ARTIGO DA SEMANA – Denúncia espontânea após decisão judicial

João Luís de Souza Pereira. Advogado. Mestre em Direito. Professor convidado das pós-graduações da FGV/Direito Rio e do IAG/PUC-Rio.

Notícia amplamente divulgada pela imprensa especializada informa que a 2ª Turma da 4ª Câmara da 2ª Seção do CARF admitiu a aplicação do instituto da denúncia espontânea após o contribuinte ter sido intimado de decisão judicial que lhe foi desfavorável.

Segundo a notícia, a empresa teria ingressado em juízo para discutir as contribuições para o SAT/RAT ajustadas pelo Fator Acidentário de Prevenção (FAP). Após o deferimento de medida liminar e sentença de primeira instância favorável, houve reforma do julgado pelo Tribunal.

Intimada do acórdão que reformou a sentença e cassou a liminar, a empresa promoveu o pagamento do débito sem o acréscimo da multa de mora.

O fisco, segundo a notícia, constatou que o pagamento teria sido realizado após o prazo de 30 (trinta) dias de que trata o art. 63, §2º, da Lei nº 9.430/96[1], razão pela qual realizou lançamento de ofício exigindo-lhe a penalidade.

Em sua defesa, o contribuinte alega que o pagamento ocorreu dentro do prazo legal e que deve ser considerado como termo inicial do prazo previsto na Lei nº 9.430/96 a data em que o contribuinte foi efetivamente intimado da decisão judicial, ao contrário da data em que foi expedida a intimação eletrônica (tese do fisco). Adicionalmente, a empresa alega que, ainda que tenha transcorrido o prazo legal, o pagamento foi espontâneo, daí porque deve ser observado o art. 138, do Código Tributário Nacional.

De acordo com a reportagem, o CARF acolheu a tese da denúncia espontânea da infração e cancelou a exigência fiscal.

A situação acima descrita traz à reflexão o instituto da denúncia espontânea da infração, previsto, como mencionado, no artigo 138, do Código Tributário Nacional.

Por este dispositivo, o sujeito passivo que, antes de qualquer procedimento de ofício, cumprir a obrigação pagando o tributo devido e, se for o caso, acrescido de correção monetária e juros, não se sujeitará ao pagamento da penalidade correspondente, a chamada multa de mora (0,33% ao dia limitada a 20%).

Anota-se que o dispositivo refere-se a pagamento do tributo se for o caso, deixando claro a possibilidade de cumprimento extemporâneo também da obrigação acessória. No entanto, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça solidificou-se no sentido de que o artigo 138 não contempla o afastamento da multa por cumprimento a destempo da obrigação acessória (Ag. Rg. no A.I. 490.441/PR).

Tratando-se de cumprimento em atraso da obrigação principal relativa a tributo sujeito ao lançamento por homologação, a Súmula STJ nº 360[2] limita a aplicação do instituto aos casos em que o sujeito passivo não tenha declarado o tributo respectivo ao fisco.

A Súmula STJ nº 360, a propósito, acaba por privilegiar aquele que subtrai informações ao fisco e prejudica o sujeito passivo que é transparente. Ora, se a declaração do tributo apurado afasta a espontaneidade em eventual pagamento em atraso, por que declarar?

Voltando ao fato noticiado, a situação, tal como narrada, constitui caso peculiar.

A resposta está no mesmo artigo 63, da Lei nº 9.430/96.

De acordo com o caput do art. 63, “Na constituição de crédito tributário destinada a prevenir a decadência, relativo a tributo de competência da União, cuja exigibilidade houver sido suspensa na forma dos incisos IV e V do art. 151 da Lei nº 5.172, de 25 de outubro de 1966, não caberá lançamento de multa de ofício”.

O parágrafo primeiro do mesmo art. 63 vai além:  “O disposto neste artigo aplica-se, exclusivamente, aos casos em que a suspensão da exigibilidade do débito tenha ocorrido antes do início de qualquer procedimento de ofício a ele relativo”.

Traduzindo: se o contribuinte de um tributo sujeito ao lançamento por homologação (IRPJ, Contribuição previdenciária, PIS, COFINS…) ingressa em juízo para discutir o tributo e obtém medida liminar ou decisão equivalente autorizando-o a não pagar o tributo, cabe ao fisco promover a exigência fiscal para prevenir os efeitos da decadência.

