ARTIGO DA SEMANA –  LEI COMPLEMENTAR 208/2024: cessão de créditos, interrupção da prescrição e quebra de sigilo de dados

João Luís de Souza Pereira. Advogado. Mestre em Direito. Membro da Comissão de Direito Financeiro e Tributário do IAB. Professor convidado das pós-graduações da FGV/Direito Rio e do IAG/PUC-Rio.

A Lei Complementar nº 208/2024, publicada no último dia 03/07/2024, trouxe três inovações à legislação tributária: (a) autorização para a cessão onerosa de créditos tributários e não tributários; (b) nova causa de interrupção da prescrição e (c) ampliação das hipóteses de quebra de sigilo de dados dos contribuintes.

Cessão onerosa de créditos

A autorização para a cessão onerosa de créditos tributários ou não tributários, inscritos em dívida ativa ou não, surgiu pela criação de um artigo 39-A[1] à Lei nº 4.320/2024.

Inegavelmente, a cessão onerosa de créditos tributários ou não tributários tem um só objetivo: permitir a antecipação de receita.

Do ponto de vista formal, a alteração está correta, visto que se trata de norma com origem no art. 163, da Constituição.

O problema está na implementação da cessão onerosa dos créditos. Vejamos.

Inicialmente, o art. 39-A prevê que a cessão dependerá de lei específica, federal, distrital, estadual ou municipal, obviamente, que a autorize.

Aqui já surge um problema: o Poder Executivo ficará refém do Legislativo e isto, num país com longo histórico de política do toma-lá-dá-cá, é um prato feito para o surgimento de escândalos de corrupção.

Outro grande empecilho à concretização de tais cessões onerosas está nos diversos casos de créditos tributários que são constituídos com fundamento em normas de legalidade/constitucionalidade discutível, dando causa a longas discussões em processos administrativos e judiciais.

Neste caso, a cessão do crédito, caso realizada, estará submetida a grande deságio, visto que nenhum fundo de investimento vai pagar caro ao comprar um crédito de liquidação tão duvidosa.

A única notícia boa nesta hipótese é que fica aberta mais uma oportunidade de atuação dos advogados tributaristas, porque, suponho, nenhum fundo de investimento vai comprar um crédito tributário sem antes consultar um especialista.

Outra dificuldade para a cessão do crédito está na previsão legal (art. 39-A, §1º, III, da Lei nº 4.320/64), que estabelece como condição para a realização do negócio “assegurar à Fazenda Pública ou ao órgão da administração pública a prerrogativa de cobrança judicial e extrajudicial dos créditos de que se tenham originado os direitos cedidos”.

Ora, de que adianta ser o dono do crédito se a cobrança ao devedor original será realizada por terceiros, através das procuradorias?

Um último problema envolvendo as cessões de créditos: diz a lei que “A cessão de direitos creditórios de que trata este artigo poderá ser realizada por intermédio de sociedade de propósito específico, criada para esse fim pelo ente cedente, dispensada, nessa hipótese, a licitação” (art. 39-A, §7º).

As palavras gravadas em negrito no parágrafo anterior já dizem tudo. Sem comentários…

Protesto que interrompe a prescrição

A segunda novidade introduzida pela LC 208/2024 é a criação de uma nova hipótese de interrupção da prescrição do crédito tributário: o protesto extrajudicial promovido pela fazenda pública, alterando-se a redação do art. 174, parágrafo único, II, do CTN[2].

O protesto extrajudicial das Certidões de Dívida Ativa, previsto no art. 1º, parágrafo único, da Lei nº 9.492/97, introduzido pela Lei nº 12.767/2012, é absurdo, tendo em vista as inúmeras garantias e privilégios conferidos ao crédito tributário. Isto sem contar que o título executivo (CDA) é formado unilateralmente pelo credor, diversamente do que acontece com os títulos de crédito, por exemplo. Protestar CDA é coagir o devedor tributário ao pagamento, constituindo aquilo que se chama de sanção política ou utilização de via oblíqua para a satisfação do crédito.

O Supremo Tribunal Federal, espantosamente, não viu nenhum problema na previsão legal que incluiu as certidões da dívida ativa no rol de títulos que podem ser levados a protesto[3].

O STF, aliás, parece incentivar o protesto de CDAs, bastando lembrar a tese firmada recentemente na compreensão do Tema 1184 da Repercussão Geral[4].

Consequentemente, o protesto de CDAs virou moda.

