Desmistificando e desmitificando o Carf

Nesses poucos dias de um ano cujos acontecimentos — para o bem e para o mal — receberam destaque na história deste país, ganhou o Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) reflexa luz dos holofotes. Nesta coluna, diversamente do que sói ocorrer, não cotejaremos precedentes do Tribunal Administrativo, e sim o abordaremos numa perspectiva histórico-institucional, especialmente quanto a sua basilar prerrogativa e alterações relativas ao voto de qualidade. Daremos dois passos atrás para, oxalá, andar um para frente.

Muito salutar para uma nação que se pretenda deveras republicana que conheçam os administrados não só os órgãos que compõem a estrutura de cada um dos Poderes, como também suas respectivas formas de atuação. Justamente por isso, necessário que enfrentemos a difícil tarefa de desmistificar e desmitificar o órgão responsável pelo julgamento em segunda instância de todo o contencioso administrativo fiscal federal.

Embora as expressões eleitas pareçam sinônimas, até mesmo porque exibem grafia quase idêntica, não o são. Ambas, entretanto, por ostentarem o prefixo latino des-, denotam o desfazimento de algo. Se é verdade que toda reconstrução é precedida de uma desconstrução, parece ser bem este o caminho a ser trilhado. O verbo desmistificar carrega como significado desmascarar, aclarar uma situação repleta de mistérios; por outro lado, desmitificar é retirar o caráter de mito atribuído a algo ou a alguém.

No próximo dia 14 de setembro, o Carf, órgão que sucedeu os antigos Conselhos de Contribuintes, completará 98 anos de história, sendo responsável por realizar o controle de legalidade do lançamento tributário. Ou seja, ao Carf cabe averiguar a conformidade da autuação com a legislação aplicável, não gozando de competência para declarar a ilegalidade ou a inconstitucionalidade da lei, tarefa esta atribuída exclusivamente ao Poder Judiciário [1].

Do artigo 1º do Anexo I do Regimento Interno do Carf (RICarf), extraímos que “o Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) (…) tem por finalidade julgar recursos de ofício e voluntário de decisão de 1ª (primeira) instância, bem como os recursos de natureza especial, que versem sobre a aplicação da legislação referente a tributos administrados pela Secretaria da Receita Federal do Brasil (RFB)”. O Carf, portanto, embora integre a estrutura do Ministério da Fazenda, desempenha atípica função judicante.

Urge desmistificar a atribuição de uma suposta finalidade arrecadatória ao Carf. Quando uma julgadora (esteja ela em âmbito administrativo, esteja ela na seara judicial) analisa um auto de infração podem ocorrer as seguintes situações: 1) o lançamento ser considerado procedente, mantendo-se a integralidade da exigência tributária; 2) a exigência fiscal ser tida como parcialmente procedente, permanecendo incólume apenas uma fração do crédito tributário; ou, 3) o lançamento ser declarado insubsistente, com o afastamento da integralidade da exigência tributária. Ora, o fato de a julgadora aferir a (in)subsistência do lançamento, decidindo, em última análise, sobre se verterá ou não dinheiro aos cofres públicos, não a torna uma autoridade fazendária [2].

O RICarf determina, no inciso I do seu artigo 41, serem deveres dos conselheiros, dentre outros, “exercer sua função pautando-se por padrões éticos, no que diz respeito à imparcialidade, integridade, moralidade e decoro, com vistas à obtenção do respeito e da confiança da sociedade”. Portanto, quando uma auditora fiscal deixa seu posto na Receita Federal e passa integrar os quadros do Carf, há que se desincumbir da tarefa de obter recursos financeiros ao Estado, passando a desempenhar, com imparcialidade, seu papel de julgadora. Sob uma perspectiva institucional, é essa a atuação que o Carf espera de suas conselheiras e de seus conselheiros, sejam eles servidores da Receita Federal, sejam eles indicados pelas entidades sindicais e confederações patronais que têm assento no órgão.

Da leitura do RICarf é possível extrair elementos para livrar de mistificação suposta discrepância entre precedentes emanados do Carf e aqueles proferidos pelos tribunais pátrios. Como dito, o escopo de atuação do Carf é infinitamente mais limitado do que o do Poder Judiciário, porquanto não se pode, em esfera administrativa, afastar lei com base em argumentos de ilegalidade e de inconstitucionalidade.

Tal vedação é excepcionada em algumas hipóteses, todas trazidas no artigo 62 do RICarf, que, em suma, versam sobre declarações de inconstitucionalidade em decisão definitiva proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, súmulas vinculantes, teses firmadas sob a sistemática de recursos repetitivos, bem como no caso de dispensa legal de constituição ou ato declaratório da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, parecer do advogado-geral da União aprovado pelo presidente da República e súmula da Advocacia-Geral da União.

Destacamos ainda que o §2º do artigo 62 do RICarf impõe aos seus conselheiros e às suas conselheiras a reprodução das decisões definitivas de mérito, proferidas tanto pelo Supremo Tribunal Federal quanto pelo Superior Tribunal de Justiça, quando firmadas na apreciação de recursos extraordinário e especial repetitivos. A sanção aplicada em caso de inobservância do disposto no artigo 62 do RICarf é das mais graves: a perda de mandato — ex vi do inciso VI do artigo 45 do RICarf. Torna-se, dessa forma, remota, para não dizer impossível — exceto pelo exercício do distinguishing —, o julgamento contrário às teses tributárias judicialmente sedimentadas naqueles termos, tão menos a utilização de quaisquer critérios de desempate para sua reversão em âmbito administrativo.