Por que? Porque, na hipótese da decisão final após, digamos, 6 anos, for desfavorável ao contribuinte, o fisco, se não tiver exigido antes, não poderá mais fazê-lo, porque estará extinto seu direito pelo decurso do prazo legal (5 anos).

Exatamente por isso que os órgãos da Administração Tributária costumam ser diligentes em casos de concessão de medida liminar.

Recebido o ofício do juiz comunicando o deferimento da liminar e notificando-o para prestar as informações, o Delegado da Receita Federal determina a instauração de procedimento de ofício face ao contribuinte exatamente para ser constituído o crédito tributário e evitar eventual efeito da decadência.

No caso concreto, ao que parece, esta providência não foi adotada. O contribuinte não sofreu uma autuação ao longo do processo judicial para evitar a decadência.

Consequentemente, se o fisco “papou mosca”, o contribuinte poderá beneficiar-se da denúncia espontânea, mesmo após o prazo de 30 dias de que trata o art. 63, §2º, da Lei nº 9.430/96.                    


[1] Art. 63 – ………………………

§ 2º A interposição da ação judicial favorecida com a medida liminar interrompe a incidência da multa de mora, desde a concessão da medida judicial, até 30 dias após a data da publicação da decisão judicial que considerar devido o tributo ou contribuição. 

[2] O benefício da denúncia espontânea não se aplica aos tributos sujeitos a lançamento por homologação regularmente declarados, mas pagos a destempo.

Nova modificação no voto de qualidade gera ainda mais insegurança no Carf

A não conversão em lei da Medida Provisória 1.160, que retomou o voto de qualidade no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), além de demonstrar que há ruídos na relação do governo com o Congresso Nacional, também promove insegurança jurídica. 

Essa é a opinião da maioria dos tributaristas consultados pela revista eletrônica Consultor Jurídico sobre o tema. A MP, que perde a validade nesta sexta-feira (2/6), retomou o voto de qualidade, mecanismo que estabelece que, em caso de empate nos julgamentos do Carf, o voto de minerva será dado pelo presidente do tribunal administrativo, que é sempre um representante da Fazenda Nacional — o que, evidentemente, joga a favor da União. 

O voto de qualidade vigorou até 2020, quando o Congresso Nacional aprovou a Lei 13.988/20, que deu nova redação ao artigo 19-E da Lei 10.522/2002, determinando que o desempate nos julgamentos do Carf seria sempre a favor do contribuinte. 

A validade da mudança legislativa que acabou com o voto de qualidade é discutida no Supremo Tribunal Federal, no âmbito das ADIs 6.399, 6.403 e 6.415. O Plenário formou maioria para validar a lei, mas o julgamento foi paralisado por pedido de vista do ministro Kassio Nunes Marques. Ele devolveu os autos no último dia 15, mas a matéria ainda não tem data para ser julgada. 

Por outro lado, o governo tenta emplacar via projeto de lei a retomada definitiva do voto de qualidade. A medida é encarada como um instrumento importante para aumentar a arrecadação e dar sustentação ao arcabouço fiscal proposto pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad (PT). 

O texto do PL que vai substituir a MP 1.160 foi enviado pelo governo ao Congresso Nacional no último dia 5. Enquanto isso, com o fim da vigência da medida provisória, o Carf voltará a usar o critério que beneficia os contribuintes.

“Com a perda da validade da MP 1.160, volta a vigorar o artigo 28 da Lei 13.988/2020, devendo os empates em julgamentos serem resolvidos favoravelmente ao contribuinte. Até que nova lei altere o assunto, valerá o disposto no artigo 28, a ser aplicado já nas próximas sessões de julgamento das turmas do Conselho”, explica Guilherme Peloso Araújo, doutor em Direito Tributário e sócio do escritório Carvalho Borges Araújo Advogados.

Além da insegurança provocada pela mudança de critério, o Carf também tem tido seu funcionamento afetado por reiterados adiamentos de sessões, motivados por uma greve dos servidores da Receita Federal. 

“O que a comunidade jurídica espera é que o Carf volte logo a funcionar plenamente, aplicando a lei vigente. Discordar de uma regra legal vigente não nos dá a prerrogativa de embaraçar a sua aplicação”, afirma o advogado Luiz Gustavo Bichara.

