ARTIGO DA SEMANA – Por que as presidências no CARF são privativas de representantes da Fazenda Nacional?

João Luís de Souza Pereira – Advogado. Mestre em Direito. Professor convidado da FGV Direito-Rio e do IAG/PUC-Rio.

A polêmica envolvendo o voto de qualidade a favor do fisco nos julgamentos do CARF caminha para uma rápida solução judicial.

Com o ajuizamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 7347, o Conselho Federal da OAB submeteu a apreciação do tema ao STF e o Min. Dias Toffoli, Relator, já decidiu que há necessidade de exame da medida cautelar pleiteada.

Independentemente daquilo que o STF decidirá sobre a MP 1.1160/2023, a verdade é que o fim do voto do qualidade pró contribuinte deixa claro a posição sempre defendida pelo fisco sobre o processo administrativo fiscal.

Para o fisco, o processo administrativo fiscal poderia se encerrar na primeira instância e a presença de representantes dos contribuintes não é bem-vinda.

Muito antes de retornar ao voto de qualidade a favor do fisco, já houve norma federal – seguida por muitos Estados e Municípios – prevendo um depósito recursal de 30% (trinta por cento) do valor da exigência fiscal como requisito para a interposição de recursos aos Conselhos de Contribuintes do Ministério da Fazenda, sucedidos pelo CARF.    

Já naquela época o recado era bem claro: acesso à segunda instância é uma benesse; querendo recorrer, pague caro por isso.

Espantosamente, o STF, num primeiro momento, não enxergou mal nenhum no tal depósito recursal. Apenas numa nova apreciação do tema é que concluiu-se o óbvio: obrigar o contribuinte a depositar 30% da exigência fiscal para que seu recurso seja apreciado faz com que a defesa não seja ampla e restringe o meios de recursos inerentes a seu exercício.

Também é preciso lembrar de um fato curioso envolvendo a segunda instância no processo administrativo fiscal da União: embora a composição dos órgãos julgadores seja paritária, a presidência deste órgãos nunca recai sobre os representantes dos contribuintes.

Os Regimentos Internos do Conselho e as alterações introduzidas ao Decreto nº 70.235/72 deixam claro que a Presidência de Seções, Câmaras, Turmas Julgadoras e do próprio CARF sempre recairá sobre representantes da fazenda nacional, vale dizer, Auditores Fiscais da Receita Federal.

Portanto, a presença de representantes dos contribuintes é tolerada, mas a paridade na composição dos órgãos julgadores não é plena, na medida em que é vedado aos representantes dos contribuintes assumirem a presidência.

Neste aspecto, a legislação tributária do Estado do Rio de Janeiro acaba por ser mais justa, tendo em vista que, mesmo mantendo o voto de qualidade, não prevê que todas as Câmaras, tampouco o Conselho de Contribuintes do Estado, será obrigatoriamente presidido por representantes da Fazenda Pública Estadual.

Consequentemente, na legislação tributária fluminense a paridade é plena porque os votos de todos os Conselheiros terão o mesmo peso.  

Direito constitucional a recurso administrativo fiscal a todos contribuintes

Todos os contribuintes federais possuem o direito ao devido processo legal com os meios e recursos a ele inerentes, conforme dispõe o artigo 5º, inciso LV da Constituição?

Uma garantia constitucional deve ser isonômica, pois um dos princípios informadores da Constituição é o princípio da igualdade. Unindo o princípio da igualdade ao do devido processo legal, a conclusão é que todos os litigantes devem ter os mesmos direitos.

A Medida Provisória 1.160 de 16/1/2023, em seu artigo 4º acrescenta o artigo 27-B na Lei 13.988 de 2020 —que alterou, em linhas gerais, o conceito de “contencioso de pequeno valor”, que era de 60 salários-mínimos, elevando-o para 1.000 salários-mínimos —, pretende retirar o direito ao amplo recurso administrativo de grande parte dos contribuintes, no caso, pequenos e médios contribuintes, favorecendo os grandes contribuintes e a própria máquina arrecadatória federal.

Para o que se denominou “contencioso de pequeno valor”, o parágrafo único do artigo 23 da Lei 13.988/2021 dispõe que “o julgamento será realizado em última instância por órgão colegiado da Delegacia da Receita Federal do Brasil de Julgamento da Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil”.

Ou seja, nestes processos, não haveria a possibilidade de recurso, por parte do contribuinte, em face de decisão de 1ª. Instância que lhe for desfavorável. Apesar desta previsão, a Portaria 340/2021 do ME, prevê recurso para órgão da própria DRJ.

Portanto, por meio de um dispositivo de MP, o Governo pretende impedir o acesso dos pequenos e médios contribuintes ao devido processo legal administrativo federal.

O vultoso aumento do valor para delimitação do “contencioso de pequeno valor” chama a atenção de todos que atuam na área, suscitando as consequências de tal medida.

A primeira consequência é que todos os processos administrativos fiscais federais envolvendo pequenos e médios contribuintes —, em face da decisão administrativa, não terão eventuais recursos sujeitos a conhecimento e a julgamento pelo Carf.

Esses processos estariam sujeitos, no máximo, a um recurso julgado, no âmbito das DRJs, por câmara recursal que difere da natureza e da formação do Carf, o que os tornam processos sem o direito ao duplo grau de jurisdição. E, pela leitura da Lei 13.988/2021, sujeitos até mesmo a uma única jurisdição.

A alteração desse limite de valor para a caracterização do que venha a ser “contencioso de pequeno valor” e as suas consequências, com o devido respeito, não passam pelo crivo da constitucionalidade.

Os seguintes pontos devem ser analisados:

a) O que pode ser considerado como “contencioso de pequeno valor”?
b) Qual o conteúdo da garantia constitucional recursal prevista no inciso LV do artigo 5º da Constituição?
c) Há violação ao princípio da igualdade, pois, claramente, os pequenos e médios contribuintes não terão acessos às mesmas garantias processuais que os grandes contribuintes terão.

O primeiro ponto a ser analisado é o próprio conceito de “contencioso de pequeno valor”.

