Questão processual ameaça tese do STJ sobre base de cálculo do ITBI

Fixada em março sob o rito dos recursos repetitivos, a tese do Superior Tribunal de Justiça que estabeleceu uma base de cálculo do Imposto de Transmissão de Bens Imóveis (ITBI) mais favorável aos contribuintes corre o risco de ser derrubada pelo Supremo Tribunal Federal por questões processuais.

Em despacho do último dia 21, o vice-presidente do STJ, ministro Og Fernandes, admitiu recurso extraordinário impetrado pelo município de São Paulo e remeteu os autos ao STF para análise da existência ou não de matéria constitucional e, eventualmente, de repercussão geral.

A decisão levou em conta um ofício encaminhado pelo STF recomendando a todos os tribunais que, em recursos representativos de controvérsia — aqueles escolhidos entre vários outros idênticos para a fixação de uma tese jurídica —, ainda que se vislumbre questão infraconstitucional, o recurso especial seja admitido.

Segundo a posição da 1ª Seção do STJ, a base de cálculo do ITBI é o valor do imóvel transmitido em condições normais de mercado, o que pode ser presumido pelo valor da transação declarado pelo contribuinte.

Essa fórmula de cálculo é distinta da praticada pelas prefeituras, que tomam como referencial a base de cálculo do IPTU. Assim, abre-se a possibilidade de os municípios terem de devolver valores pagos a mais no ITBI, graças à diferença entre esses dois critérios.

O tema foi originalmente julgado pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, em incidente de resolução de demanda repetitiva (IRDR). A corte paulista havia entendido que a base de cálculo do ITBI poderia ser o valor do negócio ou o valor venal para fins de IPTU — o que fosse maior.

Questão processual
Para o município de São Paulo, toda a tramitação do tema ofendeu o devido processo legal, o que impediria o STJ de apreciar o assunto em recurso especial, conforme previsto no artigo 105, inciso III, da Constituição Federal.

A questão se baseia no procedimento escolhido pelo TJ-SP para julgar o IRDR. O tribunal elegeu três recursos para o julgamento do IRDR pelo 7º Grupo de Direito Público. Antes disso, no entanto, a 14ª Câmara de Direito Público concluiu o julgamento da apelação. Assim, quando o IRDR foi julgado, não havia caso concreto a ser resolvido.

Na petição ao STF, o município apontou que a prática ofendeu o artigo 976 do Código de Processo Civil, que prevê como requisito de admissibilidade do IRDR a existência de “causa pendente no tribunal”. O município defende que o incidente seja extinto sem julgamento do mérito.

A fixação de teses em abstrato, sem caso concreto, até é admitida pelo STJ. Seria o caso, por exemplo, de as partes desistirem de um recurso afetado como representativo da controvérsia. Mesmo assim, nada impediria o TJ-SP de firmar a tese para impactar os demais processos idênticos.

jurisprudência do STJ, no entanto, indica que isso impediria a impetração de recurso especial, pois estaria ausente requisito constitucional de cabimento de “causa decidida”.

Quando julgou o recurso especial, a 1ª Seção do STJ analisou esse assunto e concluiu pela admissibilidade. Relator, o ministro Gurgel de Faria alegou que, julgada a causa pelo TJ-SP, está preenchido o requisito constitucional para análise em recurso especial.

“Eventual equívoco procedimental cometido pela corte estadual não pode prejudicar o interesse de parte, no caso, a Fazenda Pública municipal, de rever a tese jurídica firmada no julgamento do IRDR, que, como cediço, orienta, com caráter vinculativo, o julgamento de feitos idênticos”, disse ele.

Limite do recurso
No recurso extraordinário, o município de São Paulo também caracterizou a tese fixada pelo STJ como ultra petita — ou seja, extrapolou os limites fixados pelo acórdão e tratados na petição do recurso especial — e pediu para que fosse reconhecida a legalidade do valor venal de referência como base de cálculo do tributo.

O STJ, por sua vez, decidiu que o valor venal não pode ser a referência. Ou seja, prejudicou ainda mais o município recorrente, apesar de não haver recurso do contribuinte.

“A prevalecer a tese fixada no  acórdão recorrido, estar-se-á dando abertura, com o respaldo do Poder Judiciário, para que o contribuinte recolha o ITBI com base no preço declarado da transação, mesmo quando inferior ao valor venal previsto em lei para fins do IPTU, que é sabidamente defasado”, diz a petição do recurso extraordinário.

ITBI no divã
Essa problemática foi abordada em artigo em três partes assinado pelo assessor jurídico da Associação Brasileira das Secretarias de Finanças das Capitais Brasileiras (Abrasf), Ricardo Almeida Ribeiro da Silva, e publicado pela revista eletrônica Consultor Jurídico (clique aquiaqui e aqui para ler).

A cobrança do ITBI também gerou grande discussão judicial recentemente, a partir de um julgamento do STF que indicou que o fato gerador só ocorre após a transferência efetiva do imóvel, mediante o registro em cartório.

Como mostrou a ConJur, a tese colocou os cartórios de notas em uma sinuca de bico e ligou o alerta de arrecadação para os municípios, que continuaram contestando a maneira como o caso foi julgado e a tese, firmada. Em agosto, o Supremo reconheceu o equívoco e decidiu reanalisar o tema da repercussão geral.

No caso da base de cálculo do ITBI, segundo a advogada Anali Caroline Castro Sanches Menna Barret, do VBD Advogados, o STF admite a possibilidade de revisão ao usar de hipótese “não prevista nem no CPC e nem na Constituição, inclusive reduzindo a força dos julgamentos do STJ, que serão sempre revistos”.

Clique aqui para ler a decisão que admitiu o RE
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REsp 1.937.821

Danilo Vital é correspondente da revista Consultor Jurídico em Brasília.

Revista Consultor Jurídico, 28 de outubro de 2022, 8h47

ITBI e IPTU: o STJ e os impostos municipais que incidem sobre imóveis (parte 1)

Dois dos três principais tributos municipais têm incidência sobre imóveis: o Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU) e o Imposto sobre a Transmissão de Bens Imóveis (ITBI). Juntamente com o Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza (ISSQN, mais conhecido apenas como ISS), eles compõem grande parte das receitas próprias nos mais de 5.500 municípios brasileiros.