Breno Dias de Paula, por sua vez, afirma estar preocupado com o cenário de enorme insegurança jurídica gerado pela mudança de regra. “A Constituição Federal impõe a edição de decreto legislativo para se regular a não conversão em lei da MP 1.160, uma vez que a jurisprudência do STF é uníssona no sentido de que a medida provisória não revoga lei anterior, apenas a suspende.” 

A atuação do Congresso Nacional ao editar o decreto pode, inclusive, interferir nos julgamentos ocorridos durante a vigência da MP e que foram decididos pelo voto de qualidade. “Em suma, durante os próximos 60 dias, as decisões tomadas durante a vigência da MP seguirão válidas, mas passíveis de modificação por decreto legislativo, e uma vez ultrapassado esse prazo, elas estarão consolidadas conforme o teor da MP que perdeu a sua validade, na forma da Constituição”, resume Carlos Augusto Daniel, sócio do escritório Daniel e Diniz Advocacia Tributária.

Dylliardi Alessi, mestre em Direto Econômico e Desenvolvimento e sócio do escritório Peccinin Advocacia, também faz coro pela importância do decreto legislativo para dar segurança aos julgados promovidos durante a vigência da MP 1.160.  “Em tese, o Congresso Nacional deverá editar um decreto legislativo para disciplinar os efeitos jurídicos gerados durante sua vigência, mas na prática é comum que nesses casos haja omissão do Poder Legislativo, com os casos sendo solucionados por decisão judicial.”

Revista Consultor Jurídico, 2 de junho de 2023, 20h56

Carf ‘arrecadador’ prejudica ambiente de negócios, diz Hamilton Dias de Souza

O Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) deve ser isento e aplicador da lei ao julgar litígios, buscando o equilíbrio entre os interesses do Fisco e os do contribuinte. Quando se afasta desse preceito e se torna um mero órgão arrecadador do governo, o tribunal administrativo prejudica não só as empresas, mas o ambiente de negócios e o país como um todo. 

É o que defende o advogado Hamilton Dias de Souza, um dos expoentes do Direito Tributário brasileiro, em entrevista à série “Grandes Temas, Grandes Nomes do Direito”, na qual a revista Consultor Jurídico conversa com alguns dos principais nomes do Direito sobre os assuntos mais relevantes da atualidade.

Com 50 anos de atuação na área, o ex-professor da Universidade de São Paulo falou sobre temas como a reinstituição do “voto de qualidade” para o desempate nas discussões no Carf, a relação entre os agentes fiscais e as empresas e a posição dos ministros do Supremo Tribunal Federal e de seus assessores diante de julgamentos em matéria tributária.

Sobre o Carf, Dias de Souza explica que o órgão passou por um ponto de inflexão no começo deste ano. Segundo o tributarista, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, entendeu que a tônica no conselho, até aquele momento, era de decidir a favor do contribuinte. Era preciso, então, mexer nesse modelo, com o objetivo de aumentar a arrecadação.

“Mudou o presidente do Carf, que era um legalista, presidente indicado pelo Fisco. Colocou outro, que até agora tem julgado as questões, digamos, de forma dividida, mas sobretudo a favor do Fisco”, aponta o advogado.

Nesse sentido, Dias de Souza diz que retomada do voto de qualidade inverte uma lógica que deveria nortear o órgão: a de que, em caso de empate, a decisão seja sempre a favor do contribuinte.

“Até porque isso sempre envolve uma sanção e, havendo sanção, na dúvida e a teor do que dispõe o Código Tributário Nacional, isso deve se resolver a favor do contribuinte. Mas mudou. A partir de 1º de janeiro, essas circunstâncias mudaram, o equilíbrio de forças do Carf mudou.” 

Tal mudança nos rumos do conselho, segundo o tributarista, afeta também sua função primordial, que é ser isento diante dos interesses em jogo.

“Imaginar que nós tenhamos um órgão fiscal que não tenha a função de decidir de forma imparcial, mas que decida arrecadar mais, interfere nas relações delicadas entre Fisco e contribuinte. Prejudica o ambiente de negócios, prejudica as empresas, aumenta o ‘custo Brasil’ e prejudica a todos nós”, prossegue Dias de Souza.

A atual composição do Supremo Tribunal Federal em relação às discussões tributárias também foi objeto da análise. E, novamente, o diagnóstico é de que o perfil não é dos mais favoráveis à iniciativa privada nessas questões. Algo que se deve, segundo ele, à origem dos ministros.