O artigo 98 da Constituição prevê que “A União, no Distrito Federal e nos Territórios, e os Estados criarão: I — juizados especiais, providos por juízes togados, ou togados e leigos, competentes para a conciliação, o julgamento e a execução de causas cíveis de menor complexidade e infrações penais de menor potencial ofensivo, mediante os procedimentos oral e sumariíssimo, permitidos, nas hipóteses previstas em lei, a transação e o julgamento de recursos por turmas de juízes de primeiro grau; §1º Lei federal disporá sobre a criação de juizados especiais no âmbito da Justiça Federal”.

Portanto, a instituição de processos de “baixa ou menor complexidade” não é aleatória, há um fundamento constitucional para tanto. 

O propósito do dispositivo constitucional é o de possibilitar um procedimento mais célere aos processos — de qualquer natureza — de menor complexidade, favorecendo o pequeno e médio cidadão litigante que, além de ter um resultado mais célere, terá acesso com menores custos ao Poder Judiciário.

Porém, por “menor complexidade” só pode existir a interpretação jurídica que passa por processos de valores menores aliados a questões jurídicas menos complexas, daí que as leis que versam sobre os juizados cíveis e criminais, estaduais e federais, dispõem quais os valores e temas que podem ser objeto dos processos ali ajuizados.

Pois bem. A exposição de motivos da citada MP, traz a seguinte informação: “9. Adota-se, como parâmetro, o valor estipulado no inciso I do §3º do artigo 496 da Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015 — Código de Processo Civil (CPC), que dispõe sobre o limite de alçada da remessa necessária, no caso de sentença proferida contra a União ou que julgar procedentes, no todo ou em parte, os embargos à execução fiscal”.

Seria este o parâmetro adequado para a nova conceituação de “contencioso de pequeno valor”? A resposta é negativa. Primeiro, porque o “contencioso de pequeno valor” não se assemelha às causas que não estarão sujeitas à remessa necessária, pois esta ocorre quando o próprio Juiz recorre de sua decisão ao tribunal, em razão de a decisão ser contrária aos entes públicos. Porém, o limite de alçada, nestes casos, não impede a interposição do Recurso, pelo ente Fazendário. Então, não é possível relacionar o valor de alçada que permite a dispensa da remessa necessária, com o valor de “contencioso de pequeno valor”, porque são questões diversas. 

No “contencioso administrativo de pequeno valor” a proposta, em tese, seria ter um procedimento mais célere, retirando o direito amplo ao recurso administrativo para os pequenos e médios contribuintes. 

Em nosso sistema normativo somente é possível fazer uma relação dos valores inseridos no “contencioso administrativo de pequeno valor” com o valor das causas próprias dos juizados especiais, em razão do disposto no citado artigo 98 CF. E, sob esse viés, o acréscimo para 1.000 salários-mínimos não encontra respaldo nas conjunturas normativa e processual brasileiras.

Anote-se que a Lei 9.099/1995 e a Lei 10.259/2001 que criam os JECs estaduais e federais preveem limite de alçada entre 40 e 60 salários-mínimos [1], o que indiscutivelmente sinaliza como um vetor relevante a ser seguido.

Sendo assim, o que poderia levar ao entendimento de que os processos fiscais federais de baixa complexidade seriam aqueles até 1.000 salários-mínimos? Qual o fundamento constitucional para tanto? Por certo, com esse “corte” estaria se afastando do processo “regular” ou “ordinário” a grande parcela dos processos administrativos fiscais, impedindo o acesso a um duplo grau de jurisdição “qualificado” aos contribuintes de menor poder aquisitivo — ferindo o direito à igualdade e afrontando a proteção que o Estado deve dar aos contribuintes de menor poder aquisitivo — mas não necessariamente aos casos com menor complexidade, como ser verá mais adiante.

Na apresentação feita pelo Ministério da Economia, um dos slides apresentados indica que com esse aumento de alçada haverá a “redução de mais de 70% dos processos que entram no Carf, mas que representam menos de 2% do valor total”. Para tanto foi citado, entre outros,  o “Diagnóstico do contencioso tributário administrativo — 2022 — BID, ABJ”.

Analisando tais dados, a nossa conclusão é diferente, pois o quadro trazido na página 47 [2] mostra que os tributos com maior número de processos são: IRPF, Cofins e Contribuições Previdenciárias, sem trazer valores específicos ou indicar que os processos de menor valor representam 70% do total dos processos a serem julgados no Carf [3].

Por outro lado, também não se confirma a afirmação de que os processos de até 1.000 salários-mínimos, se referem a tema de provas, e que não há “teses jurídicas” em discussão.

Uma breve análise nas Súmulas aprovadas pelo Carf, comprova justamente o contrário. Dentre as mais de 180 Súmulas editadas pelo Carf, inúmeras delas são referentes a processos de baixa complexidade relativas a pessoas físicas, pequeno proprietário rural, empresas do Simples, empresas de porte médio, e com teor favorável aos contribuintes, o que demonstra que esses processos e temas chegaram ao Carf, porque as DRJs — primeira e talvez “única” instância — decidiram de forma contrária ao contribuinte [4].

Em conclusão: o valor de 1.000 salários-mínimos não pode ser usado para caracterizar o “contencioso de pequeno valor”.

O segundo ponto versa sobre o direito constitucional ao recurso. O artigo 5º, inciso LV não deixa dúvidas sobre o direito ao recurso nos processos em geral, inclusive nos administrativos.

Pode ser alegado que a medida proposta não prevê a extinção do recurso voluntário para esses casos, mas que estes recursos seriam julgados na própria DRJ, em outro órgão nela inserido. 