A previsão desses tributos está no artigo 156 da Constituição, mas, devido ao regulamento infraconstitucional, muitas controvérsias jurídicas envolvendo ITBI e IPTU são resolvidas pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ). A jurisprudência do STJ sobre esses tributos é o tema da reportagem especial em duas partes que começa a ser divulgada neste domingo. 

Este primeiro texto apresenta julgados da corte sobre o ITBI. O imposto é antigo na literatura jurídica nacional: remonta a 1809, ainda na época do Império, com o chamado “imposto da sisa”. Desde 1891, possui previsão constitucional. É regulado, atualmente, pelos artigos 35 a 42 do Código Tributário Nacional (CTN).

Detalhe importante: as regras do CTN são da época em que o ITBI era de competência estadual, portanto, é preciso analisá-las em conjunto com o regramento constitucional vigente. Uma das principais controvérsias a respeito do tributo é a base de cálculo, já que esse parâmetro influencia o valor a ser pago.

Qual é o valor do imóvel?

Em fevereiro deste ano, a Primeira Seção estabeleceu importante definição a respeito do assunto ao julgar o Tema 1.113 dos recursos repetitivos (REsp 1.937.821). Para o colegiado, a base de cálculo do ITBI deve considerar o valor de mercado do imóvel individualmente determinado, afetado por fatores específicos como o estado de conservação.

A seção de direito público fixou três teses:

1) A base de cálculo do ITBI é o valor do imóvel transmitido em condições normais de mercado, não estando vinculada à base de cálculo do IPTU, que nem sequer pode ser utilizada como piso de tributação; 

2) O valor da transação declarado pelo contribuinte goza da presunção de que é condizente com o valor de mercado, que somente pode ser afastada pelo fisco mediante a regular instauração de processo administrativo próprio (artigo 148 do CTN); 

3) O município não pode arbitrar previamente a base de cálculo do ITBI com respaldo em valor de referência por ele estabelecido de forma unilateral.

De acordo com o relator do recurso, ministro Gurgel de Faria, a expressão “valor venal” contida no CTN deve ser entendida como o valor considerado em condições normais de mercado para as compras e vendas.

Embora seja possível aferir um valor médio, a avaliação de cada imóvel possui especificidades, com oscilações positivas e negativas, que devem ser levadas em conta – lógica diferente, portanto, da estimativa feita para fins de IPTU.

“Cumpre salientar que a planta genérica de valores é estabelecida por lei em sentido estrito, para fins exclusivos de apuração da base de cálculo do IPTU, não podendo ser utilizada como critério objetivo para estabelecer a base de cálculo de outro tributo, o qual, pelo princípio da estrita legalidade, depende de lei específica”, complementou o relator.

Fato gerador é a efetiva transferência do imóvel

No AREsp 1.760.009, o STJ reafirmou o entendimento adotado pela corte após decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) no Tema 1.124 da repercussão geral. Segundo esse entendimento, o fato gerador do ITBI somente ocorre com a efetiva transferência da propriedade imobiliária, que se dá mediante o registro no cartório de imóveis.

No julgamento do recurso, em abril de 2022, a Segunda Turma do STJ acrescentou que, mesmo em caso de cisão de empresa com transmissão de imóvel do seu patrimônio, o fato gerador do ITBI é o registro da transferência do bem no cartório.

Nessa demanda, após a cisão de uma empresa em outras quatro, com a transferência de duas fazendas para uma delas, houve o recolhimento de ITBI para o município paulista de São Manuel, em 2012. Dois anos após o pagamento, o georreferenciamento na região constatou que as fazendas pertenciam a outro município do mesmo estado, Igaraçu do Tietê. Após nova transferência de propriedade, valores de ITBI foram pagos a este segundo município, em 2015.

A empresa requereu judicialmente a devolução de valores, alegando que o pagamento feito em 2012 ao município de São Manuel não era devido. O STJ deu razão à empresa, ao concluir que, de fato, a transferência só foi efetivada com o registro do imóvel em 2015, após o processo de georreferenciamento.

Nas palavras do relator, ministro Herman Benjamin: “O STJ entende que, mesmo em caso de cisão, o fato gerador do ITBI é o registro no ofício competente da transmissão da propriedade do bem imóvel, em conformidade com a lei civil, o que, no caso, ocorreu em 2015. Logo, não há como considerar como fato gerador da referida exação a data de constituição das empresas pelo registro de contrato social na Junta Comercial, ocorrido em 2012”.

O relator lembrou que, mesmo antes da decisão do STF, o STJ já havia adotado esse entendimento no AREsp 215.273, de 2012, e em julgados de 2007, como o REsp 771.781 e o REsp 764.808. “O fato gerador do ITBI é o registro imobiliário da transmissão da propriedade do bem imóvel. A partir daí, portanto, é que incide o tributo em comento”, declarou Herman Benjamin no AREsp 215.273.

Devolução do imposto no negócio anulado

O STJ entende que, no caso de anulação da venda do imóvel, o valor pago a título de ITBI é passível de restituição. A discussão ocorreu no EREsp 1.493.162, relatado na Primeira Seção pelo ministro Napoleão Nunes Maia Filho, hoje aposentado.

O negócio que ensejou a transferência de propriedade do imóvel e, por conseguinte, a tributação pelo ITBI não se concretizou em caráter definitivo devido à superveniente declaração de nulidade por sentença judicial transitada em julgado.

O fisco questionou decisão da Segunda Turma do STJ alegando que, mesmo na hipótese de anulação posterior do negócio, o imposto seria devido, e invocou como paradigma um acórdão divergente da Primeira Turma (REsp 1.175.640). Por unanimidade, a seção corroborou o acórdão da Segunda Turma e manteve a condenação imposta ao fisco de devolver o valor do ITBI.

De acordo com o relator, não tendo havido a transmissão da propriedade, já que era nulo o negócio de compra e venda, não há fato gerador do imposto, nos termos do artigo 156, inciso II, da Constituição, e do artigo 35, incisos I, II e III, do CTN, “sendo devida a restituição do correspondente valor recolhido pelo contribuinte”.

Valor de venda ou valor de arrematação?