Todavia, ao se permitir que o protesto extrajudicial interrompa o prazo prescricional para cobrança judicial da CDA, uma coisa é certa: constituído definitivamente o crédito tributário, o prazo prescricional será de 9 anos, 11 meses e vinte e nove dias. Para tanto, basta que o protesto ocorra no penúltimo dia do quinto ano subsequente à constituição definitiva do crédito tributário e a execução fiscal seja ajuizada no último dia no quinquênio subsequente. 

Então fica claro que a LC 208/2024 não surgiu para conferir maior garantia ao contribuinte. Ao contrário, trata-se de mais uma norma que privilegia um credor reconhecidamente ineficaz, moroso e, salvo honrosas exceções, pouco interessado em melhorar a qualidade da cobrança.

Nova quebra de sigilo fiscal

A última novidade da LC 208/2024 está na introdução de novas hipóteses de quebra de sigilo de dados dos contribuintes.

A partir dos novos parágrafos adicionados ao art. 198, do CTN[5], a administração tributária poderá requisitar informações cadastrais e patrimoniais de sujeito passivo de crédito tributário a órgãos ou entidades, públicos ou privados, que, inclusive por obrigação legal, operem cadastros e registros ou controlem operações de bens e direitos.

Então, o SERASA, administradoras de condomínio e demais entidades que disponham de informações cadastrais ou patrimoniais dos contribuintes deverão fornecer informações ao fisco, sem prévia ordem judicial.

Além disso, “os órgãos e as entidades da administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes colaborarão com a administração tributária visando ao compartilhamento de bases de dados de natureza cadastral e patrimonial de seus administrados e supervisionados”. Ou seja, as agências reguladoras, por exemplo, deverão disponibilizar livre acesso do fisco ao acervo de dados das pessoas jurídicas submetidas à fiscalização e registro, por exemplo.

A quebra de sigilo de dados dos contribuintes, lamentavelmente, também recebeu o aval do STF, neste caso no julgamento das ADIs 2390, 2386 e 2397[6] e na fixação da tese para o Tema 225 da Repercussão Geral[7].

Mas é preciso enfatizar que a requisição de dados cadastrais dos contribuintes de que trata o novo art. 198, § 4º, do CTN, não poderá ocorrer de forma imotivada e indiscriminada. Esta requisição, por questão de lógica, bom senso e pela preservação da garantia individual deve ocorrer mediante prévia instauração de procedimento de ofício face ao “investigado” e desde que comprovada a imprescindibilidade da medida, sem contar a observância de requisitos legais para o acesso e preservação da informação. 

O compartilhamento de informações (art. 198, §5º, do CTN), também em obediência à garantia constitucional de proteção de dados, não deverá ser indiscriminado, mas motivado, nem eterno, mas por prazo certo e determinado.   


[1] “Art. 39-A. A União, o Estado, o Distrito Federal ou o Município poderá ceder onerosamente, nos termos desta Lei e de lei específica que o autorize, direitos originados de créditos tributários e não tributários, inclusive quando inscritos em dívida ativa, a pessoas jurídicas de direito privado ou a fundos de investimento regulamentados pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM).

§ 1º Para fins do disposto no caput, a cessão dos direitos creditórios deverá:

I – preservar a natureza do crédito de que se tenha originado o direito cedido, mantendo as garantias e os privilégios desse crédito;

II – manter inalterados os critérios de atualização ou correção de valores e os montantes representados pelo principal, os juros e as multas, assim como as condições de pagamento e as datas de vencimento, os prazos e os demais termos avençados originalmente entre a Fazenda Pública ou o órgão da administração pública e o devedor ou contribuinte;

III – assegurar à Fazenda Pública ou ao órgão da administração pública a prerrogativa de cobrança judicial e extrajudicial dos créditos de que se tenham originado os direitos cedidos;

IV – realizar-se mediante operação definitiva, isentando o cedente de responsabilidade, compromisso ou dívida de que decorra obrigação de pagamento perante o cessionário, de modo que a obrigação de pagamento dos direitos creditórios cedidos permaneça, a todo tempo, com o devedor ou contribuinte;

V – abranger apenas o direito autônomo ao recebimento do crédito, assim como recair somente sobre o produto de créditos já constituídos e reconhecidos pelo devedor ou contribuinte, inclusive mediante a formalização de parcelamento;

VI – ser autorizada, na forma de lei específica do ente, pelo chefe do Poder Executivo ou por autoridade administrativa a quem se faça a delegação dessa competência;

VII – realizar-se até 90 (noventa) dias antes da data de encerramento do mandato do chefe do Poder Executivo, ressalvado o caso em que o integral pagamento pela cessão dos direitos creditórios ocorra após essa data.