Porém, o direito constitucional ao recurso estaria, indiscutivelmente, mitigado pelo fato de que o recurso seria direcionado para órgão da própria DRJ e por este órgão julgado. Tal previsão é restritiva em relação ao Recurso direcionado ao Carf, pelos seguintes motivos:

a) Os julgadores das DRJs estão vinculados a todas as normas interpretativas editadas pelo ME e pela PFN, é dizer, os julgadores não podem julgar livremente pois estão Vinculados ao entendimento apresentado pelos órgãos do ME; por outro lado, os julgadores do Carf, não estão vinculados aos entendimentos constantes da legislação suplementar, podendo julgar de modo a eventualmente afastar o entendimento dos órgãos do ME. 

b) Os julgamentos das DRJs não são públicos, os julgamentos no Carf são públicos.

c) No âmbito das DRJ não é possível a parte ou seu representante legal assistir ao julgamento, entregar memoriais ou fazer sustentação oral; no Carf há todas essas possibilidades, o que amplia o respeito ao devido processo legal.

d) No Carf as turmas são paritárias, formadas por representantes da Receita Federal e da sociedade civil, o que propicia um diálogo entre os dois lados da relação fisco-contribuinte, favorecendo um ambiente construtivo de diálogos e de integração de entendimentos.

e) Como inserido no diagnóstico feito pelo BID e ABJ, no Carf o contribuinte ganha, em média, 36% dos casos, o que indica que 1/3 dos contribuintes perderá a chance de ter extinto o seu crédito tributário pela análise de um tribunal imparcial e com maior liberdade de julgamento [5].

Em razão dessas considerações, entendemos que não há como afirmar que o direito recursal amplo do contribuinte foi respeitado se o seu recurso for direcionado e julgado por órgão que pertence à DRJ.

E, como disposto na Lei 13.988/2021, os processos serão julgados em “instância única”. E, pode haver instância única para julgamento de processos em nosso ordenamento? Não![6]. O direito ao recurso é próprio da garantia constitucional ao devido processo legal.

Ora, se havia o direito a um recurso mais amplo, este direito não pode ser mitigado sem que seja violada uma garantia constitucional do contribuinte. 

Como argumento de alta relevância, é necessário considerar que o STF analisou o tema do direito amplo ao recurso administrativo por meio do julgamento da ADI 1.976, de relatoria do ministro Joaquim Barbosa, que analisou a constitucionalidade da exigência do depósito prévio de 30% do valor do débito ou arrolamento de bens como condição para o conhecimento do recurso.

O voto do ministro Joaquim Barbosa é uma aula sobre a relação entre processo e democracia e não deixa dúvidas sobre a natureza constitucional do direito ao recurso para todos.

Ensina o ministro: “A consecução da democracia, de último modo, depende da ação do Estado na promoção de um procedimento administrativo que seja: a) sujeito ao controle por parte dos órgãos democráticos, b) transparente, e, c) amplamente acessível aos administrados” [7].

Continua o ministro: “Entendo, pois, que tornar o procedimento administrativo impossível ou inviável, por meios indiretos, constitui ofensa ao princípio da legalidade. E inúmeras vezes, a infração ao princípio da legalidade, e mais especificamente, à legalidade em matéria de procedimento, leva à violação de direitos fundamentais.
Da necessidade de se proporcionar um procedimento administrativo adequado surge o imperativo de se consagrar a possibilidade de se recorrer dentro do próprio procedimento. O direito ao recurso em procedimento administrativo é tanto um princípio geral de direito como um direito fundamental”.

É a interpretação de uma garantia constitucional feita pelo órgão responsável por ser o guardião da Constituição. E esta interpretação é direta no sentido de consagrar o direito ao recurso como direito e garantia constitucional.  

Portanto, é tão evidente o direito do contribuinte que não há como prevalecer o quanto disposto na MP 1.160 no que se refere à delimitação do que seja “contencioso de pequeno valor” com o objetivo de impedir que os contribuintes possam recorrer ao Carf.

E, destes argumentos expostos, deflui, naturalmente, a violação ao princípio constitucional da igualdade. Todos aprendemos com o professor Celso Antonio Bandeira de Mello [8] que o princípio da igualdade se apresenta como uma relação, de tal forma que a igualdade ou a desigualdade ocorrem na comparação de um grupo, que foi discriminado, em relação a algo. Pois bem. É evidente que o fato de um contribuinte ter um processo de alto valor não pode lhe proporcionar mais direitos processuais. O fato de um processo ser de menor valor não significa, automaticamente, que seja menos complexo e que lhe possa ser atribuído um número menor de garantias. 

Atribuir apenas aos grandes contribuintes a possibilidade de que o recurso seja analisado por um tribunal superior, ataca o princípio da igualdade, pois não há fundamento para o fator de discriminação.

Portanto, a conclusão é que o fator de discriminação para que somente os processos de alto valor possam ser julgados pelo Carf, é inconstitucional, porque fere o princípio da igualdade.

Por outro lado, não desconhecemos do grande número de processos que lotam o Carf. Para tanto, sugerimos algumas medidas constitucionais que, respeitando o devido processo legal, podem tornar os julgamentos mais céleres.

a) Considerando que muitos processos versam sobre Cofins e PIS, especialmente sobre o direito ao crédito, é possível concluir que se a própria Receita acatar o entendimento jurisprudencial do Carf, sequer haverá processos, pois a decisão acerca dos créditos será feita na Delegacia de origem, favoravelmente ao contribuinte, sem a formação do processo administrativo.

b) O relatório que estudou o contencioso administrativo apontou que o maior número de processos são relativos ao IRPF. Sugere-se criar uma força tarefa para dividir todos os processos sobre IRPF por temas semelhantes e julgamentos em lote, permitirão agilidade e rapidez nos julgamentos cujos recursos poderão ser levados para as turmas extraordinárias do Carf que também poderão julgar em lote e de forma ágil [9].

c) Ampliar o rol de processos que podem ter o recurso voluntário julgado pelas turmas extraordinárias do Carf.

d) Simplificação da legislação tributária.

e) Ampliação da utilização dos procedimentos de conformidade pela Receita para permitir que o contribuinte promova a regularização antes da fiscalização.

Enfim, pretendemos com este breve artigo demonstrar a inconstitucionalidade do dispositivo legal que pretende diminuir o acesso dos contribuintes ao amplo direito recursal e apresentar outros meios de investir a favor da celeridade do julgamento dos processos administrativos fiscais.


[1] Artigo 3o Compete ao Juizado Especial Federal Cível processar, conciliar e julgar causas de competência da Justiça Federal até o valor de sessenta salários mínimos, bem como executar as suas sentenças.

[2] “A Figura 6.6 expõe a participação de cada tributo na arrecadação federal (gráfico ‘Arrecadação’, à esquerda) e no volume de processos no Carf (gráfico ‘Processos’, à direita), a partir de dados de arrecadação da Receita Federal do Brasil para o período Janeiro 2012 – Outubro 2021”.