A transferência de propriedade tributada pelo ITBI pode envolver imóvel arrematado em leilão judicial, o que trouxe para o STJ a discussão sobre a base de cálculo em tais hipóteses. No REsp 1.188.655, em 2010, a Primeira Turma debateu se a base de cálculo do imposto seria o valor da arrematação ou o valor de venda do imóvel – uma diferença significativa, tendo em vista que imóveis leiloados podem ser arrematados por preços bem inferiores aos de mercado.

O relator, ministro Luiz Fux (hoje no STF), destacou que, embora continuassem a chegar ao STJ recursos contra decisões que aceitavam o valor venal como base de cálculo, o entendimento do tribunal, desde 1990, apontava para o valor da arrematação judicial.

O ministro citou dois precedentes nos quais o assunto foi debatido com profundidade, o REsp 863.893, relatado pelo ministro Francisco Falcão em 2006, e o REsp 2.525, relatado pelo ministro Armando Rollemberg (falecido) em 1990. No primeiro desses dois casos, a dúvida sobre a base de cálculo estava entre o valor da arrematação e o valor da avaliação judicial prévia ao leilão.

“No caso concreto – de arrematação judicial do bem imóvel –, o tribunal a quo manifestou-se no sentido de que a base de cálculo do ITBI é o valor da avaliação judicial. Nos termos da jurisprudência supracitada, todavia, tal posicionamento não deve prevalecer, porquanto não há que se falar em registro da transmissão do imóvel quando da avaliação judicial”, explicou o ministro ao citar casos mais antigos, como o REsp 2.525 – o primeiro sobre o assunto.

Neste, o ministro Armando Rollemberg ratificou as razões apresentadas pelo Ministério Público Federal (MPF), segundo as quais a arrematação é uma forma de venda que se processa judicialmente e permite a aquisição de imóveis por preço inferior ao da avaliação. O relator afirmou que o valor atribuído não é o valor alcançado na venda, e não há lógica jurídica que permita a prevalência do valor de avaliação para servir como base de cálculo do tributo.

Desde esse precedente, o STJ decide no sentido de considerar o valor da arrematação como base de cálculo do ITBI – entendimento confirmado, mais recentemente, no AgInt no AREsp 2.050.401, no AREsp 1.542.296 e no AREsp 1.425.219.

Ônus da prova para afastar imunidade tributária

Ao analisar o AREsp 444.193, a Segunda Turma ratificou o entendimento do tribunal segundo o qual, havendo dúvida sobre a real destinação do imóvel, para fins de aplicação da imunidade tributária, cabe à Fazenda Pública apresentar prova de que seu uso estaria desvinculado da finalidade religiosa.

No caso julgado, o fisco municipal questionou se alguns terrenos seriam mesmo para templos adventistas, buscando a cobrança do ITBI na transação. Isso ocorreu após a igreja adquirir imóveis no município e pleitear administrativamente a imunidade tributária.

Em primeira instância, o pedido da igreja foi julgado improcedente, ante a ausência de provas de utilização dos terrenos para a construção de templos. O tribunal estadual reformou a sentença, dando razão à instituição religiosa.

No STJ, o município questionou a decisão, sustentando que não havia provas do uso dos terrenos para a finalidade religiosa, razão pela qual seria devido o recolhimento de ITBI.

O relator, ministro Mauro Campbell Marques, lembrou que havia presunção relativa de veracidade nas declarações da igreja. Assim, segundo ele, caberia à Fazenda Pública, nos termos do artigo 333, inciso II, do Código de Processo Civil, apresentar prova de que os terrenos estariam desvinculados da destinação institucional.

O ministro citou precedentes do tribunal no mesmo sentido. Um deles, de 2007 (Ag 849.285), tratou de controvérsia similar com entidades que gozam de imunidade tributária, porém relacionada ao IPTU. Em qualquer caso, para o STJ, existindo alguma contestação sobre a utilização de imóveis por instituição beneficiada pela imunidade tributária, cabe ao fisco competente produzir a prova.

Alienação onerosa para coproprietário

No REsp 722.752, a Segunda Turma discutiu o caso de quatro coproprietários de seis imóveis urbanos, que extinguiram parcialmente a copropriedade para que cada um deles passasse a ser o único titular de um imóvel. Nessa situação, como ficaria o ITBI?

No recurso relatado pelo ministro Herman Benjamin, o colegiado deu razão ao fisco municipal, que pedia o recolhimento do tributo. Ele comentou que, ao contrário do que entendeu o tribunal estadual, não houve a mera dissolução do condomínio, já que cada coproprietário adquiriu dos demais os 75% do imóvel que não lhe pertenciam.

“O ITBI deve incidir sobre a transmissão desses 75%. Isso porque a aquisição dessa parcela se deu por alienação onerosa: compra (pagamento em dinheiro) ou permuta (cessão de parcela de outros imóveis)”, explicou.

De acordo com o ministro, em razão do reconhecimento de que cada imóvel deve ser tributado de forma autônoma, o STF não permitiu que os municípios considerassem como uma universalidade todos os imóveis de um contribuinte, para fins de progressividade das alíquotas. 

“Ora, se o município não pode considerar o conjunto de imóveis uma universalidade, para fins de cobrança do IPTU, não teria sentido admitir que o contribuinte possa fazê-lo, com o intuito de pagar menos ITBI”, disse o relator.

Esta notícia refere-se ao(s) processo(s): REsp 1937821AREsp 1760009AREsp 215273REsp 771781REsp 764808EREsp 1493162REsp 1175640REsp 1188655REsp 863893REsp 2525AREsp 2050401AREsp 1542296AREsp 1425219AREsp 444193Ag 849285REsp 722752

Fonte: Notícias do STJ

ARTIGO DA SEMANA – Base de cálculo do ITBI: solução para o problema é o lançamento por homologação

João Luís de Souza Pereira. Advogado. Mestre em Direito. Professor convidado da Pós-graduação da FGV Direito Rio. Professor convidado do IAG/PUC-Rio

De acordo com o artigo 38, do CTN, a base de cálculo do ITBI é o valor venal dos bens ou direitos transmitidos.

A legislação dos municípios detalha o conceito de valor venal. O art. 14, parágrafo único, da Lei Municipal do Rio de Janeiro nº 1.364/88, por exemplo, afirma que Entende-se por valor venal o valor corrente de mercado do bem ou direito.