Se até o momento tratamos de mistificações, chegada a hora de, sem a intenção de exaurir a temática, tecermos algumas linhas sobre o que nos parece ter sido alçado à categoria de mito: o impacto do critério de desempate adotado no Carf. Antes disso, façamos uma brevíssima digressão histórico-comparativa.

O Carf, como já pontuamos, é órgão quase secular. Isso, contudo, não o isenta de receber críticas, tampouco aprimoramentos. O modelo de composição paritária, inicialmente previsto no Decreto nº 20.305/1931, que perdura até o momento, de fato, não guarda similaridade com o paradigma de nenhum outro país. Tal constatação, por si só, não significa ser o formato aqui edificado equivocado, tampouco atenta para a realidade além-mar na fase pré-contenciosa, que é bastante diversa da brasileira, conforme sinaliza minudente estudo realizado por pesquisadores do Núcleo de Tributação do Insper (aquiaqui e aqui[3]. De bom alvitre lembrar que transplantes acríticos de normas e modelos costumam apresentar falhas, caso não sejam levadas em consideração as particularidades de cada jurisdição.

Como já alertamos (aqui), vez e outra contada a lenda de que a primeira e a segunda instâncias do contencioso administrativo federal apenas replicariam os achados das autoridades fiscalizadoras, falhando ainda em resguardar os princípios da ampla defesa e do contraditório. O Tribunal de Contas da União, ao analisar o período compreendido entre 2012 e 2019, anterior à modificação da regra de desempate estabelecida pela Lei nº 13.988/20, demonstrou que “em termos quantitativos, 47% das autuações tributárias objeto de litígio foram canceladas total ou parcialmente nas DRJ e 45%, no Carf” [4].

As disputas se acirraram com a controversa alteração do critério de desempate em 2020: se antes quem dava o voto de minerva era o presidente de cada Turma, cadeira sempre ocupada por julgadora oriunda dos quadros da Receita Federal, até o dia 12 de janeiro p.p. a resolução do impasse se dava a priori em desfavor da Fazenda Pública [5].

Contra a modificação do critério de desempate favorável aos contribuintes interpostas três ações diretas de inconstitucionalidade [6]. A despeito de já se ter formado maioria no Supremo Tribunal Federal pela constitucionalidade da norma, superando-se até mesmo as alegações de vício de natureza formal, o julgamento ainda não teve seu fim. A excrescência causada pelo desempate pró-contribuinte é o que parece, inclusive, ter motivado o ministro Barroso propor a tese de que, malgrado constitucional a extinção do voto de qualidade do presidente das turmas julgadoras do Carf, no caso de empate em decisão favorável ao contribuinte, poderia a Fazenda Pública ajuizar ação visando a restabelecer o lançamento tributário.

Ora, a atividade exercida pelos órgãos julgadores em âmbito administrativo, por ser função atípica, não pode ser confundida com a atividade judicante. Por ser o Carf um revisor de atos administrativos, em franca manifestação do exercício do poder de autotutela estatal, deve o processo administrativo fiscal guardar compatibilidade com a presunção dos atos administrativos, vedando que, em caso de afastamento do lançamento pela Carf, possa a Fazenda Pública socorrer ao Poder Judiciário. Daí o porquê de o critério de desempate pró-contribuinte ter deturpado a lógica do contencioso administrativo fiscal federal.

Como já antecipado em coluna (aqui) escrita em coautoria pelos colegas CARLOS AUGUSTO DANIEL e DIEGO DINIZ RIBEIRO, “[a] defesa da existência do voto de qualidade, por outro lado, não significa que o processo administrativo-fiscal federal não necessite de ajustes: o que se critica aqui é uma alteração isolada e oportunista que deturpa todo um sistema existente há quase 90 anos, ao invés de um debate democrático, técnico e dialético, essencial para mudanças coerentes e vocacionadas a se perpetuarem”.

Em que pese o restabelecimento do voto de qualidade pela Medida Provisória nº 1.160, de 12 de janeiro de 2023 melhor se coadunar com a estrutura do processo administrativo fiscal em terras brasileiras, mitos ainda o circundam.

A análise dos dados fornecidos pelo próprio Conselho fragiliza as fábulas sobre a determinabilidade da aplicação dos critérios de desempate para a definição do resultado do julgamento [7]. Nos anos de 2017, 2018, 2019 e 2020 foram decididos pelo voto de qualidade 7,2%, 6,8%, 5,3% e 1,9% dos casos, respectivamente. Além de baixo o percentual, sequer possível precisar se o desempate foi contra ou a favor do contribuinte. O presidente de Turma, no exercício de sua imparcialidade, não tem qualquer impedimento para desempatar em prol do provimento do recurso apresentado pelo autuado. A título exemplificativo, confira-se os seguintes julgados, todos proferidos pelo Carf no período acima mencionado, em que dado provimento ao recurso voluntário pelo voto de qualidade: Acórdãos nºs 2001-000.799, 2001-000.965, 2001-000.562, 2002-003.742, 3301-000.742, 1301-004.759, 1402-003.829, 2202-005.728 [8].

Registramos que, no banco de dados disponibilizado pelo Carf, tampouco é possível saber qual o valor dos créditos tributários mantidos pela aplicação do voto de qualidade. Acostada à ADI nº 6.415, que sustenta a inconstitucionalidade da lei que pôs fim ao voto de qualidade, consta uma série de esclarecimentos oferecidos pelo Serviço de Informações ao Cidadão do antigo Ministério da Economia. Quando indagado qual seria o valor do crédito tributário e quantitativo de processos decididos pelo voto de qualidade no Carf nos últimos três anos, respondido o seguinte:

“Nos anos de 2017, 2018, 2019 e 2020 (até março) foram julgados, por voto de qualidade, 4026 recursos, correspondente a R$ 248.093.219.299,54. Vale ressaltar que os créditos tributários informados acima correspondem ao valor total cadastrado no processo, não significando, portanto, valores mantidos ou exonerados, haja vista que o Conselho Administrativo de Recursos Fiscais — CARF não liquida decisões. Em virtude do acima exposto, e pelo fato de a votação ser por recurso, o valor total do processo foi utilizado por cada recurso cuja votação tenha sido por qualidade.”