[3] Veja o disposto na página 94 do citado Diagnóstico. 

[4] Citamos, a título de exemplo, as Súmulas 17, 22, 29, 36, 37, 41, 42, 43,44, 53, 56, 57, 61, 89, 92, 93, 96, 98, 105, 107, 120, 121, 122, 123, 129, 132, 134, 135, 137, 138, 141, 149, 152, 175 e 182.

[5] Conforme figura 6.3 do relatório citado, p. 43.

[6] Para os Juizados Especiais Cíveis e Criminais, estaduais e Federais, há direito a recurso extraordinário de acórdãos proferidos pelas Turmas Recursais; direito de Reclamação e de pedido de uniformização de jurisprudência, de modo que está garantido o direito ao duplo grau de jurisdição.

[7] Negritos constantes do próprio voto

[8] “O Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade”, 3ª. Edição, São Paulo, Editora Malheiros.

[9] As turmas extraordinárias são formadas por menor número de julgadores e os julgamentos são sempre virtuais, o que permite maior celeridade.

Susy Gomes Hoffmann é advogada, doutora e mestra em Direito do Estado pela PUC-SP e diretora de comunicação do Instituto dos Advogados de São Paulo (Iasp).

Revista Consultor Jurídico, 2 de fevereiro de 2023, 21h42

Multa isolada por não recolhimento de estimativas parceladas: cabe ou não cabe?

Na coluna de hoje abordaremos uma questão bastante peculiar a respeito da penalidade por descumprimento da obrigação de recolhimento de estimativas mensais na sistemática da apuração do IRPJ pelo Lucro Real, qual seja: a possibilidade de cobrança de multa isolada pelo não pagamento de estimativas, as quais foram incluídas em programa de parcelamento para seu adimplemento perante os cofres da União.

É consabido que as pessoas jurídicas tributadas com base no Lucro Real, optantes pelo regime de apuração anual, estão legalmente obrigadas a antecipar, no curso do ano-calendário, o imposto sobre a renda da pessoa jurídica (IRPJ) devido em bases estimadas (cf. o artigo 2º, da Lei n. 9.430/96). Trata-se do recolhimento mensal das conhecidas estimativas, sendo que, ao final do período anual, quando se torna possível apurar o lucro tributável, realizar-se-á o ajuste entre o valor recolhido por estimativa e o montante efetivamente devido à União Federal a título de IRPJ.

Nesse sentido, o recolhimento por estimativa traduz-se em técnica de arrecadação de tributos, decorrente de norma administrativa tributária, por meio da qual o Fisco impõe o adimplemento antecipado da obrigação principal, a qual, no entanto, somente se concretizará no momento da ocorrência do fato imponível (31 de dezembro), quando todo o valor já recolhido se transmuda em crédito passível de compensação com o quantumefetivamente devido.

Diante de tal realidade, o legislador ordinário, estabeleceu como penalidade específica multa isolada para o pagamento que deixar de ser efetuado mensalmente a título de estimativa, a qual se encontra capitulada no artigo 44, II, alínea “b” da Lei nº 9.430/1996, in verbis:

“Art. 44. Nos casos de lançamento de ofício, serão aplicadas as seguintes multas:

(…)

II – de 50% (cinqüenta por cento), exigida isoladamente, sobre o valor do pagamento mensal:

a) na forma do art. 8o da Lei no 7.713, de 22 de dezembro de 1988, que deixar de ser efetuado, ainda que não tenha sido apurado imposto a pagar na declaração de ajuste, no caso de pessoa física;
b) na forma do art. 2o desta Lei, que deixar de ser efetuado, ainda que tenha sido apurado prejuízo fiscal ou base de cálculo negativa para a contribuição social sobre o lucro líquido, no ano-calendário correspondente, no caso de pessoa jurídica.”

Diante deste contexto normativo, alguns casos chegam ao Carf em razão de a administração tributária verificar a inexistência de pagamentos alusivos às estimativas do IRPJ devidas ao longo de determinado ano-calendário. Porém, nesses casos, também se constata que, antes do início da fiscalização, o contribuinte promoveu a inclusão desses valores devidos a título de estimativa em parcelamento tributário (normalmente restando demonstrado também a inclusão no parcelamento dos juros e a multa de mora devidos pelo pagamento a destempo das estimativas). Assim, o contribuinte comprova que as estimativas realmente encontram-se parceladas.

A dúvida que exsurge, então, é se o parcelamento dos débitos de estimativa faz cair a cobrança de multa isolada pelo seu não pagamento.

O assunto não é completamente pacífico no Carf.

Em sentido contrário às pretensões dos contribuintes que acionam o contencioso administrativo fiscal, podemos citar o Acórdão 1201-002.072.

Nesse julgamento, tomando como base o conteúdo do Parecer PGFN/CAT/Nº 88/2014, o colegiado entendeu que não pode prosperar a cobrança do IRPJ apurado no período anual, o qual foi efetivamente parcelado, anteriormente ao lançamento de ofício. Entretanto, quanto às multas isoladas, o entendimento foi diverso. Julgou-se que elas deveriam ser mantidas, sob as seguintes razões: “pelo que consta no parecer citado, as estimativas, embora declaradas em DCTF retificadora, não foram pagas, nem tampouco parceladas como tal. O débito efetivamente parcelado constituiu-se no tributo em si, uma vez encerrado o período de apuração quando da inclusão dele no programa de parcelamento”.

No Acórdão 1301-002.654, com caso concreto um pouco diverso, o colegiado validou a revisão efetuada pela autoridade fiscal, para desconsiderar os parcelamentos de estimativa, por força de vedação expressa prevista no artigo 14 da Lei 10.522/2002. Ato contínuo, julgou que a falta de pagamento das estimativas mensais no prazo legal está sujeita ao pagamento da multa isolada de 50% daquele imposto devido.