Não raro, os municípios adotam, para efeito de ITBI, o mesmo valor venal utilizado como base de cálculo do IPTU, daí resultado grave problema.

O Superior Tribunal de Justiça, através do Tema 1.113 dos Recursos Repetitivos, analisando as controvérsias acerca da base de cálculo do imposto, definiu que a) a base de cálculo do ITBI é o valor do imóvel transmitido em condições normais de mercado, não estando vinculada à base de cálculo do IPTU, que nem sequer pode ser utilizada como piso de tributação; b) o valor da transação declarado pelo contribuinte goza da presunção de que é condizente com o valor de mercado, que somente pode ser afastada pelo fisco mediante a regular instauração de processo administrativo próprio (art. 148 do CTN); c) o Município não pode arbitrar previamente a base de cálculo do ITBI com respaldo em valor de referência por ele estabelecido unilateralmente.

Portanto, para o Tribunal da Cidadania a base de cálculo do ITBI é o valor da operação declarado pelas partes, cabendo, obviamente, avaliação contraditória pelo município mediante regular processo administrativo.

Todavia, em razão de tratar-se de imposto submetido ao lançamento por declaração, a orientação decorrente do Tema 1.113 não tem resolvido o problema.

Nos termos do art. 13, da Lei nº 1.364/88, “O Lançamento do imposto será efetuado na repartição fazendária competente”. Embora possa parecer que o ITBI no Rio de Janeiro será lançado de ofício, a verdade é que a emissão da guia de recolhimento depende de prévias informações prestadas pelo contribuinte ou por terceiros, daí não havendo dúvida de que se trata de imposto sujeito ao lançamento por declaração.

À luz do que restou pacificado no Tema 1.113, uma vez recebidas as informações/declarações do interessado, cabe ao fisco ao municipal tomar uma das seguintes providências: (a) emitir a guia do ITBI calculando o imposto pelo exato valor da base de cálculo informada ou (b) dar início a procedimento de ofício, assegurando ampla defesa e contraditório, com vistas a arbitrar a base de cálculo do imposto.

Porém, para os municípios nada mudou. O valor declarado pelo interessado para efeito de cálculo do ITBI continua sendo ignorado pela municipalidades e as guias do imposto continuam a ser emitidas por valor diverso daquele objeto da declaração.

É bem verdade que, não concordando com a base de cálculo adotada pelo município por ocasião da emissão da guia de pagamento do ITBI, o contribuinte pode apresentar impugnação com o objetivo de ser revista da base de cálculo.

Mas o problema é que a impugnação, que suspende a exigibilidade do ITBI (art. 151, III, do CTN) e por isso mesmo viabiliza a expedição de certidão de regularidade fiscal (art. 206, do CTN), não permite que o contribuinte obtenha o registro da escritura pública junto ao Cartório competente. 

Isto porque os oficiais de registro, numa interpretação equivocada do artigo 289[1] da Lei de Registros Públicos (Lei nº 6.015/73), entendem que a “rigorosa fiscalização do pagamento dos impostos devidos por força dos atos que lhes forem apresentados em razão do ofício” não lhes permite realizar o registro mediante a prova de que o lançamento do ITBI está sendo objeto de tempestiva impugnação.

Os oficiais de registro dão a mesma interpretação, restritiva e equivocada, ao art. 30, XI, da Lei nº 8.935/94: 

Art. 30. São deveres dos notários e dos oficiais de registro:

XI – fiscalizar o recolhimento dos impostos incidentes sobre os atos que devem praticar;

Para piorar, o caput do art. 20[2], da Lei nº 1.364/88, contrariando jurisprudência histórica do STF, estabelece como regra o pagamento antecipado do ITBI e o arts. 23, I[3] e 24[4], impõem solidariedade do tabelião, escrivão e demais serventuários pelo pagamento do imposto e imposição de multa de 50%.

Consequentemente, o comprador que tenha a intenção e o justo direito de ver a escritura rapidamente registrada não tem a apresentação de impugnação do ITBI como uma opção.

Prevalecendo a orientação do Tema 1.113 e as equivocadas interpretações dadas pelos oficiais de registro às leis federais, a solução é o ingresso no Judiciário, submetendo o contribuinte ao pagamento de Taxa Judiciária, Custas Judiciais e, eventualmente, honorários periciais.

No entanto, há solução muito mais simples que depende exclusivamente do legislador municipal e do Poder Executivo: basta que a Lei nº 1.364/88 passe a dispor que o imposto será submetido ao lançamento por homologação e, ato contínuo, que a Secretaria Municipal de Fazenda adote as providências necessárias para que a guia de pagamento do ITBI seja preenchida e paga pelo próprio contribuinte/interessado, por sua conta e risco, sempre ressalvada a possibilidade de arbitramento da base de cálculo pelo Município, mas após o pagamento e sempre respeitados a ampla defesa e o contraditório.


[1] Art. 289. No exercício de suas funções, cumpre aos oficiais de registro fazer rigorosa fiscalização do pagamento dos impostos devidos por força dos atos que lhes forem apresentados em razão do ofício. 

[2] Art. 20 – O imposto será pago antes da realização do ato ou da lavratura do instrumento, público ou particular, que configurar a obrigação de pagá-lo, exceto nos seguintes casos:

[3] Art. 23 – O descumprimento das obrigações previstas nesta lei sujeita o infrator às seguintes penalidades:

I – de 50% (cinqüenta por cento) do valor do imposto devido, na prática de qualquer ato relativo à transmissão de bens ou de direitos sobre imóvel, sem o pagamento do imposto nos prazos legais;

[4] Art. 24 – Os tabeliões, escrivães e demais serventuários de ofício respondem solidariamente com o contribuinte pelos tributos devidos sobre os atos praticados por eles e perante eles, em razão de seu ofício, quando seja impossível exigir do contribuinte o cumprimento da obrigação principal.

O sistema tributário melhorou após 34 anos da Constituição de 1988?

Dois assuntos se destacarão na semana que hoje se inicia: o resultado do primeiro turno das eleições, que infelizmente não será analisado neste texto, pois escrito antes do resultado, e a comemoração, no dia 5 de outubro, dos 34 anos de nossa Constituição, que comento sob o prisma tributário.