§ 2º A cessão de direitos creditórios preservará a base de cálculo das vinculações constitucionais no exercício financeiro em que o contribuinte efetuar o pagamento.

§ 3º A cessão de direitos creditórios não poderá abranger percentuais do crédito que, por força de regras constitucionais, pertençam a outros entes da Federação.

§ 4º As cessões de direitos creditórios realizadas nos termos deste artigo não se enquadram nas definições de que tratam os incisos III e IV do art. 29 e o art. 37 da Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000 (Lei de Responsabilidade Fiscal), sendo consideradas operação de venda definitiva de patrimônio público.

§ 5º As cessões de direitos creditórios tributários são consideradas atividades da administração tributária, não se aplicando a vedação constante do inciso IV do art. 167 da Constituição Federal aos créditos originados de impostos, respeitados os §§ 2º e 3º deste artigo.

§ 6º A receita de capital decorrente da venda de ativos de que trata este artigo observará o disposto no art. 44 da Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000 (Lei de Responsabilidade Fiscal), devendo-se destinar pelo menos 50% (cinquenta por cento) desse montante a despesas associadas a regime de previdência social, e o restante, a despesas com investimentos.

§ 7º A cessão de direitos creditórios de que trata este artigo poderá ser realizada por intermédio de sociedade de propósito específico, criada para esse fim pelo ente cedente, dispensada, nessa hipótese, a licitação.

§ 8º É vedado a instituição financeira controlada pelo ente federado cedente:

I – participar de operação de aquisição primária dos direitos creditórios desse ente;

II – adquirir ou negociar direitos creditórios desse ente em mercado secundário;

III – realizar operação lastreada ou garantida pelos direitos creditórios desse ente.

§ 9º O disposto no § 8º deste artigo não impede a instituição financeira pública de participar da estruturação financeira da operação, atuando como prestadora de serviços.

§ 10. A cessão de direitos creditórios originados de parcelamentos administrativos não inscritos em dívida ativa é limitada ao estoque de créditos existentes até a data de publicação da respectiva lei federal, estadual, distrital ou municipal que conceder a autorização legislativa para a operação.”

[2] Art.  174 ………………………………………………………….

Parágrafo único.  ……………………………………………….

…………………………………………………………………………

II – pelo protesto judicial ou extrajudicial;