Ainda sobre o tema, um contribuinte levou ao Carf situação em que “(…) restou demonstrado e comprovado, que os débitos de estimativas de IRPJ, referentes aos meses de março/2016 e abril/2016, foram devidamente regularizados através de parcelamento, o qual restou celebrado anteriormente ao lançamento realizado”. No voto que foi seguido pela unanimidade dos membros do colegiado, argumentou-se que a multa isolada pela falta de recolhimento das estimativas não se confunde com a apuração e/ou liquidação do tributo apurado pelo lucro real. E o que a contribuinte em verdade incluiu em parcelamento foram os valores declarados na DCTF, que ao final seriam apuradas no lucro real base anual. Entendeu-se, assim, que o parcelamento, cujo pedido somente se deu em 2017, não pode ser interpretado como pagamento de estimativas. Nesse sentido, foi mantida a cobrança da multa isolada pelo Acórdão nº 1301-005.651, citando inclusive o precedente firmado no Acórdão 1201-002.072 para corroborar seu entendimento.

De outro lado, podemos também encontrar julgados no sentido de que, uma vez confessados, via parcelamento tributário, os valores devidos por estimativas conjuntamente com a respectiva multa pelo atrasado do recolhimento, torna-se incabível aa exigência cumulativa da multa isolada. Nessa toada, destacamos as ementas de julgamentos a seguir colacionadas:

“Ementa:

PARCELAS DE ESTIMATIVAS MENSAIS NÃO RECOLHIDAS. OPÇÃO AO PARCELAMENTO INSTITUÍDO PELA LEI 11.941/2009. ANTERIOR AO INÍCIO DO PROCEDIMENTO FISCAL. NÃO EXCLUSÃO DA ESPONTANEIDADE. Comprovado nos autos que a Recorrida confessou seus débitos de estimativas mensais no Refis antes do início do procedimento fiscal, não devem proceder os lançamentos consubstanciados no auto de infração.Assim, devem ser cancelados o principal e a multa de ofício aplicada.

MULTA ISOLADA. Tendo sido confessados no REFIS os valores de estimativas, assim como a multa pelo atrasado do recolhimento, torna-se incabível a exigência cumulativa da multa isolada. (Acórdão n. 1202-000.825, Sessão de 03 de julho de 2012)

Ementa:

AUTO DE INFRAÇÃO. MULTA ISOLADA. RECOLHIMENTO DAS ESTIMATIVAS MENSAIS. COMPROVAÇÃO. Constatado que o contribuinte cumpriu com a obrigação de recolher as estimativas mensais do IRPJ e da CSLL mediante pagamento, compensação e parcelamento, cancela-se o lançamento fiscal efetuado para exigir a multa isolada pelo não recolhimento dessas estimativas.

RECURSO EX-OFFÍCIO. ERRO NA APLICAÇÃO DA MULTA ISOLADA. Nega-se provimento ao recurso interposto pela autoridade julgadora “a quo”, quando a decisão recorrida identificou, corretamente, a ocorrência de erro na imposição da multa isolada pela falta de recolhimento das estimativas mensais. (Acórdão 1202-000.939, sessão de 6 de março de 2013).

Ementa:

MULTA ISOLADA. ESTIMATIVAS. A exigência de multas isoladas pelo não pagamento de estimativas mensais de tributos não pode subsistir se a contribuinte informou os valores devidos em DCTF, ou, ainda, se a administração tributária facultou o parcelamento para recolher tais valores, após o encerramento dos anos-calendários, ao qual a contribuinte aderiu e estava em dia antes da autuação.

MULTA DE OFÍCIO. REGULAR. Nos casos de lançamento de ofício, será aplicada a multa de 75% sobre a totalidade ou diferença de imposto ou contribuição, por falta de pagamento ou recolhimento, por falta de declaração e por declaração inexata. (Acórdão 1302-001.975, sessão de 13 de setembro de 2016)

Ementa:

IRPJ – BASE ESTIMADA – MULTA ISOLADA – REFIS – Estando os valores de IRPJ e CSL calculados por estimativa parcelados no Programa de Recuperação Fiscal, com exigência de multa pelo atraso em seu recolhimento, incabível a exigência cumulativa da multa isolada prevista no art. 44, § 1º, inc. IV da Lei nº 9.430/96. Recurso provido. (Acórdão 103-21143, Sessão de 29 de janeiro 2003).”

Ainda a respeito do tema, podemos encontrar manifestações do Conselho igualando os institutos do pagamento, compensação e parcelamento no que tange ao cumprimento da obrigação de recolher as estimativas mensais do IRPJ e da CSLL, as quais, uma vez contatadas, devem levar ao cancelamento o lançamento fiscal efetuado para exigir a multa isolada pelo não recolhimento dessas estimativas (Acórdão nº 1202­000.939).

No âmbito da Câmara Superior de Recursos Fiscais (CSRF), foi prolatado o Acórdão 9303-012.842, que, por unanimidade de votos, reformou o supramencionado Acórdão 1201.002.072. A seguir, apresentamos excerto importante da decisão, solidificando o porquê entendeu-se que assiste razão ao contribuinte a respeito da questão:

“Neste sentido, a consolidação da estimativa a ser parcelada considera, em princípio, a inclusão de penalidade a título de multa de mora e atualização a título de juros de mora, desde o vencimento de cada parcela, ou seja, já considera uma penalidade pelo não recolhimento no prazo legal. É necessário salientar que a instituição da multa isolada no artigo 44 da Lei nº 9.430/96 tem como pressuposto a impossibilidade de cobrança das estimativas após o término do ano-calendário, conforme as próprias instruções normativas trataram o assunto, a saber:

IN SRF nº 93/97:

Art. 15. O lançamento de ofício, caso a pessoa jurídica tenha optado pelo pagamento do imposto por estimativa, restringir-se-á à multa de ofício sobre os valores não recolhidos.

[…]

Art. 16. Verificada a falta de pagamento do imposto por estimativa, após o término do ano-calendário, o lançamento de ofício abrangerá:

I – a multa de ofício sobre os valores devidos por estimativa e não recolhidos;
II – o imposto devido com base no lucro real apurado em 31 de dezembro, caso não recolhido, acrescido de multa de ofício e juros de mora contados do vencimento da quota única do imposto.

IN RFB nº 1.515/2014:

Art. 16. Verificada, durante o próprio ano-calendário, a falta de pagamento do imposto por estimativa, o lançamento de ofício restringir-se-á à multa de ofício sobre os valores não recolhidos.