Na versão original do capítulo tributário de nossa Constituição, a União tinha competência para arrecadar impostos sobre (1) importação, (2) exportação, (3) renda, (4) IPI, (5) IOF, (6) ITR e (7) Imposto sobre Grandes Fortunas (IGF). Também tinha competência para instituir taxas, contribuições de melhoria e empréstimos compulsórios, além de contribuições: sociais, de intervenção e no interesse de categorias profissionais.

Após 34 anos, constata-se que no âmbito da competência para a cobrança dos impostos pouco foi alterado, exceto: (a) a possibilidade de cobrança do ITR, que passou a ser permitia aos municípios (artigo 153, §4º, CF – EC 42/03), e (b) o IGF, que jamais foi implementado, a despeito de incontáveis projetos de lei em trâmite pelo Congresso.

Ainda no âmbito da União, não há nenhum registro relevante sobre contribuições de melhoria durante esse período, bem como sobre taxas, embora essas tenham sido cobradas em situações específicas, sem grande vulto. Houve uma experiência horrível durante o confisco do Plano Collor, que vários autores caracterizaram como empréstimo compulsório.

O problema na esfera federal ocorreu com as contribuições, que se multiplicaram e se transformaram em uma fonte de arrecadação originalmente impensável. Foram estabelecidas Cides (Contribuições de Intervenção no Domínio Econômico), com múltiplas incidências setoriais; e as contribuições sociais foram amplamente disseminadas, destacando-se o vetusto Pis, ao qual foi aliada a Cofins (sucessora do anterior Finsocial). Originalmente tinham alíquotas baixas, que foram paulatinamente aumentadas, até que foram criadas as incidências não-cumulativas, com alíquotas escorchantes e sem nenhuma organicidade, que acabaram por dinamitar o sistema, invadindo o campo de tributação sobre o consumo, reservado aos estados. O foco era arrecadar sem compartilhar com estados e municípios, quebrando a estrutura de federalismo cooperativo inicialmente organizada — projeto tristemente exitoso, a despeito de ínfima parcela de uma das Cides ter passado a ser destinada aos estados e ao DF (artigo 160, III, CF — EC 44/04).

Outra contribuição social federal que foi muito impactada foi a previdenciária referente aos servidores públicos, que originalmente incidiria apenas sobre os servidores que estivessem na ativa e passou a incidir também sobre os proventos dos aposentados e pensionistas (artigo 149, §1º, CF — EC 41/03), o que alcançou todos os entes federados.

No que se refere à competência dos estados, a Constituição originalmente previa para os impostos: (1) ITCMD, (2) ICMS e (3) IPVA, além de (4) um esdrúxulo Adicional do IR federal. Previa também a possibilidade de cobrar taxas e contribuições de melhoria, além de contribuições previdenciárias de seus servidores.

No âmbito dos impostos estaduais, o primeiro a ser limado foi o inadequado Adicional do IR (EC 3/93), que não deixou saudades. Em compensação, o ICMS passou a ser objeto de diferentes movimentos aparentemente contraditórios. Por um lado, surgiu uma guerra fiscal com arrojada renúncia de receitas de ICMS, visando a atração de investimentos, o que gerou incontáveis ADIs, que passaram por diversas fases, desde a singela concessão de liminar seguida de revogação da norma atacada e a consequente perda de objeto da ação, até a manutenção da ADI, mesmo sendo revogada a norma. Ao fim e ao cabo, a guerra fiscal foi amplamente reduzida em razão da LC 160/17. Por outro lado, como contrapartida à renúncia fiscal, foi fortemente aumentado o ICMS sobre bens essenciais, como energia elétrica, combustíveis e comunicações, violando o princípio da essencialidade, nos quais a fiscalização ocorre com muito mais facilidade e a possibilidade de sonegação é baixíssima. Isso foi encerrado pelo STF em 2022, através do RE 714.139 (Tema 745 da Repercussão Geral), concedendo prazo até 2024 para que os estados reorganizassem suas finanças, o que foi literalmente atropelado pela LC 194/22, ao determinar que tal redução ocorresse de imediato, dinamitando as finanças estaduais e, por decorrência do desarranjo federativo-fiscal ocasionado, estiolando as finanças municipais. A consequência, ainda não sentida, é que a fiscalização estadual e municipal sobre as empresas será intensificada a partir do próximo ano.

Deve ainda ser destacado sobre o ICMS que a necessária desoneração das exportações permanece inconclusa, pois houve a vedação à cobrança desse imposto na exportação, mas não foi assegurada “a manutenção e o aproveitamento do montante do imposto cobrado nas operações e prestações anteriores (artigo 155, §2º, X, “a”, CF – EC 42/03), o que deve ser deliberado pelo STF, à míngua de deliberação dos estados.

No que se refere ao IPVA, o ponto de destaque é a decisão do STF (RE 134.509 e RE 255.111, ambos de 2002), desconsiderando a possibilidade de sua incidência sobre aeronaves e embarcações, o que merece ser reanalisado pela corte. 

Outro aspecto da tributação estadual a ser destacado é o uso abusivo das taxas, várias delas declaradas inconstitucionais, porém outras ultrapassando o crivo do STF, como ocorreu nas taxas minerárias

No âmbito dos municípios, a Constituição, em sua versão original, previa que eles poderiam cobrar os seguintes impostos: (1) IPTU, (2) ITBI, (3) IVVC — imposto sobre a venda a varejo de combustíveis líquidos e gasosos, exceto diesel, e (4) ISS), além de taxas e contribuições de melhoria.

O primeiro a ser cortado foi o IVVC (EC 3/93), o que revela o desacerto da tributação sobre os combustíveis na versão original da Constituição, pois o sistema de impostos únicos, previsto na Constituição anterior (1967/1969) deveria ter sido mantido, evitando assim diversos problemas também com o ICMS.

O destaque foi a criação de outra tributação esdrúxula, a CIP — Contribuição para o Custeio de Iluminação Pública (artigo 149-A, CF – EC 39/02), cujo enquadramento teórico permanece sendo objeto de acirradas discussões jurisprudenciais e acadêmicas. Isso trouxe consequências positivas por um lado, pois possibilitou que as cidades se tornassem mais iluminadas; porém com um aspecto negativo, uma vez que gerou empoçamento de recursos, uma vez que o montante arrecadado não pode ser usado em outra finalidade.

