ordenada a citação do réu para responder ao recurso.

[2] Art. 15. Na ausência de normas que regulem processos eleitorais, trabalhistas ou administrativos, as disposições deste Código lhes serão aplicadas supletiva e subsidiariamente.

Fonte: Conjur – 21/08/2022

×