[3] Ementa: Direito tributário. Ação direta de inconstitucionalidade. Lei nº 9.492/1997, art. 1º, parágrafo único. Inclusão das certidões de dívida ativa no rol de títulos sujeitos a protesto. Constitucionalidade. 1. O parágrafo único do art. 1º da Lei nº 9.492/1997, inserido pela Lei nº 12.767/2012, que inclui as Certidões de Dívida Ativa – CDA no rol dos títulos sujeitos a protesto, é compatível com a Constituição Federal, tanto do ponto de vista formal quanto material. 2. Em que pese o dispositivo impugnado ter sido inserido por emenda em medida provisória com a qual não guarda pertinência temática, não há inconstitucionalidade formal. É que, muito embora o STF tenha decidido, na ADI 5.127 (Rel. Min. Rosa Weber, Rel. p/ acórdão Min. Edson Fachin, j. 15.10.2015), que a prática, consolidada no Congresso Nacional, de introduzir emendas sobre matérias estranhas às medidas provisórias constitui costume contrário à Constituição, a Corte atribuiu eficácia ex nunc à decisão. Ficaram, assim, preservadas, até a data daquele julgamento, as leis oriundas de projetos de conversão de medidas provisórias com semelhante vício, já aprovadas ou em tramitação no Congresso Nacional, incluindo o dispositivo questionado nesta ADI. 3. Tampouco há inconstitucionalidade material na inclusão das CDAs no rol dos títulos sujeitos a protesto. Somente pode ser considerada “sanção política” vedada pelo STF (cf. Súmulas nº 70, 323 e 547) a medida coercitiva do recolhimento do crédito tributário que restrinja direitos fundamentais dos contribuintes devedores de forma desproporcional e irrazoável, o que não ocorre no caso do protesto de CDAs. 3.1. Em primeiro lugar, não há efetiva restrição a direitos fundamentais dos contribuintes. De um lado, inexiste afronta ao devido processo legal, uma vez que (i) o fato de a execução fiscal ser o instrumento típico para a cobrança judicial da Dívida Ativa não exclui mecanismos extrajudiciais, como o protesto de CDA, e (ii) o protesto não impede o devedor de acessar o Poder Judiciário para discutir a validade do crédito. De outro lado, a publicidade que é conferida ao débito tributário pelo protesto não representa embaraço à livre iniciativa e à liberdade profissional, pois não compromete diretamente a organização e a condução das atividades societárias (diferentemente das hipóteses de interdição de estabelecimento, apreensão de mercadorias, etc.). Eventual restrição à linha de crédito comercial da empresa seria, quando muito, uma decorrência indireta do instrumento, que, porém, não pode ser imputada ao Fisco, mas aos próprios atores do mercado creditício. 3.2. Em segundo lugar, o dispositivo legal impugnado não viola o princípio da proporcionalidade. A medida é adequada, pois confere maior publicidade ao descumprimento das obrigações tributárias e serve como importante mecanismo extrajudicial de cobrança, que estimula a adimplência, incrementa a arrecadação e promove a justiça fiscal. A medida é necessária, pois permite alcançar os fins pretendidos de modo menos gravoso para o contribuinte (já que não envolve penhora, custas, honorários, etc.) e mais eficiente para a arrecadação tributária em relação ao executivo fiscal (que apresenta alto custo, reduzido índice de recuperação dos créditos públicos e contribui para o congestionamento do Poder Judiciário). A medida é proporcional em sentido estrito, uma vez que os eventuais custos do protesto de CDA (limitações creditícias) são compensados largamente pelos seus benefícios, a saber: (i) a maior eficiência e economicidade na recuperação dos créditos tributários, (ii) a garantia da livre concorrência, evitando-se que agentes possam extrair vantagens competitivas indevidas da sonegação de tributos, e (iii) o alívio da sobrecarga de processos do Judiciário, em prol da razoável duração do processo. 4. Nada obstante considere o protesto das certidões de dívida constitucional em abstrato, a Administração Tributária deverá se cercar de algumas cautelas para evitar desvios e abusos no manejo do instrumento. Primeiro, para garantir o respeito aos princípios da impessoalidade e da isonomia, é recomendável a edição de ato infralegal que estabeleça parâmetros claros, objetivos e compatíveis com a Constituição para identificar os créditos que serão protestados. Segundo, deverá promover a revisão de eventuais atos de protesto que, à luz do caso concreto, gerem situações de inconstitucionalidade (e.g., protesto de créditos cuja invalidade tenha sido assentada em julgados de Cortes Superiores por meio das sistemáticas da repercussão geral e de recursos repetitivos) ou de ilegalidade (e.g., créditos prescritos, decaídos, em excesso, cobrados em duplicidade). 5. Ação direta de inconstitucionalidade julgada improcedente. Fixação da seguinte tese: “O protesto das Certidões de Dívida Ativa constitui mecanismo constitucional e legítimo, por não restringir de forma desproporcional quaisquer direitos fundamentais garantidos aos contribuintes e, assim, não constituir sanção política.”

(ADI 5135, Relator(a): ROBERTO BARROSO, Tribunal Pleno, julgado em 09-11-2016, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-022  DIVULG 06-02-2018  PUBLIC 07-02-2018)

[4] 1. É legítima a extinção de execução fiscal de baixo valor pela ausência de interesse de agir tendo em vista o princípio constitucional da eficiência administrativa, respeitada a competência constitucional de cada ente federado. 2. O ajuizamento da execução fiscal dependerá da prévia adoção das seguintes providências: a) tentativa de conciliação ou adoção de solução administrativa; e b) protesto do título, salvo por motivo de eficiência administrativa, comprovando-se a inadequação da medida. 3. O trâmite de ações de execução fiscal não impede os entes federados de pedirem a suspensão do processo para a adoção das medidas previstas no item 2, devendo, nesse caso, o juiz ser comunicado do prazo para as providências cabíveis

[5] “Art. 198 …………………………………………………………….

…………………………………………………………………………..

§ 4º Sem prejuízo do disposto no art. 197, a administração tributária poderá requisitar informações cadastrais e patrimoniais de sujeito passivo de crédito tributário a órgãos ou entidades, públicos ou privados, que, inclusive por obrigação legal, operem cadastros e registros ou controlem operações de bens e direitos.

§ 5º Independentemente da requisição prevista no § 4º deste artigo, os órgãos e as entidades da administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes colaborarão com a administração tributária visando ao compartilhamento de bases de dados de natureza cadastral e patrimonial de seus administrados e supervisionados.”