Em síntese: após 34 anos de vigência do sistema constitucional tributário, algumas alterações foram efetuadas, mas ele permanece íntegro e funcionando. Existem muitos problemas, sem dúvidas, mas não exatamente no âmbito constitucional, pois este sistema nos permitiu ser a sétima economia mundial em 2011, aspirando chegar à sexta posição; hoje estamos em 13º lugar

Essa constatação aponta para dois aspectos: (1) o grande problema não está no âmbito constitucional, mas no infraconstitucional, seja no legal, seja no infralegal. Estes âmbitos devem ser aperfeiçoados, com respeito à segurança jurídica dos envolvidos (contribuintes e entes federados). E (2) as atuais reformas constitucionais em debate visam criar outro sistema tributário, o que não é ruim em si, embora as propostas em curso sejam péssimas — para seu aproveitamento será necessária uma enorme cirurgia nos textos que tramitam no Congresso (PEC 45 e PEC 110).

Embora não conheça os resultados das eleições no momento em que este texto está sendo escrito, grande parte dos próximos governos já foram eleitos no domingo, 2/10/22. Temos nova composição na Câmara dos Deputados, em um terço do Senado e nas Assembleias Legislativas, e grande número de chefes do Poder Executivo foram eleitos no primeiro turno de votação. Esse grupo de pessoas, incumbentes da administração pública brasileira, terão muito a discutir e a fazer, inclusive no âmbito tributário. Espero que também sejam capazes de ouvir a sociedade na urgente tarefa de (re)organizar o Brasil, que é de todos nós.

Fernando Facury Scaff é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP), advogado e sócio do escritório Silveira, Athias, Soriano de Mello, Bentes, Lobato & Scaff Advogados.

Revista Consultor Jurídico, 3 de outubro de 2022, 8h00

O ITBI no divã? Efeitos do acórdão proferido no RE 1.937.821 (parte 1)

1) Introdução
Três decisões recentes dos tribunais superiores têm provocado uma espécie de “crise de personalidade” no Imposto sobre Transmissões de Bens Imóveis (ITBI), gerando questionamentos capazes de abalar a sua trajetória histórico-constitucional e a sua higidez no ordenamento jurídico brasileiro vigente.

A primeira decisão dos tribunais a ser analisada nesta série de artigos é a mais recente e mais polêmica. Trata-se do acórdão proferido pela 1ª Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ) no Recurso Especial nº 1.937.821 (Tema 1.113), com caráter repetitivo, interposto contra decisão colegiada do Tribunal de Justiça de São Paulo, decidindo um Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas.

Antes de passar ao caso concreto, vale acentuar que a análise de decisões judiciais num sistema (que se pretende) de precedentes exige que se percorra algumas etapas na pesquisa e compreensão da jurisprudência e dos julgados individualmente considerados.

Em primeiro lugar, deve-se aferir a situação processual do caso examinado antes de se enveredar pelo seu mérito. Essa etapa é importante porque esse iter analítico tem sido, cada vez mais, solapado por notícias abreviadas ou resumidas sobre a “jurisprudência dos tribunais” nas mídias tradicionais e sociais, que se equivocam sobre as matérias decididas pelos tribunais, ao ponto de serem quase “fake news” jurídicas.

Em segundo lugar, é preciso examinar e compreender alguns elementos que delimitam o campo de cognição do caso, tais como: o objeto da ação originária, os tipos de instrumentos recursais utilizados e o conteúdo dos respectivos julgamentos. Somente assim se poderá compreender o alcance e os limites das decisões recorridas.

2) Aspectos processuais
O caso em foco tem origem em ação judicial de repetição de indébito de ITBI proposta pela empresa Fortress Negócios Imobiliários contra o Município de São Paulo (MSP). Na petição inicial, a empresa requereu a devolução da diferença entre o valor do imposto calculado pela Secretaria Municipal de Fazenda paulistana e o que seria, segundo ela, devido com base no preço pago pela arrematação do imóvel em hasta pública judicial. Na mesma época, outras duas ações semelhantes de repetição de indébito de ITBI foram movidas pela empresa nos municípios paulistas de Bertioga e Itu.

A sentença julgou procedente a ação contra o município de São Paulo, determinando o recálculo do ITBI e adotando como valor venal do imóvel aquele fixado para fins de incidência de IPTU ou o valor da arrematação, “o que fosse maior” — no caso, o último, diante de uma base de cálculo bastante defasada de IPTU. O MSP apelou (13/12/2017) e a empresa, então, requereu a instauração de IRDR. Fez, contudo, uma delimitação ampla para o IRDR, sem mencionar casos semelhantes com necessidade de uniformização, apenas “casos futuros”, indo muito além dos limites processuais estabelecidos pelo artigo 976 do CPC. Apesar disso, o pedido foi deferido.

Esse foi, então, recebido e processado pela Turma Especial de Direito Público do TJ-SP, que determinou a suspensão do curso processual da Apelação (23/04/2018), sem suspender nenhum recurso relativo ao tema. Até mesmo a apelação entre a Fortress e o município de São Paulo acabou julgada pela 14ª Câmara do TJ-SP (28/6/2018) — que não enfrentou a matéria tratada no IRDR, apenas a incidência ou não de juros no indébito pleiteado.

Contra esse Acórdão, foi interposto REsp pelo MSP (8/5/2019), que foi inadmitido na origem, mas acabou sendo conhecido após agravo de instrumento em REsp. Por falta de “pré-questionamento”, o ARESP nº 1.493.616 foi rejeitado em decisão monocrática. A matéria, então, precluiu em 28/2/2020.

Neste ínterim, o 7º Grupo de Direito Público do TJ-SP julgou o IRDR (em 23/05/2019) e seus julgadores:

“FIXARAM A TESE JURÍDICA DA BASE DE CÁLCULO DO ITBI, DEVENDO SER CALCULADO SOBRE O VALOR DO NEGÓCIO JURÍDICO REALIZADO E, SE ADQUIRIDO EM HASTAS PÚBLICAS, SOBRE O VALOR DA ARREMATAÇÃO OU SOBRE O VALOR VENAL DO IMÓVEL PARA FINS DE IPTU, AQUELE QUE FOR MAIOR, AFASTANDO O VALOR DE REFERÊNCIA”

Ao final, do voto-vencedor, o desembargador Burza Neto assinalou que:

“Por essas razões, a base de cálculo do ITBI deve corresponder ao valor venal do bem imóvel transferido e, caso este valor seja inferior ao da negociação, deve prevalecer este último.