No que tange aos processos decididos pelo critério de desempate pró-contribuinte, o percentual é ainda menor: 0,4%, 1,6% e 1,9%, em cada ano de sua vigência. Tampouco existem dados oficiais disponibilizados acerca do montante exonerado e estudos que apontem como formado o empate — teriam todos os “conselheiros dos contribuintes” votado pelo cancelamento da autuação e todos os “conselheiros fazendários” pela manutenção da exigência? Ou parte dos “conselheiros dos contribuintes” se convenceram pela higidez da cobrança e parcela dos “conselheiros fazendários” não? São perguntas carentes de respostas.

A despeito das espinhosas dúvidas, além dos necessários ajustes à utopia do modelo ideal de um tribunal administrativo federal tributário, nesses tempos de mudança é essencial desmistificar — e também desmitificar — o papel e a forma de atuação do Carf. Mirando para o futuro, chegada a hora de reconstruir, unificar, dinamizar e modernizar o processo administrativo fiscal [9]. Os novos ventos são mais do que aguardados e bem-vindos. Só há de se acautelar para “não jogar fora o bebê junto com a água do banho”.

Este texto não reflete a posição institucional do CARF, mas, sim, uma análise dos seus precedentes publicados no site do órgão, em estudo descritivo, de caráter informativo, promovido pelos seus colunistas.


[1] O Carf editou súmula, a de nº 02, justamente para asseverar que “não é competente para se pronunciar sobre a inconstitucionalidade de lei tributária”. Em mesmo sentido, o art. 62 do RICarf prevê que “fica vedado aos membros das turmas de julgamento do CARF afastar a aplicação ou deixar de observar tratado, acordo internacional, lei ou decreto, sob fundamento de inconstitucionalidade”.

[2] Vale advertir que, com o término do contencioso administrativo, não vertem os recursos automaticamente ao erário, eis que dependerá do adimplemento voluntário do contribuinte administrativamente derrotado ou de um processo de cobrança judicial que seja eficaz. 

[3] Prestamos agradecimentos ao integrante do grupo de pesquisadores do Insper, professor Breno Vasconcelos, pelo compartilhamento de informações e documentos imprescindíveis para a elaboração desta coluna. 

[4] Cf. Acórdão nº 336/2021 do TCU. 

[5] Cf. Medida Provisória nº 1.160, de 12 de janeiro de 2023. 

[6] Cf. ADIs nºs 6.399, 6.403 e 6.415. 

[7] Os Dados Abertos do Carf podem ser consultados em: http://idg.carf.fazenda.gov.br/dados-abertos/dados-abertos-202212-final.pdf. Acesso em: 17 jan. 2023.

[8] São inúmeros acórdãos, o que inviabiliza a transcrição. Foi utilizado como parâmetro de pesquisa “voto de qualidade” e “dar provimento ao recurso voluntário”, aplicando-se o filtro correspondente aos julgados proferidos nos anos de 2017, 2018, 2019 e 2020. Disponível em: https://acordaos.economia.gov.br/solr/acordaos2/browse/. Acesso em: 17 jan. 2023. 

[9] Calha mencionar, nesse sentido, a atuação da Subcomissão de Processo Administrativo, órgão fracionário da Comissão de Juristas presidida pela ministra Regina Helena Costa, bem como da Comissão Especial de Direito Tributário do Conselho Federal da OAB, encabeçada pela professora Misabel Abreu Machado Derzi.

Ludmila Mara Monteiro de Oliveira é doutora em Direito Tributário pela UFMG, com período de investigação na McGill University, conselheira titular integrante da 2ª Turma Ordinária da 2ª Câmara da 2ª Seção do Carf e professora de Direito Tributário da pós-graduação da PUC-Minas.

Mariel Orsi Gameiro é conselheira do Carf, professora de Direito Tributário e Aduaneiro em cursos de pós-graduação e graduação, responsável executiva do GT de Direito Aduaneiro da FGV-SP, mestre em medicina pela Unesp e doutoranda em Direito Tributário na UFMG.

Revista Consultor Jurídico, 18 de janeiro de 2023, 9h49

OAB repudia volta do voto de qualidade no Carf

Na última sexta-feira, o presidente Lula assinou a MP 1.160/23, que determina a volta do voto de qualidade no Carf – Conselho Administrativo de Recursos Fiscais. Desde 2020, havia uma regra que favorecia o contribuinte em eventuais empates em julgamentos no Conselho. Após a publicação da medida provisória, o Conselho Federal da OAB veio a público para repudiar a atitude. Veja a íntegra da nota abaixo:

O Conselho Federal da OAB manifesta seu mais contundente repúdio à MP 1.160/23, que revoga o artigo 28 da lei 13.988/20, alterando a lei 10.522/02.
A mitigação da regra do voto de qualidade no Carf procurou, apenas e tão somente, equacionar uma situação de iniquidade no processo administrativo tributário federal, impedindo que, havendo empate entre os julgadores do Carf, a solução fosse a favor da Fazenda Pública.
O art. 112 do CTN determina interpretação favorável ao contribuinte em caso de dúvida sobre o fato tributário. Essa norma foi objeto das ADIns 6.399, 6.403 e 6.415, no STF. Foram proferidos seis votos pela constitucionalidade da regra (ministros Marco Aurélio, Roberto Barroso, Alexandre de Moraes, Edson Fachin, Cármen Lúcia e Ricardo Lewandowski). O ministro Marco Aurélio, relator das ADIns, acolheu a inconstitucionalidade formal e, caso superado o ponto, entendeu pela constitucionalidade material da lei. O julgamento foi suspenso por pedido de vista do Ministro Nunes Marques.
A revogação desta lei, pela excepcional via da MP vai de encontro à superior intenção do Poder Legislativo, que foi a de modernizar a regra de julgamento no âmbito do Carf, alinhando-a aos ditames constitucionais. Além disso, faz retornar ao ordenamento jurídico uma norma incompatível com as garantias fundamentais dos contribuintes.
Como salientado pelo ministro Roberto Barroso, em voto proferido nas três ADIs, “reconhecer a constitucionalidade da norma questionada não causa necessariamente perda de arrecadação, pois, se o lançamento tributário foi impugnado, o Fisco possui somente uma expectativa de obtenção de receitas, e não um direito a crédito tributário determinado. Este só estará definitivamente constituído com a notificação do sujeito passivo para tomar ciência da decisão final desfavorável a ele no âmbito do processo administrativo fiscal”.
O CFOAB reitera não ser possível que uma norma regular e amplamente debatida e votada pelo Congresso Nacional seja revogada por medida provisória. A tributação no Brasil deve ser fiel aos inalienáveis parâmetros da CF.

Entenda
O Carf integra o ministério da Economia e é responsável pelo julgamento administrativo de segunda instância do contencioso administrativo fiscal na esfera Federal. As turmas do órgão são compostas paritariamente por representantes dos contribuintes e da Fazenda Pública, reservada a representante desta última a função de presidente, ao qual era conferido o voto de qualidade em caso de empate.
Em 2020, esse voto havia sido extinto na conversão em lei (13.988/20) da MP do contribuinte legal, que acrescentou o art. 19-E à lei 10.522/02, prevendo que os empates seriam decididos a favor do contribuinte. O dispositivo foi incluído na MP pelo Congresso e mantido pelo ex-presidente Jair Bolsonaro.
O assunto foi levado ao STF. No Tribunal, já há maioria formada contra o voto de qualidade, mas o caso está suspenso por pedido de vista do ministro Nunes Marques, sem data para voltar à pauta.
Com o caso parado no Supremo, o presidente Lula assinou a MP 1.160/23, que retoma o voto de desempate da Fazenda, medida já recomendada pelo TCU, no julgamento de conflitos tributários.

Fonte: https://www.migalhas.com.br/quentes/380051/oab-repudia-volta-do-voto-de-qualidade-no-carf

ARTIGO DA SEMANA – MP 1.160/2023 e o fim do julgamento empatado no CARF em favor do contribuinte

João Luís de Souza Pereira. Advogado. Mestre em Direito. Professor convidado das pós-graduações da FGV-Direito Rio e do IAG/PUC-Rio.

O art. 1º, da Medida Provisória nº 1.160/2023, que restabelece o voto de qualidade em favor do fisco nos julgamentos do contencioso administrativo fiscal federal, não é boa notícia.

Antes de mais nada, é preciso dizer que a manutenção do chamado “voto de qualidade” não é medida de esquerda ou de direita, mas de centro, precisamente do fiel da balança.

Entre as diversas críticas que são feitas ao processo administrativo fiscal, prevalece aquela – típica do senso comum e nada técnica – que afirma que “não vale pena discutir uma autuação da Receita Federal junto à própria Receita”. 

Aqueles que militam no contencioso administrativo sempre insistiram no contrário, sobretudo porque sabem que a segunda instância no processo administrativo fiscal é mais arejada, fruto da convivência dos representantes dos contribuintes com os representantes do fisco.

A paridade na composição de órgãos julgadores de segunda instância não é um capricho, mas uma necessidade.

Ainda que se reconheça as críticas quanto à figura do Quinto Constitucional nos Tribunais de Justiça e demais órgãos jurisdicionais, o fato é que a presença de julgadores oriundos da advocacia e do Ministério Público faz muito bem aos julgamentos Colegiados, trazendo ao debate pontos de vistas multifacetados, enriquecendo as conclusões da prestação da tutela jurisdicional.

A composição paritária dos órgãos administrativos de função judicante tem o mesmo propósito: enriquecer o debate na tomada de decisão numa relação jurídica que nasce compulsoriamente com a ocorrência do fato gerador.

A previsão da solução do litígio em favor do contribuinte nos casos de empate nos julgamentos do CARF, tal qual previsto no art. 28, da Lei nº 13.988/2020, que introduziu o art. 19-E na Lei nº 10.522/2002, já foi objeto de apreciação recente pelo STF, que concluiu por sua constitucionalidade.

A reintrodução do voto qualidade em favor do fisco só traz insegurança. Afinal, como esperar estabilidade numa relação processual se a regra do jogo muda circunstancialmente e em menos de 3 (três) anos?

Além disso, esta alteração casuística na norma reguladora do processo administrativo fiscal, por ato normativo de iniciativa do Chefe do Poder Executivo, parece mandar um recado estranho aos litigantes: este processo não existe para ter um desfecho imparcial, mas para atender o interesse do fisco.

Também é preciso observar que o fim da previsão do desfecho do julgamento empatado em favor do contribuinte só irá aumentar o número de medidas judiciais em matéria tributária. Será o que o Ministro da Fazenda supôs que o contribuinte derrotado, ao final de um processo administrativo com julgamento acirrado, irá correr   para pagar ou parcelar o crédito tributário?