“De alguma maneira, nós temos no STF um órgão em que a maioria dos julgadores provêm do poder público, e não da iniciativa privada.Anteriormente, eu me lembro de que a academia contribuía mais para o Supremo. Hoje eu vejo que a grande maioria dos ministros é egressa, de alguma forma, do poder público, ainda quando são magistrados”, explica.

“Não diria que o STF é injusto. Não diria que há um viés claro. Porém, se me perguntarem, com franqueza, o que eu sinto é uma dificuldade maior de que as teses do contribuinte sejam acolhidas.”

Revista Consultor Jurídico, 30 de maio de 2023, 9h45

Processos julgados pelo Carf em 2022 envolveram R$ 132 bilhões

Os empates em julgamentos do Conselho de Administração de Recursos Fiscais voltaram a ser favoráveis ao Fisco nos processos administrativos que chegam ao órgão depois de três anos da extinção do chamado voto de qualidade. O governo Lula editou a Medida Provisória 1.160 em janeiro de 2023 para determinar que os presidentes das turmas de julgamento voltassem a decidir as disputas tributárias caso houvesse empate entre todos os julgadores.

As turmas do Carf têm composição paritária com representante dos contribuintes e da Receita Federal. Entretanto, a presidência do colegiado sempre cabe a um representante da Fazenda, já que o Carf pertence ao Ministério da Economia e é um órgão de recursos administrativos. O presidente vota por último nos julgamentos e, com a MP editada pelo governo, cabe a ele dar o voto de minerva.

A mudança foi promovida logo no início do governo, em meio à pressão política pelo equilíbrio das contas públicas. O Anuário da Justiça demonstrou, em sua edição de 2022, como o fim do voto de qualidade, após a promulgação da Lei 13.988/2020, beneficiou as empresas. Segundo relatório do Insper, entre 2017 e 2020, o valor dos créditos tributários mantidos ou extintos pelo Carf em julgamentos nos quais houve voto de qualidade foi de R$ 52 bilhões.

Também em decorrência da mudança de governo, o auditor fiscal da Receita Federal Carlos Higino Ribeiro de Alencar foi nomeado em janeiro para para presidir o Carf, em substituição a Carlos Henrique de Oliveira, ex-diretor de Programa da Receita Federal. Alencar foi escolhido sem ter sido conselheiro no Carf antes, ao contrário de Oliveira e da auditora fiscal Adriana Gomes Rêgo, seus antecessores no posto. Alencar é visto por conselheiros como um julgador pró-Fisco em oposição ao antecessor, que costumava ser mais neutro em seus posicionamentos.

Em março de 2023, a 2ª Turma da Câmara Superior de Recursos Fiscais reverteu jurisprudência em favor da Fazenda por maioria e com voto de Alencar favorável à incidência da contribuição previdenciária sobre valores de PLR (Participação nos Lucros e Resultados) pagos a diretores estatutários. Em dezembro de 2022, a análise do tema havia tido resultado favorável ao contribuinte com voto neste sentido de Carlos Henrique de Oliveira.

O atual presidente defende que o retorno do voto de qualidade terá pouco impacto na pessoa física e no pequeno e médio empresário. “Traz mais Justiça fiscal, tendo em vista que se aplica, basicamente, aos casos mais complexos, com teses jurídicas controversas e de grandes contribuintes e empresas que trabalham com o lucro real em sua maioria”, ponderou Alencar em nota enviada ao Anuário da Justiça.

“A maior parte das empresas no Brasil está no Simples Nacional e esses casos, em sua grande maioria, não são decididos por voto de qualidade. Essa mudança foi importante também para deixar o Carf mais voltado ao julgamento de teses tributárias de maior complexidade, o que, na maioria das vezes, envolve casos de maiores valores”, acrescentou.

Logo após o anúncio da edição da Medida Provisória 1.160, a Associação dos Conselheiros Representantes dos Contribuintes no Carf (Aconcarf) divulgou nota em que lembrou que “o Carf é um órgão quase centenário, especialista em matérias tributária e aduaneira, e que não possui ‘viés’ arrecadatório”. A MP depende de apreciação do Congresso para virar lei.

Alencar também acena em direção aos contribuintes. “Vejo que as medidas adotadas pelo pacote fiscal do governo trouxeram ao Carf ganhos importantes e ajuda fundamental para o órgão cumprir a missão de ser cada vez mais célere. O foco tem que ser o contribuinte, que tem direito a ter suas demandas resolvidas em um prazo razoável. A sociedade precisa dessa segurança”, diz.