Ocorrendo isto, pelo meu voto, no julgamento do incidente, FIXO A TESE JURÍDICA DA BASE DE CÁLCULO DO ITBI, DEVENDO CORRESPONDER AO VALOR VENAL DO IMÓVEL OU AO VALOR DA TRANSAÇÃO, PREVALECENDO O QUE FOR MAIOR.”

Um novo REsp foi interposto pelo MSP contra o acórdão do IRDR (8/8/2019), mas foi inadmitido na origem (4/9/2019). Todavia, após interposição de agravo pelo ente, foi conhecido e convolado pelo STJ em REsp (em 11/5/2021), sob o nº 1.937.821. Em 5/10/2021, esse recurso foi afetado ao regime dos recursos repetitivos. Em 24/2/2022, a 1ª Seção do STJ deu parcial provimento ao recurso do município de São Paulo, com as seguintes conclusões:

a) a base de cálculo do ITBI é o valor do imóvel transmitido em condições normais de mercado, não estando vinculada à base de cálculo do IPTU, que nem sequer pode ser utilizada como piso de tributação;

b) o valor da transação declarado pelo contribuinte goza da presunção de que é condizente com o valor de mercado, que somente pode ser afastada pelo fisco mediante a regular instauração de processo administrativo próprio (artigo 148 do CTN);

c) o Município não pode arbitrar previamente a base de cálculo do ITBI com base em valor de referência estabelecido unilateralmente.

O MSP opôs Embargos de Declaração em 27/4/2022, alegando que o IRDR não resolveu as demandas repetitivas, pois sequer se referiu aos três casos da mesma empresa; que os demais casos apontados como repetitivos (Bertioga e Itu) foram julgados em sentido contrário ao do IRDR pelo TJSPque não havia interesse processual na continuidade do REsp do MSP, contra o acórdão do IRDR; e que a parte do acórdão que desproveu o REsp promoveu uma reformatio in pejus na medida em que adotou o preço do negócio jurídico como base de cálculo do ITBI em detrimento do valor venal de mercado (próprio dos impostos sobre o patrimônio) sem sequer se referir ao critério adotado pelo IRDR – para que se aplicasse o valor maior. Os embargos foram rejeitados sob a alegação genérica de que não havia omissão, obscuridade ou contradição no acórdão do repetitivo.

Em 23/06/2022, o MSP interpôs Recurso Extraordinário ao STF alegando que o REsp seria descabido por força da disciplina constitucional (artigo 105, III, CRFB), na medida em que teria sido interposto contra IRDR decidido em abstrato, o que não seria possível segundo entendimento do próprio STJ (no RE nº 1.798.374). Além disso, diz ter havido agressão ao devido processo legal constitucional (artigo 5º, LIV, CRFB), na medida da reformatio in pejusque teria ocorrido contra o recorrente quando o acordão afastou o critério do IPTU e trouxe critérios abstratos que sequer estavam em discussão. Vale ressaltar que o Recurso Extraordinário ainda não foi julgado, não havendo, assim, trânsito em julgado da decisão do STJ.

2) Efeitos das decisões proferidas no caso
a) Limites Processuais do Acórdão do REsp 1.937.821.
Para além da falta do trânsito em julgado, cumpre observar que, por ser oriundo de um RE interposto contra Acórdão de IRDR de Tribunal Estadual, só pode ser considerada válida e eficaz se estiver vinculada a um caso concreto (“causa decidida”). Do contrário, não seria sequer cabível o seu processamento como apelo especialíssimo, como já assentou o próprio STJ em recente decisão da sua Corte Especial, ao julgar procedente o incidente de inconstitucionalidade suscitado no Recurso Especial 1.798.374 (18/5/2022).

Ainda, é necessário circunscrever a vinculatividade do Acórdão proferido no REsp nº 1.937.821 ao objeto do caso concreto julgado pelo TJ-SP. A repetição de indébito proposta pela Fortress se limita à discussão da base de cálculo do ITBI em arrematações de imóveis ofertados em hastas públicas judiciais. Nesse sentido, a doutrina abalizada de Antônio do Passo Cabral [1], nos comentários do artigo 987, e a de Cássio Scarpinella Bueno [2]assim também entendem na medida em que trazem que apenas um caso concreto a ser julgado (e não um incidente formado a partir de um punhado) seria capaz de legitimar o cabimento daqueles recursos na perspectiva constitucional (artigos 102, III e 105, III, CRFB). 

Com efeito, ainda que o IRDR e o voto do ministro Gurgel de Faria tenham se arvorado em digressões abstratas sobre a base de cálculo e modalidades de lançamento cabíveis na gestão fiscal do ITBI pelos municípios brasileiros, não se pode extrair destes Acórdãos um caráter de norma geral, transcendente dos limites do caso concreto e da res in iudicio deducta. Do contrário, seria uma ultrapassagem dos limites do artigo 976, CPC, e, sobretudo, da competência recursal do STJ, delimitada pelo artigo 105, III, CRFB, conforme confirmado pela Corte Especial do STJ e pelo STF (RE 581. 947). Isso poderia sustentar a inconstitucionalidade suscitada pelo MSP.

Nesse sentido, frisa-se: O entendimento fixado pelo STJ no REsp 1.937.821 só pode ser interpretado como aplicável aos casos de aferição da base de cálculo do ITBI relativos a arrematações de imóveis em hastas públicas e não a todas as hipóteses de alienação sujeitas ao ITBI. Somente essa matéria vinha sendo decidida pelo STJ nesse sentido. Não havia jurisprudência sua que sustentasse editar um tema de Repetitivo para a discussão de base de cálculo de ITBI em outras hipóteses de alienação de imóveis, sobretudo em negócios jurídicos particulares!