Volta do voto de qualidade no Carf é retrocesso e pode aumentar judicialização

O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, anunciou nesta quinta-feira (12/1) um pacote econômico composto por medidas tributárias direcionadas a diminuir o estoque de processos administrativos do Conselho de Administração de Recursos Fiscais (Carf).

Entre as medidas, está o programa Litígio Zero, que permitirá aos contribuintes firmar acordos com o governo e pagar débitos de até 60 salários mínimos de forma parcelada. Também foi estabelecido o fim do recurso ao Carf para valores abaixo de R$ 15 milhões, de modo que, se o contribuinte vencer em primeira instância, o litígio se encerrará automaticamente.

E, entre todas as medidas anunciadas por Haddad, a mais controversa é a volta do voto de qualidade nos julgamentos do Conselho. Também conhecido como voto “duplo”, o mecanismo estabelece que, em caso de empate em um julgamento, o desempate será feito por um conselheiro que represente a Fazenda Nacional. Esse voto havia sido extinto em abril de 2020.

Vias tortas
Tributaristas ouvidos pela revista eletrônica Consultor Jurídico não gostaram das medidas.

“A questão do voto de qualidade do Carf mostra que estão tentando conseguir arrecadação por vias tortas, já que o voto de qualidade por si só não garante arrecadação. Se temos um julgamento no Carf que está empatado, é um sinal de que existe uma controvérsia grande, e isso, necessariamente, vai para o Judiciário. Portanto, a medida gera mais insegurança jurídica. Um novo governo tem a oportunidade para discutir com a sociedade uma reforma no contencioso administrativo”, afirma José Roberto Covac Junior, sócio da Covac Sociedade de Advogados.

Alberto Medeiros, sócio tributarista do escritório TozziniFreire Advogados, é outro crítico do pacote. “O fato de as alterações no funcionamento do Carf terem sido anunciadas dentro do plano de recuperação fiscal apresentado pelo novo governo, por si só, já é preocupante. A impressão que fica é que a importantíssima função exercida pelo quase centenário tribunal administrativo no controle da legalidade dos lançamentos tributários é vista como rito de passagem na cobrança do crédito tributário.” 

João Marcos Colussi, do Mattos Filho, é cético em relação à ideia de que o retorno do voto de qualidade resultará em aumento da arrecadação. “O voto de qualidade para o Fisco não resultará em receita para a União, mas, sim, na migração das discussões para o Poder Judiciário. Além da dificuldade que enfrentaria no Congresso, uma medida nesse sentido contraria os argumentos do próprio Ministério da Fazenda, que alegou que o voto de desempate em favor da União era raramente utilizado no Carf. Se era raro, por que deveria ser reinstituído?”, questiona ele.

Outro crítico do voto de qualidade é Gabriel Neder, tributarista do Peixoto & Cury Advogados. “A mudança desconsidera regra prevista no próprio Código Tributário Nacional no sentido de que, em caso de dúvida sobre a interpretação da legislação tributária que define infrações, deve se decidir em favor do contribuinte (artigo 112 do CTN). Ou seja, o próprio empate entre os julgadores revela dúvida sobre a interpretação da legislação tributária, de modo que o voto de desempate em favor do contribuinte está alinhado ao que dispõe a legislação tributária.”

O doutor em Direito e presidente do Instituto Brasileiro de Direito e Processo Tributário (IDPT), Igor Mauler Santiago, enxerga na volta do voto de qualidade falta de criatividade.

“Se é para mudar, melhor seria excluir a multa — onde há dúvida cabe punição — e manter o crédito suspenso, sem necessidade de liminar ou garantia, até o fim da ação judicial, desde que proposta pelo contribuinte até 30 dias após o fim do processo administrativo”.

Litígio zero?
O programa de parcelamento de dívidas tributárias também desagradou aos especialistas. Para advogada Ana Paula Lui, do Mattos Filho, a iniciativa não deve ter a adesão esperada pelo governo. “Ainda que os valores sejam relevantes, a discussão deverá ser levada ao Poder Judiciário, com risco de sucumbência à Fazenda Nacional”, avalia. 

Arthur Barreto, advogado tributarista do Donelli, Abreu Sodré e Nicolai Advogados (DSA Advogados), por sua vez, acredita que o Litígio Zero, aparentemente concebido nos moldes dos antigos programas do tipo Refis, pode ser um passo atrás depois de uma importante evolução no modelo da transação tributária.

“Há programas de refinanciamento mais específicos, por exemplo, para abranger contribuintes afetados pela pandemia — sendo necessário comprovar os danos causados pela emergência sanitária às contas do contribuinte. Há também programas para pequenos contribuintes e outras situações. Um programa mais amplo desestimula o bom pagador de tributos.”

Erros conceituais e lacunas
Para Reinaldo T. Moracci Engelberg, do Mattos Filho, o governo erra ao eleger o Carf como grande vilão do Contencioso Administrativo. “A ‘recuperação fiscal’ apresentada pelo Ministério da Fazenda não deveria olhar para o Carf como um cofre com potencial de arrecadação imediata. O primeiro passo para a redução dos litígios federais seria não apontar o Carf como um problema, mas fortalecer a sua paridade e independência.”

Por sua vez, Maria Danielle Rezende de Toledo, advogada especialista em Direito Tributário Contencioso e sócia da banca Lira Advogados, destacou a ausência de medidas voltadas para discussões aduaneiras. “E há contenciosos de valores elevados no Carf sobre o assunto, como por exemplo interposição fraudulenta e valoração aduaneira.”