Em meio a ponderações, a OAB ingressou com a ADI 7.347 no Supremo Tribunal Federal para questionar se MP do governo pode tratar de regra processual. No mês seguinte, acabou por ser fechado um acordo entre representantes da OAB, da Receita Federal e o ministro do Supremo Dias Toffoli.

Após reunião, foi inserida em medida cautelar da OAB a manutenção do voto com peso duplo dos presidentes das turmas em troca de os contribuintes vencidos poderem pagar os débitos decididos pelo voto de qualidade no prazo de 90 dias sem multa e sem juros. A medida deverá ser também apreciada pelo Congresso.

Para o tributarista Enio de Biasi, sócio da Elebece Consultoria Tributária, a aprovação do acordo pelo Congresso seria uma demonstração de força do governo. “Geralmente, os contribuintes têm 30 dias para pagar o débito, após ciência da decisão, que demora um pouco. Pelo acordo, o prazo passa a ser de 90 dias, mas a grande vantagem é não ter que pagar multa e juros”, analisa.

A MP também eleva de 60 para 1.000 salários-mínimos o valor mínimo para que processos possam ser julgados pelo conselho. Entre 2021 e 2022, o total de casos decididos pelo Carf caiu de 30,4 mil para 10,8 mil. Contudo, a soma dos valores envolvidos saltou de R$ 47,6 bilhões para R$ 132,5 bilhões depois de o órgão ter acabado com limite de R$ 1 milhão em tributos contestados para que os processos pudessem ser apreciados nos julgamentos virtuais.

O acervo de casos à espera de julgamento subiu de 91 mil para 92 mil e a soma dos montantes relacionados cresceu de R$ 983 bilhões para R$ 1,091 trilhão. “A mudança de valor mínimo para os processos chegarem ao Carf ajudará a reduzir o estoque”, promete Alencar.

Além do estoque crescente de processos, o movimento de paralisação dos representantes da Receita Federal é mais um problema enfrentado pelo Carf nos últimos anos. Os fazendários reivindicam junto ao Ministério da Fazenda a regulamentação do adicional de produtividade conferido aos auditores fiscais.

“O movimento de paralisação de parte dos conselheiros fazendários impactou negativamente a produtividade e, ainda por conta da epidemia de covid-19, a limitação de valor para o julgamento de processos de forma virtual, encerrada somente em maio, resultou no aumento do estoque de crédito que alcançou a casa de R$ 1 trilhão”, conta.

Em meio aos desafios, ao menos o orçamento do Carf voltou a subir em 2023. O total de recursos destinado pelo Ministério da Fazenda havia caído pela metade, de R$ 22,5 milhões em 2021 para R$ 11 milhões em 2022. Em 2023, o montante ficou em R$ 21,2 milhões.

Revista Consultor Jurídico, 28 de maio de 2023, 8h24

ARTIGO DA SEMANA – Decadência, vício formal e novo lançamento tributário

João Luís de Souza Pereira. Advogado. Mestre em Direito. Professor convidado da pós-graduação da FGV/Direito Rio e do IAG/PUC-Rio.

O artigo 173, II, do CTN, confere uma vantagem uma fisco: a possibilidade de refazimento do lançamento, anulado por vício formal, no prazo de cinco, contados da decisão que declarou a existência do vício, anulando o lançamento o original.

Vício formal, como o próprio nome diz, é aquele que afeta os requisitos formais de validade do lançamento.

No processo administrativo fiscal da União, os requisitos de validade da notificação de lançamento e do auto de infração estão descritos nos artigos 10 e 11, do Decreto nº 70.235/72[1]

No caso da legislação tributária estadual do Rio de Janeiro, os requisitos formais de um lançamento são aqueles apontados no art. 221, do CTE e no art. 74, do Decreto nº 2.473/79[2].

Portanto, a falta de observância de quaisquer dos requisitos de validade de um lançamento pontualmente descritos nas normas reguladoras do processo administrativo fiscal enseja o reconhecimento do vício formal, autorizando a declaração de nulidade do lançamento.

Reconhecida a nulidade do lançamento original por vício formal, aplica-se o art. 173, II, do CTN e reabre-se à Fazenda Pública o prazo para a realização de outro lançamento em boa e devida forma, com o exclusivo propósito de sanar o vício formal do ato administrativo anterior.