O preço pago na arrematação em hasta pública (salvo se “preço vil”) já era o valor adotado nas legislações de vários municípios brasileiros [3]. Optavam pela praticidade fiscal na definição do elemento quantitativo do fato gerador abstrato do imposto. Pela publicidade e formalidade dos atos, essa modalidade de alienação imobiliária (em sede judicial) dá segurança jurídica suficiente para que as autoridades fiscais tenham, nesse valor, um indicador objetivo, confiável, do valor venal do imóvel para fins de incidência do ITBI, já que insujeito à livre disposição das partes negociantes. 

b) A decisão de mérito e seus fundamentos (RE 1.937.821): matérias não integrantes da “causa decidida”só podem ser entendidas como obiter dicta
O imperativo processual da “causa decidida” limita o pedido do REsp e o campo de cognição do STJ no caso. Por força do princípio da non reformatio in pejus, a conclusão do julgado só poderia determinar a adoção dos valores fixados pela Prefeitura ou a manutenção do critério alternativo: o valor venal declarado (assumido como indício do valor de mercado efetivo e atual) ou a base de cálculo do IPTU — o que fosse o maior. Neste sentido, a 1ª Seção do STJ jamais poderia derivar os debates para outras hipóteses que não foram objeto do caso concreto e muito menos julgar o caso em desfavor do único recorrente.

A abordagem geral sobre base de cálculo e modalidades de lançamento só pode ser entendida como obiter dicta. Isto é, como manifestaçõescircunstanciais sobre outras hipóteses de incidência do ITBI, diversas das alienações de imóveis decorrentes de arrematações em hastas públicas, em relação às quais o Acórdão não possui teor vinculativo algum. Isso afrontaria os limites constitucionais que balizam a sua competência recursal, a divisão de Poderes e o federalismo fiscal.

c) Limites processuais do acórdão: aplicação restrita ao Poder Judiciário, conveniência ou não, de sua adoção pelas administrações públicas municipais
Por fim, é relevante a discussão sobre a vinculatividade da decisão às administrações públicas municipais. Os municípios que possuírem leis prevendo a incidência do ITBI sobre o valor venal do imóvel (calculado pela prefeitura) estão obrigados a acatar a decisão do STJ? Pode-se adiantar que não.

A decisão do REsp Repetitivo não tem alcance e grau de vinculatividade do Poder Executivo ou das administrações públicas no Brasil. Entretanto, há diversos preceitos processuais insertos no Código de Processo Civil brasileiro determinando a vinculação automática de todos os graus do Poder Judiciário à matéria decidida em recursos repetitivos, inclusive devendo ser deferida tutela da evidência (artigo 311, inciso III do CPC).

No entanto, as municipalidades não estão obrigadas a alterarem a sua legislação. Deve-se ponderar, contudo, em em juízo de conveniência e oportunidade, quanto ao seguimento ou não da decisão do STJ, inclusive em vista de eventual busca pela superação total (overruling) ou parcial (overriding) do precedente por decisão futura do próprio STJ e, especialmente, do STF.

3) Conclusão
A análise do acórdão permite concluir:

1) O Acórdão proferido no REsp nº 1.937.821 não transitou em julgado, sendo objeto de Recurso Extraordinário interposto pelo município de São Paulo, cujo pedido de anulação se baseia, principalmente, em dois fundamentos:

a. O RESP em foco violou a hipótese de cabimento prevista no inciso III, do artigo 105 da Constituição, não podendo versar sobre tema genérico, abstraindo-se da causa decidida, nos termos do que foi recém assentado pela Corte Especial do STJ no julgamento do incidente de inconstitucionalidade nº 1.798.374;

b. O referido RESP não poderia realizar um julgamento extra petita e muito menos promover uma reformatio in pejus, uma vez que o único recorrente era o próprio município de São Paulo, e o julgamento do IRDR ateve-se a critério totalmente distinto e limitado às arrematações;

2) Ainda que houvesse transitado em julgado, o Acórdão proferido em Recurso Especial repetitivo não tem efeitos vinculantes para as administrações públicas tributárias, nem mesmo para a do município de São Paulo – havendo, todavia, o risco de maior velocidade de futuras decisões em litígios judiciais, acolhendo automaticamente os critérios adotados neste acórdão — caso transitado em julgado – ainda que os seus efeitos sejam compreendidos de forma bem mais restrita da que está sendo difundida nas mídias especializadas, restringindo-o aos casos de arrematações em hastas públicas.

3) Diante das limitações processuais impostas pelo critério da “causa decidida”, nos termos do inciso III do artigo 105 da Constituição de 1988, o Acórdão do RESP 1.937.821 só pode ser entendido como válido e eficaz para as discussões acerca da base de cálculo do ITBI para arrematações em hastas públicas, inclusive porque o entendimento pretérito do STJ e de diversas legislações municipais já apontavam o montante do lance vencedor do praceamento do imóvel como valor seguro para fins de fixação da base de cálculo, considerando-o um procedimento formal realizado em sede judicial, capaz de fornecer um valor objetivo e seguro, não disponível à livre negociação e às subjetividades das partes, ainda possa ser criticado por ser uma espécie de “venda forçada”.

Continua parte 2

[1] Cf. In: CABRAL, Antônio do Passo; CRAMER, Ronaldo (coord.). Rio de Janeiro: Forense, 2015, p. 1.452-1.453.

[2] Cf. Manual de Direito Processual Civil. 8 ed., 2002, São Paulo: SaraivaJur.

[3] Cite-se, como exemplo, as seguintes legislações municipais: Porto Alegre (Lei Complementar Municipal n. 197/89); Florianópolis (Lei Complementar nº 007/1997, com a redação dada pela LC 683/2019); Belo Horizonte (Decreto n. 17.026/2018 (regulamenta a Lei nº 5.492/88); Curitiba (Lei Complementar nº 108/2017); Porto Velho (Lei Complementar nº 878/2021).

Ricardo Almeida Ribeiro da Silva é professor da pós-graduação em Direito Tributário da Uerj/Ceped e do PJT/ABDF (Associação Brasileira de Direito Financeiro), mestre em Direito Público pela Uerj, procurador do município do Rio de Janeiro, assessor jurídico da Abrasf e advogado.

Revista Consultor Jurídico, 12 de setembro de 2022, 6h14

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