Sem culpa
Wesley Rocha, conselheiro do Carf e presidente da Associação dos Conselheiros Representantes dos Contribuintes no Carf (Aconcarf), lembra que não é possível atribuir aos membros indicados pelos contribuintes a culpa pelo fato de o estoque do órgão ter dobrado no último ano.

“Na apresentação feita pelo Ministério da Fazenda, deixou-se de mencionar a paralisação dos auditores da Fazenda e os efeitos da pandemia da Covid no órgão, em que tivemos mais de ano com suspensão dos julgamentos.”

Segundo o Ministério da Fazenda, o estoque de processos administrativos no Carf vem oscilando em torno de cem mil desde 2018. Já o valor do estoque subiu de cerca de R$ 600 bilhões, entre dezembro de 2015 e dezembro de 2019, para mais de R$ 1 trilhão, em outubro do ano passado. 

Rafa Santos é repórter da revista Consultor Jurídico.

Revista Consultor Jurídico, 12 de janeiro de 2023, 20h53

O lucro arbitrado na omissão de receitas e o problema da vagueza

Quanto fios de cabelo alguém precisa ter para ser considerado “calvo”? E quantos quilos, para ser considerado “gordo”? Ou quantos anos, para ser considerado “idoso”? Todos esses termos têm em comum a sua inevitável vagueza, marcada pela dificuldade de determinar a sua aplicação aos chamados “casos-limite”.

Como define Humberto Ávila, em recentíssimo estudo sobre o tema, “o que caracteriza a vagueza é a falta de demarcação dos limites de aplicação do significado ou a falta de precisão ou acurácia dessa aplicação” [1]. Essa indeterminação semântica afeta diretamente a aplicação das regras jurídicas, pois torna igualmente indeterminados os limites do alcance da hipótese de aplicação das regras, diante de casos-limites.

No texto de hoje, analisaremos um problema tão recorrente quanto inexplorado na jurisprudência tributária e que se conecta com a questão da vagueza: diante de uma hipótese de omissão de receitas, quando deve ser arbitrado o lucro? [2] Antes de avançarmos, é preciso esclarecermos um pouco mais como essas discussões se conectam.

Omitir receita nada mais é do que deixar de registrar em sua escrituração ganhos tributáveis no resultado do período, gerando uma redução indevida da base de cálculo dos tributos que se conectam com esses ganhos, como IRPJ, CSLL, PIS e Cofins. A sua verificação pode se dar de duas formas: 1)comprovada, quando a fiscalização colige provas que evidenciam a diferença entre o montante de receitas declaradas e efetivamente ingressadas (p.ex. cotejo da escrituração com pagamentos recebidos por cartão de crédito ou registros de notas fiscais emitidas) ou 2) presumida, com base em previsões legais que estabelecem a presunção de omissão de receita, diante de certos indícios qualificados (p.ex. depósitos bancários de origem não comprovada e saldo credor na conta Caixa).

A conduta de omissão de receitas se conecta com a discussão do Lucro Arbitrado em razão da hipótese de arbitramento prevista no artigo 603, III, do RIR/2018, que determina que se arbitre o lucro quando “a escrituração a que o contribuinte estiver obrigado revelar evidentes indícios de fraudes ou contiver vícios, erros ou deficiências que a tornem imprestável para: i) identificar a efetiva movimentação financeira, inclusive bancária; ou ii) determinar o lucro real“.

A omissão de receitas, tanto presumida como comprovada, é, na melhor das hipóteses, indicativo de vícios, erros ou deficiências na escrituração, quando não se presta a demonstrar fraudes realizadas pelos contribuintes. Entretanto, não são quaisquer erros ou vícios que justificam o arbitramento, mas apenas aqueles que tornem imprestável a escrituração do contribuinte, para os fins estabelecidos em lei.

Ora, a partir de quantos vícios ou erros uma escrituração se torna imprestável? Ou pior, que tipos de vício a tornam imprestável? Lidar com a vagueza dessa qualificação é essencial para que se realize e controle o lançamento tributário, diante da obrigatoriedade do arbitramento, diante das hipóteses legais.

Explica-se: identificada a ocorrência de uma das hipóteses de arbitramento, não há qualquer margem de discricionariedade da fiscalização quanto a escolha de base de cálculo. Pelo contrário, o auditor-fiscal é obrigado realizar o arbitramento, uma vez verificado que se trata de uma hipótese legal para tanto, sob pena de nulidade, por vício material, do lançamento tributário realizado. O Carf tem inúmeros precedentes reconhecendo que “o artigo 47 da Lei nº 8.981, de 1995, ao usar a expressão de que o lucro será arbitrado, nos casos que especifica, não confere faculdade à autoridade fiscal, mas sim comando impositivo quanto à forma de tributação” [3]. Afirma-se, nessa linha, que o arbitramento “não se trata de uma faculdade, mas de efetiva imposição legal” [4] que deve ser observada no lançamento.

Inclusive, a vagueza na aplicação dessa hipótese de arbitramento afeta o crédito tributário em duas oportunidades: a primeira na realização do lançamento, e a segunda na sua revisão, pelos órgãos de contencioso administrativo. Essa constatação, apesar de trivial, é crucial para compreender a relevância dessa questão, pois basta haver uma discrepância de critério entre a administração tributária e o Carf na determinação do que seria “imprestável”, para que o auto de infração seja anulado.