[…]

Art. 17. Verificada a falta de pagamento do imposto por estimativa, após o término do ano-calendário, o lançamento de ofício abrangerá:

I – a multa de ofício de 50% (cinquenta por cento) sobre o valor do pagamento mensal que deixar de ser efetuado, ainda que tenha sido apurado prejuízo fiscal no ano-calendário correspondente;
II – o imposto devido com base no lucro real apurado em 31 de dezembro, caso não recolhido, acrescido de multa de ofício e juros de mora contados do vencimento da quota única do imposto.

Logo, a quitação das estimativas, via parcelamento, afasta a hipótese de incidência da multa isolada, uma vez que, efetivamente, as estimativas estão sendo recolhidas. Ademais, o débito parcelado fica com sua exigibilidade suspensa, nos termos do artigo 151, VI do CTN, o que afasta a inadimplência da recorrente, se afigurando tal situação incompatível com a aplicação de penalidade pela falta de recolhimento.

Destarte, o reconhecimento pela Administração Tributária da possibilidade de efetuar parcelamento das estimativas revela um comportamento contraditório com a aplicação da penalidade prevista no artigo 44, inciso II, alínea ‘b’ da Lei nº 9.430/96, cujo fundamento é a falta de recolhimento das mesmas.”

Veja-se que o ponto aqui não é afastamento da multa isolada por denúncia espontânea, o que sabidamente não ocorre no âmbito do parcelamento (cf. RESP nº 1.102.577/DF, julgado na sistemática dos recursos repetitivos e, portanto, de observância obrigatória pelo Carf). Mas sim ausência de subsunção dos fatos do caso concreto à hipótese de incidência traçada pela legislação para a multa isolada pela falta de pagamento de estimativa.

A cronologia dos fatos é fator importante para o deslinde das controvérsias ora comentadas. É o que restou claro no recente julgamento proferido no Acórdão 1201-005.688, no qual ficaram consignados os seguintes pontos:

“O fato jurídico do pagamento que deixou de ser efetuado, previsto no art. 44, II, alínea b da Lei n.º 9.430/1996, não se configura no presente caso. Lembre-se que aqui as estimativas referem-se ao ano de 2013, a retificação em DCTF para contemplá-las ocorreu em 25/08/2014, constituindo o crédito tributário. No próprio ano de 2014 esses débitos foram parcelados, conjuntamente com a multa de mora e os juros respectivos. Assim, a partir daí o débito de estimativa encontrava-se confessado e sendo adimplido com conformidade com o programa outorgado pela Receita Federal. Foi somente em 2017 que veio a ser efetuado o lançamento tributário para cobrança das multas isoladas. Não se trata, portanto, de caso em que previamente à adesão ao parcelamento a multa isolada já se encontrava lançada. 

Daí de fato percebe-se a dislexia do tratamento fiscal dado ao caso: mesmo depois de encerrado o ano calendário de 2013, a autoridade tributária aceitou o parcelamento dos débitos de estimativa deste ano, sendo que na realidade depois desse período, somente a multa isolada poderia ser exigida, além do próprio valor a título de IRPJ (cf. art. 16 da IN RFB nº 1.515/2014). Se permitiu o pagamento das estimativas via parcelamento, como poderia posteriormente autuar o contribuinte para cobrar multa isolada pelo não pagamento das estimativas?”

O raciocínio supra apresentado calcou-se, outrossim, no artigo 112, inciso I do Código Tributário Nacional, o qual estabelece que a lei tributária que define infrações, ou lhe comina penalidades, interpreta-se da maneira mais favorável ao acusado, em caso de dúvida quanto à capitulação legal do fato. Portanto, caso haja dúvida sobre o parcelamento ser ou não entendido como forma de pagamento para fins de aplicação da multa isolada prevista no artigo 44, II, alínea b da Lei nº 9.430/1996 (como parece ser o caso, já que existe jurisprudência divergente no Carf a respeito do tema), deve ser dada interpretação mais favorável ao contribuinte.

Vemos então que o entendimento que, embora não uníssono, tem prevalecido para o caso posto em discussão na coluna de hoje é que, estando os débitos de estimativa parcelados, o pagamento está sendo feito aos cofres da União, de forma que torna-se impossível falar que o pagamento de estimativa deixou de ser efetuado, sendo incabível, por conseguinte, a cobrança da multa isolada estabelecida no artigo 44, II, alínea b da Lei nº 9.430/1996.

Thais de Laurentiis é conselheira titular do Carf, vice-presidente da Turma 1.201, árbitra no CBMA, doutora e mestre em Direito Tributário pela Faculdade de Direito da USP — com período na Sciences Po/Paris —, especialista pelo Ibet, graduada pela Faculdade de Direito da USP, associada do IBDT e professora de Direito Tributário e Direito Aduaneiro em cursos de pós-graduação e extensão universitária.

Revista Consultor Jurídico, 25 de janeiro de 2023, 8h00

O governo errou no Carf. O princípio é in dubio pro contribuinte

Por meio da Medida Provisória 1.160, foi alterada a regra das decisões do Carf quando ocorrer empate no julgamento, tendo sido revogado o artigo 19-E da Lei 10.522/02. Desde 2020, o empate no julgamento era decidido a favor do contribuinte; antes disso vigorava a regra de que o empate era decidido a favor do Fisco. Penso que o governo errou e explico os motivos.

O primeiro deles é que se trata de matéria que não possui urgência, embora seja relevante, o que torna inconstitucional o uso do veículo normativo “medida provisória”, pois infringe os requisitos do artigo 62, CF, que prevê seu uso apenas quando estiverem presentes os dois critérios, de relevância e também o de urgência. Hamilton Dias de Souza produziu excelente texto nesse sentido. 

O segundo é que os aspectos fáticos alegados estão incorretos, pois menos de 2% dos casos foram decididos em favor dos contribuintes desde 2020, fruto do empate, segundo dados divulgados pela Aconcarf, embora os valores em debate tenham percentual distinto. E não contrariaram decisões sólidas do Judiciário, conforme alegado.