Com efeito, o novo lançamento, oriundo da declaração de nulidade por vício formal de lançamento anterior, deve se restringir à correção deste vício, sendo vedado à autoridade competente inovar o lançamento naquilo que seja coisa diversa do vício constatado.

A propósito, convém lembrar a lição de LUCIANO DA SILVA AMARO[3], severo crítico do dispositivo legal em apreço:  

Cuida o art. 173, II, de situação particular; trata-se de hipótese em que tenha sido efetuado um lançamento com vício de forma, e este venha a ser “anulado” (ou melhor, declarado nulo, se tivermos presente que o vício de forma é causa de nulidade, e não de mera anulabilidade) por decisão (administrativa ou judicial) definitiva. Nesse caso, a autoridade administrativa tem novo prazo de cinco anos, contados da data em que se torne definitiva a referida decisão, para efetuar novo lançamento de forma correta.

Portanto, cabe à Fazenda Pública, no prazo de cinco anos, contados da decisão que reconheceu o vício formal, corrigir o erro, mantendo a, digamos, parte boa do auto de infração anterior.

Esta é a conclusão a doutrina, bastando trazer a observação de HUGO DE BRITO MACHADO[4] em seus comentários ao art. 173, II, do CTN:

O prazo de cinco anos de que dispõe a Fazenda Pública para realizar o que podemos denominar de lançamento substitutivo destina-se apenas à sanação da ilegalidade da qual decorreu a nulidade do lançamento anterior. De nenhum modo se pode entender que nesse prazo tem a Fazenda Pública restabelecido o seu direito de examinar amplamente tudo o que disser respeito ao sujeito passivo daquele crédito tributário cuja constituição resultou nula por vício formal.

A Administração Tributária Federal também já se debruçou sobre o tema, conforme se lê de acórdão do antigo Primeiro Conselho de Contribuintes do Ministério da Fazenda assim ementado:

 “Pelo disposto no inc. II, do art. 173, quando ocorre anulação, por vício formal, é dado ao fisco  mais 5 anos da data em que se tornar definitiva a decisão que houver anulado, por vício formal, o lançamento anteriormente efetuado, para realizar NOVO LANÇAMENTO. Só que o sujeito ativo deve se limitar a corrigir os vícios formais e manter o valor  originariamente exigido, não sendo permitido suplementar…” (Ac. 105-13.033. 1º CCMF. DOU 27.03.2000)

No mesmo sentido é a jurisprudência do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro:

Note-se que a retificação do auto não implicou em alteração dos fundamentos da autuação, descritos no campo “relato”, nem acarretou qualquer mudança nos valores apurados, apenas indicando de forma completa os dispositivos legais que incidiam no caso.” Apelação Cível nº0021565-61.2013.8.19.0001 (TJRJ, Décima Nona Câmara Cível).

Como se vê, a preservação do lançamento anterior e sua modificação apenas naquilo que inobservou os requisitos formais de validade compreendem a condição sine qua non para aplicação do art. 173, II do CTN.

Consequentemente, se o fisco, após a declaração de nulidade do lançamento, decidir lavrar novo auto de infração ou notificação de lançamento, indo além da correção do vício que ensejou a nulidade, não poderá se socorrer do artigo 173, II, do CTN.

Nesta hipótese a realização do lançamento inovador deverá observar a regra do prazo decadencial do art. 150, §4º ou do a regra geral inserta no inciso I do art. 173, conforme o caso.

A esta conclusão também chegou o Plenário do Conselho de Contribuintes do Estado do Rio de Janeiro:

PREJUDICIAL DE MÉRITO. DECADÊNCIA DO CRÉDITO TRIBUTÁRIO RECLAMADO NO LANÇAMENTO. Decorridos mais de 05 (cinco) anos entre os supostos fatos geradores e a intimação do novo lançamento efetivamente modificado, impõe-se a decretação da decadência do direito da Fazenda Pública constituir o crédito tributário. PRELIMINARACOLHIDA.