A respeito da apuração do Lucro Arbitrado nas hipóteses de omissão de receita, não identificamos qualquer incompatibilidade da aplicação desse regime de apuração a partir tanto das omissões presumidas quanto das comprovadas. Perante o Direito, a receita apurada por meio da presunção legal é tão válida quanto aquela levantada por meio de provas diretas, e ambas são passíveis de contraprova do contribuinte. Dessa forma, uma vez fixada a receita bruta, ainda que com o cômputo das receitas omitidas, resta afastada peremptoriamente a possibilidade de se aplicar os parâmetros de cálculo do Lucro Arbitrado estabelecidos no artigo 608 do RIR/2018 [5]

Por outro lado, tampouco nos parece que o simples fato de haver receita omitida, por si só, permitiria inferir que a fiscalização deveria se socorrer necessariamente do Lucro Arbitrado. Para essa conclusão, deve-se passar à análise de um outro ponto: a existência ou efetivação do registro de custos e despesas relacionados à receita omitida e escriturada.

Se na escrituração contábil do contribuinte já se encontram registrados custos e despesas, em regra, não havendo nada que justifique a sua desconsideração, deve-se presumir que eles seriam efetivos, pois a omissão ocorre no registro da receita. Entretanto, o simples fato de haver gastos escriturados não significa que basta confrontá-los com a receita omitida e apurar as bases de cálculo. Aqui, a fiscalização deve verificar se os custos e despesas seriam razoavelmente correlacionáveis à essa receita objeto da omissão.

As situações mais comuns são as seguintes: 1) ausência total de escrituração de despesas/custos e receitas (omissão total de receitas e gastos); 2)escrituração de gastos correlacionados estritamente à receita declarada (omissão parcial de receitas e gastos[6]; e 3) escrituração de todos os gastos, e omissão de parte das receitas (omissão parcial das receitas).

Essa verificação da correlação entre receitas omitidas e gastos escriturados é mais factível de ser realizada nas hipóteses de omissão comprovada de receitas, pois é possível se ter uma dimensão real das operações realizadas, mas não declaradas, por meio de notas fiscais emitidas, operações com cartão, outros registros paralelos, controles de Estoque etc. Nesses casos, é possível a fiscalização verificar se os custos registrados (p.ex., de mercadorias vendidas) correspondem às receitas apuradas.

Caso a fiscalização verifique se tratar de uma omissão parcial apenas das receitas, não haveria óbice à apuração do Lucro Real. Entretanto, em se tratando das hipóteses de omissão total ou parcial de receitas e gastos, a fiscalização deveria, antes de partir para o arbitramento, intimar o contribuinte à regularização da sua escrituração, em prazo hábil, considerando a própria subsidiariedade desse método de apuração do lucro [7].

Intimado o contribuinte, duas situações podem ocorrer: 1) o contribuinte atende à fiscalização no prazo, retificando a sua escrituração, razão pela qual poderia ser apurado o Lucro Real; ou 2) ele não atende à fiscalização, autorizando-se ao arbitramento dos lucros, a partir da receita omitida, e desconsiderando a parcela de gastos escriturados.

Por outro lado, nas hipóteses de omissão por presunção de receitas, esse confronto com os gastos é mais problemático, pois o que há é a receita apurada a partir de elementos indiciários, que não permitem essa correlação direta com os gastos total ou parcialmente escriturados. Nesses casos, como dificilmente será possível concluir que a omissão se deu apenas nas receitas, parece-nos que a fiscalização deveria partir diretamente à intimação para correção da escrituração e, a depender do atendimento pelo contribuinte, apurar o Lucro Real ou Arbitrado.

Caso o contribuinte, após intimação para comprovar os seus gastos, não atender essa determinação e por isso sofrer o arbitramento do lucro, não pode posteriormente buscar na esfera administrativa comprovar exaustivamente esses elementos, buscando uma requalificação da base de cálculo para o Lucro Real — como estabelecido pela Súmula Carf nº 59 [8]. De outro giro, em atendendo a intimação, ou sendo a informação escriturada suficiente para a apuração do Lucro Real, não há qualquer óbice de administrativamente demonstrar novos custos e despesas não escriturados e verificados pela fiscalização, em um contexto de revisão da base de cálculo apurado pelo Fisco.

Além desse ângulo da correlação entre os gastos registrados e as receitas apuradas, usualmente utilizado para verificar a imprestabilidade da escrituração, há um segundo ângulo de análise baseado nas diferenças quantitativas entre as receitas declaradas e as omitidas.

Nas hipóteses de omissão parcial de receitas e gastos, e principalmente em razão da ausência de intimação da fiscalização para complementação dos registros contábeis e fiscais, costuma-se verificar o grau de discrepância entre a receita omitida e a declarada, para determinar se se trata de um caso de imprestabilidade da escrituração. 

Nesses casos, parece haver um casuísmo bastante elevado na determinação de qual grau de diferença seria suficiente a justificar que o lucro deveria ser arbitrado, sob pena de se impor uma margem de lucro irreal ao contribuinte. Vejamos alguns exemplos:

i) Ac. nº 1401-001.773 [9]: apurou-se que uma diferença de 65% entre a receita declarada e a receita omitida, seria uma margem de lucro impossível de ser alcançada, justificando o arbitramento;

ii) Ac. nº 9101-003.136 [10]: apurou-se que as receitas declaradas correspondiam a 3,2% das receitas omitidas; reconhecendo a necessidade do arbitramento;

iii) Ac. nº 1301-001.817 [11]: apurou-se que as receitas omitidas correspondiam a 65% das receitas declaradas, decidindo pela obrigatoriedade do Lucro Arbitrado;

iv) Ac. nº 1402-00.456 [12]: manteve-se o arbitramento do lucro pois a receita declarada correspondia a aproximadamente 10% da receita omitida, apurada a partir de depósitos bancários;

v) Ac. nº 1202-001.065 [13]: cancelou-se o lançamento com base no Lucro Real pois a receita omitida era 32% superior à receita declarada, evidenciado a imprestabilidade da escrituração;

vi) Ac. nº 1201-000.621 [14]: a receita omitida correspondia a 76% da receita declarada, justificando o arbitramento;

Recentemente, a CSRF, por meio do Ac. nº 9101-006.018[15], ao analisar a aplicação da presunção do artigo 42 da Lei nº 9.430/1996, aduziu que “a jurisprudência, em casos de absurda discrepância entre o que foi omitido e o que foi declarado/escriturado, vem flexibilizando a manutenção do regime pelo Lucro Real, considerando aplicável o arbitramento“.