O terceiro motivo, e que me parece mais importante, é fruto da lógica sistêmica do processo administrativo fiscal, sobre o qual escrevi em 2013nesta ConJur, incluindo aspectos de sua origem mitológica. O ponto central está na estruturação do processo administrativo fiscal, que é, em sua essência, acusatório. Como regra, o processo analisado pelo Carf decorre de uma espécie de acusação de que o contribuinte errou, e isso é refletido em um auto de infração ou em uma glosa no processo de compensação de créditos — ou seja, o contribuinte já recebe de antemão uma notificação fiscal acusando-o de ter se apropriado indevidamente de recursos públicos (tributos), que deveriam ter sido pagos, com acréscimo de juros e multas. Tudo que implica no processo administrativo-tributário decorre dessa gênese acusatória, voltada primordialmente para a constrição do patrimônio dos contribuintes, mas que pode ser redirecionada para a constrição de sua liberdade, quando desborda para aspectos criminais, fruto de problemas tributários.

Compreendido esse pressuposto, qual o princípio aplicável, desde a mitológica Minerva? In dubio pro reo! Ou seja, quando alguém é acusado de cometer uma infração, havendo empate no julgamento, pressupõe-se a existência de dúvida no colegiado, e, daí, aplica-se o princípio do in dubio pro acusado, que, em casos criminais, é identificado como o réu, e no processo administrativo tributário, como contribuinte Na doutrina norte-americana usa-se a expressão beyond any reasonable doubt, que significa que só pode haver condenação além de qualquer dúvida razoável. Ora, se o voto do colegiado não foi suficiente para aceitar a acusação, pois houve empate, existe dúvida razoável de que aquela conduta tenha sido irregular, consequentemente o acusado é absolvido.

O que se aplica, e está errado, é a crença de que o processo administrativo tributário é um processo vinculado ao Direito Privado. Não. É um processo acusatório, típico de Direito Penal, embora a constrição seja patrimonial. Inicia-se por uma acusação (auto de infração ou medidas assemelhadas).

Logo, o empate favorece o contribuinte, independente da regra normativa, pois se trata de um princípio de Direito. Como se sabe, as regras devem se subordinar aos princípios. Dessa forma, independente de regra, seja a da MP 1.160 ou a da Lei 10.522/02, o princípio vinculado ao processo acusatório é superior, e, havendo empate, o contribuinte deve ser desonerado — in dubio pro contribuinte.

Ocorre que o problema está posto — desnecessariamente, mas está posto. 

Qual pode ser então a solução de compromisso, entendida como a solução possível dentro do quadro jurídico-político que se apresenta?

O Congresso Nacional deve alterar a MP 1.160 e afastar a incidência das multas aplicadas em caso de empate. O contribuinte perde, mas não é sobreonerado com as pesadas multas aplicadas a quem infringiu as regras tributárias. Aplica-se o in dubio pro contribuinte previsto pelo princípio acusatório, mas de forma mitigada, pois o principal e os juros são aplicados e devem ser pagos, mas as multas são afastadas. Claro que essa desoneração só pode ocorrer se o contribuinte renunciar ao direito de contestar o julgamento do Carf no Judiciário. Registra-se que foi aberto na Câmara dos Deputados um processo de consulta pública acerca da MP 1.160, que pode ser acessado por todos os interessados.

Nem mesmo essa alteração fará com que não haja aumento de litigiosidade, nas pequenas e circunscritas hipóteses em que será aplicada, mas seguramente será um pouco de água fria na fervura que tendia a se extinguir e foi tolamente ressuscitada.

PS: Existem outras batatadas na MP 1.160/23, em especial a questão da ampliação da alçada recursal, o que foi muito bem abordado no texto de Hugo de Brito Machado Segundo, publicado nesta ConJur, e que devem ser alteradas pelo Congresso Nacional.

Fernando Facury Scaff é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP), advogado e sócio do escritório Silveira, Athias, Soriano de Mello, Bentes, Lobato & Scaff Advogados.

Revista Consultor Jurídico, 23 de janeiro de 2023, 8h00

A restrição de acesso ao Carf é inconstitucional

Sob o discurso de que o Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) é um órgão altamente especializado, que não pode ficar a perder tempo com questões banais, aliado ao argumento de que há um elevado “estoque” de dívida a ser cobrado, há poucos dias editou-se a Medida Provisória 1.160, que levou a efeito algumas modificações no processo administrativo tributário federal. É preciso atenção quando a leitora for procurá-la, pois há outra MP 1.160, de mesmo número mas editada em 1995, que trata de outra coisa. Esta que comento é de 12 de janeiro de 2023.

Neste artigo será abordada apenas uma das modificações, que pretende restringir a competência do Carf às questões “mais complexas”, assim entendidas aquelas que envolvem quantias superiores a 1.000 salários mínimos. Questões que discutam valores inferiores a isso serão equacionadas em “instância única”.

Muitos estão a comentar a referida medida provisória, dando ênfase apenas ao retorno do “voto de qualidade”, por ela também levado a efeito. Mas é preciso atenção ao que decorre da seguinte disposição, que, pela técnica de remissões que faz, talvez não seja suficientemente clara e esteja passando despercebida:

“Art. 4º A Lei nº 13.988, de 14 de abril de 2020, passa a vigorar com as seguintes alterações:

Art. 27-B. Aplica-se o disposto no art. 23 ao contencioso administrativo fiscal de baixa complexidade, assim compreendido aquele cujo lançamento fiscal ou controvérsia não supere mil salários mínimos.”(NR)

Para entender o que isso significa é preciso conferir o artigo 23 da Lei 13.988/2020, que passa agora a ser aplicado a todo “contencioso cuja controvérsia não supere mil salários mínimos”. Seu parágrafo único dispõe:

“Parágrafo único. No contencioso administrativo de pequeno valor, observados o contraditório, a ampla defesa e a vinculação aos entendimentos do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais, o julgamento será realizado em última instância por órgão colegiado da Delegacia da Receita Federal do Brasil de Julgamento da Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil, aplicado o disposto no Decreto nº 70.235, de 6 de março de 1972, apenas subsidiariamente.”

Isso significa, por outras palavras, a pretensão de fazer com que se submetam integralmente aos termos do Decreto 70.235/72, incluindo o direito de recorrer ao Carf e, eventualmente, à Câmara Superior de Recursos Fiscais (CSRF), apenas os processos administrativos que girem em torno de quantias superiores ao citado valor de alçada, que hoje ultrapassa um milhão de reais. Todas as demais questões tributárias, que correspondem à imensa maioria, serão resolvidas no âmbito das Delegacias de Julgamento.