(Recursos nºs 71.027 e 71.028, Acórdãos nºs 9.619 e 9.620. DOERJ de 12/06/2019)

É bom lembrar que a possibilidade de realização do novo lançamento, nos termos do art. 173, I, do CTN, importa em verdadeira interrupção do prazo decadencial, conforme entendimento da doutrina, bastando citar, por todos, a Min. REGINA HELENA COSTA[5]:

Essa norma aponta outro relevante aspecto de distinção entre o regime de decadência disciplinado na lei civil e o estabelecido na lei tributária. No direito privado, “salvo disposição legal em contrário, não se aplicam à decadência as normas que impedem, suspendem ou interrompem a prescrição” (art. 207, CC). Consoante se extrai da norma do art. 173, II, CTN, diversamente, o prazo decadencial é passível de interrupção, visto que a decisão anulatória do lançamento anteriormente efetuado faz com que recomece a fluir o prazo decadencial.

Mas nunca se esqueça: a possibilidade de reabertura do prazo para refazimento do lançamento anulado por vício formal (art. 173, II, do CTN) tem como limite a correção do vício, vedada qualquer alteração no lançamento anterior.


[1] Art. 10. O auto de infração será lavrado por servidor competente, no local da verificação da falta, e conterá obrigatoriamente:

I – a qualificação do autuado;

II – o local, a data e a hora da lavratura;

III – a descrição do fato;

IV – a disposição legal infringida e a penalidade aplicável;

V – a determinação da exigência e a intimação para cumpri-la ou impugná-la no prazo de trinta dias;

VI – a assinatura do autuante e a indicação de seu cargo ou função e o número de matrícula.

Art. 11. A notificação de lançamento será expedida pelo órgão que administra o tributo e conterá obrigatoriamente:

I – a qualificação do notificado;

II – o valor do crédito tributário e o prazo para recolhimento ou impugnação;

III – a disposição legal infringida, se for o caso;

IV – a assinatura do chefe do órgão expedidor ou de outro servidor autorizado e a indicação de seu cargo ou função e o número de matrícula.

Parágrafo único. Prescinde de assinatura a notificação de lançamento emitida por processo eletrônico.

[2] Art. 221. O auto de infração e a nota de lançamento conterão:

I – a qualificação do autuado ou intimado;

II – o local e data da lavratura;

III – a descrição circunstanciada do fato punível ou dos fatos concretos que justifiquem a exigência do tributo;

IV – a capitulação do fato, mediante citação do dispositivo legal infringido e do que lhe comine a sanção ou do que justifique a exigência do tributo;

V – o valor do tributo e/ou das multas exigidos;

VI – a notificação para o recolhimento do débito no prazo de 30 (trinta) dias, com a indicação de que no mesmo prazo poderá ser apresentada a impugnação;

VII – a indicação da repartição onde será instaurado o processo e daquela em que a impugnação poderá ser apresentada;

VIII – a assinatura do autuante e a indicação de seu cargo ou função e o número de matrícula.

Parágrafo único – Prescindem de assinatura o auto de infração e a nota de lançamento emitidos por processo eletrônico.

Art. 74. O auto de infração conterá os seguintes elementos:

I – nome, razão social ou denominação do autuado, a atividade profissional ou econômica que exerça, seu endereço e números de inscrição no Cadastro Fiscal do Estado e no Cadastro Fiscal Federal;

II – o local, a data e a hora da lavratura;

III – a descrição circunstanciada do fato punível ou dos fatos concretos que justifiquem a exigência do tributo;

IV – o dispositivo legal infringido e o que lhe comine a sanção ou justifique a exigência do cumprimento da obrigação;

V – o valor do tributo e/ou das multas exigidas;

VI – a indicação da repartição em que correrá o processo, com o seu endereço;

VII – a intimação para efetivação do pagamento ou apresentação de defesa com menção dos prazos correspondentes bem como da incidência da taxa a que se refere o item 11, A, do inciso III, do Decreto Lei n.º 5/75, com a redação dada pela Lei n.º 2.879/97 e eventuais benefícios para o sujeito passivo.

VIII – a assinatura do autuante e a indicação do seu nome por extenso, cargo ou função e número da matrícula, ressalvada a hipótese de emissão por processo eletrônico, a carimbo ou por outra forma legível.

[3] in Direito Tributário Brasileiro. 14ª ed., São Paulo: Saraiva, 2008

[4] in Comentários ao Código Tributário Nacional. São Paulo: Editora Atlas, 2005, p. 544

[5] in Código Tributário Nacional Comentado – Em sua Moldura Constitucional. Rio de Janeiro: Grupo GEN; 2020.

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