Mais do que tentar estabelecer uma média “numérica”, um exame qualitativo dos casos permite inferir que na maioria deles, ao se apurar essa diferença quantitativa entre receita omitida e declarada, analisa-se se a adição da primeira à segunda não geraria margens de lucro irreais para as atividades das pessoas jurídicas fiscalizadas, até mesmo porque não se pode perder de vista que o tributo não é instrumento de sanção ao contribuinte que não mantém a regularidade de suas obrigações acessórias.

Considerando essa preocupação, o problema se torna como se chegar a uma margem de lucro parâmetro, para fins de cotejo com o caso concreto?

Há casos em que as margens são evidentemente irreais, onde não há o problema da vagueza em relação à imprestabilidade, pela “absurda discrepância”. Mas há situações em que essas margens entram em um campo de indeterminação prática que parece apontar para dois caminhos possíveis: 1) a utilização de provas apresentadas pela própria fiscalização ou pelo contribuinte, a respeito da margem de lucro média do setor; ou 2) adotar como parâmetro as margens presumidas pela própria legislação do imposto de renda, na apuração do Lucro Arbitrado, com fulcro no artigo 605 do RIR/2018.

Como se viu, a hipótese de arbitramento do lucro sob análise é, inescapavelmente, vaga. Não há como se determinar aprioristicamente o que seria uma escrituração imprestável, nos termos do artigo 605, III do RIR/2018. Isso não quer dizer que não se possa pensar em parâmetros para análise dos casos, ou mesmo de procedimentos no âmbito das fiscalizações, voltadas a contornar essa dificuldade de definição sem que se caia em um casuísmo jurisprudencial. 

A observância dos parâmetros propostos acima nos parece trazer uma maior operacionalidade prática à apuração dos tributos em hipóteses de omissão de receitas, com um ganho de segurança para os contribuintes e para a fiscalização.

*Retomando os trabalhos da Direto do Carf, todos os colunistas desejam um feliz 2023 aos nossos leitores, esperando que sigam acompanhando e consultando nossas considerações sobre a jurisprudência do Carf nesse ano vindouro.


[1] ÁVILA, Humberto. Teoria da Indeterminação no Direito. São Paulo: Malheiros, 2022, p.37-38.

[2] O tema foi explorado por mim e pelo colunista Fernando Brasil de Oliveira Pinto no artigo “O Lucro Arbitrado nas Hipóteses de Omissão de Receitas” (In: Marcelo Magalhães Peixoto; Alexandre Evaristo Pinto. (Org.). 100 anos do Imposto sobre a Renda no Brasil. 1ed.São Paulo: MP Editora, 2022, v. 1, p. 321-338). As reflexões trazidas aqui partem das considerações lá propostas para avançar na sistematização do tema.

[3] Ac. nº 1402-000.728, Rel. Moisés Giacomelli, j. 29/09/2011.

[4] Ac. nº 1201-004.787, rel. Efigênio de Freitas, j. 14/4/2021. No mesmo sentido, Ac. nº 1302-004.548, rel. Paulo Henrique Silva Figueiredo, j. 18/6/2020.

[5] Art. 608. O lucro arbitrado, quando não conhecida a receita bruta, será determinado por meio de procedimento de ofício, com a utilização de uma das seguintes alternativas de cálculo (…)

[6] Nesse caso, pode haver a escrituração de parte dos gastos relacionados à receita omitida.

[7] Nesse sentido, Ac. 1402-001.606, rel. Fernando Brasil de O. Pinto, j. 12/3/2014. No mesmo sentido, acórdãos nº 1302-002.915 e 9101-003.644.

[8] “A tributação do lucro na sistemática do lucro arbitrado não é invalidada pela apresentação, posterior ao lançamento, de livros e documentos imprescindíveis para a apuração do crédito tributário que, após regular intimação, deixaram de ser exibidos durante o procedimento fiscal”.

[9] Redator Guilherme Adolfo dos Santos Mendes, j. 26/1/2017.

[10] Rel. Gerson Guerra, j. 03/11/2017.

[11] Rel. Wilson Fernandes Guimarães, j. 24/3/2015.

[12] Rel. Moisés Giacomelli, j. 25/2/2011.

[13] Rel. Orlando José Gonçalves Bueno, j. 7/11/2013.

[14] Rel. Guilherme Adolfo dos Santos Mendes, j. 24/11/2011.

[15] Rel. Luis Henrique Marotti Toselli, j. 28/3/2022.

Carlos Augusto Daniel Neto é sócio do escritório Daniel & Diniz Advocacia Tributária, em estágio pós-doutoral em Direito Tributário na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), doutor em Direito Tributário pela Universidade de São Paulo (USP), mestre em Direito Tributário pela PUC-SP, ex-conselheiro titular da 1ª e 3ª Seções do Carf, pesquisador do NEF/FGV e do Nupem/IBDT e professor permanente do mestrado profissional do Cedes e de diversos cursos de pós-graduação.

Revista Consultor Jurídico, 11 de janeiro de 2023, 9h28

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