Existem, contudo, incontáveis problemas nessa medida.

O primeiro deles, mais evidente, é a violação ao disposto na Súmula Vinculante 21, do Supremo Tribunal Federal, segundo a qual “é inconstitucional a exigência de depósito ou arrolamento prévios de dinheiro ou bens para admissibilidade de recurso administrativo”.

Entre os fundamentos usados pelo STF para julgar as questões que culminaram com a edição da Súmula, estavam a necessidade de respeito ao devido processo legal substantivo, ao direito de defesa, e direito de interposição de recursos, malferidos quando se exige um depósito de 30% do valor da exigência como condição para admissibilidade do recurso. Vista como um embaraço, ou uma dificuldade, de acesso ao Carf, a exigência de garantias recursais foi declarada inconstitucional. Nesse contexto, a fortiori,uma vedação absoluta (para quem discute menos de mil salários mínimos) afigura-se, se é que isso é possível, ainda mais inconstitucional.

Só pelo valor envolvido, notadamente quando o parâmetro supera um milhão de reais, não se pode dizer que uma causa é mais, ou menos, complexa. O valor por certo é um dos elementos, a indicar inclusive maior responsabilidade para quem lida com o conflito, mas, quanto à complexidade da matéria, muitas vezes é reflexo apenas do porte do contribuinte. Uma mesma discussão sobre insumos de PIS ou Cofins, ou sobre a dedutibilidade de despesas na apuração do IRPJ ou da CSLL, pode ou não ultrapassar esse valor, a depender, tão somente, de se tratar de um grande contribuinte, que lucra e fatura muito, ou de um contribuinte de porte médio. Não será a complexidade, ou a relevância, mas a capacidade econômica do contribuinte que permitirá, ou cerceará, o acesso a um importante órgão de controle interno da legalidade, em clara quebra da igualdade.

Recorde-se que as Delegacias de Julgamento, diversamente do Carf, acham-se vinculadas a todas as normas infralegais editadas pela administração tributária. Decretos, portarias, instruções normativas, ordens de serviço, pareceres normativos, soluções de consulta etc. Isso torna quase inexistência a sua capacidade para realizar controle de legalidade, quanto a questões de direito, vinculadas que estão justamente às normas cuja invalidade é o cerne da controvérsia.

A inconstitucionalidade da medida, nesses termos, é bastante clara.

Mas não só. Ela é, além de tudo, inconveniente. Inclusive para o Fisco, que não deve agir como se a solução para a superlotação dos hospitais fosse fechar suas portas a fim de que os pacientes morram do lado de fora. Não se deve pensar que, para obter maior arrecadação, a solução é amesquinhar o devido processo legal, pois isso, quando muito, aumenta uma arrecadação que de outro modo seria considerada indevida, algo incompatível com a ideia de Estado de Direito.

Isso remete à derradeira questão, que talvez já tenha passado pela mente da leitora enquanto lia o parágrafo único do artigo 23 da Lei 13.988/2020: Mas por que essa irresignação contra a medida? Nela não se afirma “observados o contraditório, a ampla defesa e a vinculação aos entendimentos do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais”? Se os precedentes do Carf serão observados, qual o problema?

O problema é justamente esse: a forma como os precedentes do Carf (não) são observados. Nem pela fiscalização, nem pelas próprias delegacias, inclusive as de julgamento. São seguidos, naturalmente, mas só quando favorecem o Fisco. Neste caso, nem precisam ter força vinculante, qualquer acórdão serve. Mas, se favorecem a tese defendida pelo contribuinte, as autoridades tributárias, de lançamento ou de revisão em primeira instância, afirmam que, à luz do artigo 100 do CTN, só são obrigadas a cumprir os que tiverem força vinculante. E o Fisco só dá força vinculante aos precedentes do Carf que o favorecem. Os que desfavorecem são motivo para pressão às vezes explícita junto aos conselheiros do órgão para que sejam revertidos, ou para modificações legislativas como a que se comenta neste artigo.

É esse comportamento que faz com que o Carf seja assoberbado de processos. Se as DRJs seguissem os entendimentos da segunda instância favoráveis aos sujeitos passivos, simplesmente os sujeitos passivos não recorreriam, e, nas questões cujo valor fosse inferior a dois milhões de reais, tampouco haveria recurso de ofício. Caso o Fisco — todo ele — seguisse os precedentes do Carf de modo coerente, portanto, chegar-se-ia ao mesmo resultado que se alega pretender com a restrição aqui comentada, sem a necessidade de qualquer mudança legislativa, ou de qualquer violação ao direito de defesa.

Aliás, a lamentável medida irá aumentar, sem dúvida, a quantidade de processos levados ao Poder Judiciário, contrariando uma lógica, presente sempre nas palavras mas raramente nos atos das autoridades fiscais, de desjudicialização, de redução de conflitos, de “superação da cultura do litígio”. Reduzir cultura do litígio não pode ser confundido com simplesmente tolherem-se os instrumentos de defesa e de controle, para que o Fisco faça com o contribuinte o que quiser. É o caso: em vez de reconhecer na via administrativa uma ilegalidade, fecha-se ao contribuinte a via de acesso ao órgão que minimamente ainda faz isso, fazendo-se com que essas mesmas questões sejam desnecessariamente levadas ao Judiciário. E este, depois, logo começa a realizar julgamentos em massa, adotar a jurisprudência defensiva para se livrar de processos, e culpar advogados, um suposto excesso de recursos e o CPC de 2015 em geral pelo problema que, como se vê, é bem outro.

Hugo de Brito Machado Segundo é professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará (UFCE) — de cujo programa de pós-graduação (mestrado/doutorado) foi coordenador (2012/2016) —, professor do Centro Universitário Christus (graduação/mestrado), membro do Instituto Cearense de Estudos Tributários (Icet) e da World Complexity Science Academy (WCSA), advogado e visiting scholar da Wirtschaftsuniversität, em Viena (Áustria).

Revista Consultor Jurídico, 18 de janeiro de 2023, 8h00

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