[6] EMENTA Ação direta de inconstitucionalidade. Julgamento conjunto das ADI nº 2.390, 2.386, 2.397 e 2.859. Normas federais relativas ao sigilo das operações de instituições financeiras. Decreto nº 4.545/2002. Exaurimento da eficácia. Perda parcial do objeto da ação direta nº 2.859. Expressão “do inquérito ou”, constante no § 4º do art. 1º, da Lei Complementar nº 105/2001. Acesso ao sigilo bancário nos autos do inquérito policial. Possibilidade. Precedentes. Art. 5º e 6º da Lei Complementar nº 105/2001 e seus decretos regulamentadores. Ausência de quebra de sigilo e de ofensa a direito fundamental. Confluência entre os deveres do contribuinte (o dever fundamental de pagar tributos) e os deveres do Fisco (o dever de bem tributar e fiscalizar). Compromissos internacionais assumidos pelo Brasil em matéria de compartilhamento de informações bancárias. Art. 1º da Lei Complementar nº 104/2001. Ausência de quebra de sigilo. Art. 3º, § 3º, da LC 105/2001. Informações necessárias à defesa judicial da atuação do Fisco. Constitucionalidade dos preceitos impugnados. ADI nº 2.859. Ação que se conhece em parte e, na parte conhecida, é julgada improcedente. ADI nº 2.390, 2.386, 2.397. Ações conhecidas e julgadas improcedentes. 1. Julgamento conjunto das ADI nº 2.390, 2.386, 2.397 e 2.859, que têm como núcleo comum de impugnação normas relativas ao fornecimento, pelas instituições financeiras, de informações bancárias de contribuintes à administração tributária. 2. Encontra-se exaurida a eficácia jurídico-normativa do Decreto nº 4.545/2002, visto que a Lei n º 9.311, de 24 de outubro de 1996, de que trata este decreto e que instituiu a CPMF, não está mais em vigência desde janeiro de 2008, conforme se depreende do art. 90, § 1º, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias -ADCT. Por essa razão, houve parcial perda de objeto da ADI nº 2.859/DF, restando o pedido desta ação parcialmente prejudicado. Precedentes. 3. A expressão “do inquérito ou”, constante do § 4º do art. 1º da Lei Complementar nº 105/2001, refere-se à investigação criminal levada a efeito no inquérito policial, em cujo âmbito esta Suprema Corte admite o acesso ao sigilo bancário do investigado, quando presentes indícios de prática criminosa. Precedentes: AC 3.872/DF-AgR, Relator o Ministro Teori Zavascki, Tribunal Pleno, DJe de 13/11/15; HC 125.585/PE-AgR, Relatora a Ministra Cármen Lúcia, Segunda Turma, DJe de 19/12/14; Inq 897-AgR, Relator o Ministro Francisco Rezek, Tribunal Pleno, DJ de 24/3/95. 4. Os artigos 5º e 6º da Lei Complementar nº 105/2001 e seus decretos regulamentares (Decretos nº 3.724, de 10 de janeiro de 2001, e nº 4.489, de 28 de novembro de 2009) consagram, de modo expresso, a permanência do sigilo das informações bancárias obtidas com espeque em seus comandos, não havendo neles autorização para a exposição ou circulação daqueles dados. Trata-se de uma transferência de dados sigilosos de um determinado portador, que tem o dever de sigilo, para outro, que mantém a obrigação de sigilo, permanecendo resguardadas a intimidade e a vida privada do correntista, exatamente como determina o art. 145, § 1º, da Constituição Federal. 5. A ordem constitucional instaurada em 1988 estabeleceu, dentre os objetivos da República Federativa do Brasil, a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, a erradicação da pobreza e a marginalização e a redução das desigualdades sociais e regionais. Para tanto, a Carta foi generosa na previsão de direitos individuais, sociais, econômicos e culturais para o cidadão. Ocorre que, correlatos a esses direitos, existem também deveres, cujo atendimento é, também, condição sine qua non para a realização do projeto de sociedade esculpido na Carta Federal. Dentre esses deveres, consta o dever fundamental de pagar tributos, visto que são eles que, majoritariamente, financiam as ações estatais voltadas à concretização dos direitos do cidadão. Nesse quadro, é preciso que se adotem mecanismos efetivos de combate à sonegação fiscal, sendo o instrumento fiscalizatório instituído nos arts. 5º e 6º da Lei Complementar nº 105/ 2001 de extrema significância nessa tarefa. 6. O Brasil se comprometeu, perante o G20 e o Fórum Global sobre Transparência e Intercâmbio de Informações para Fins Tributários (Global Forum on Transparency and Exchange of Information for Tax Purposes), a cumprir os padrões internacionais de transparência e de troca de informações bancárias, estabelecidos com o fito de evitar o descumprimento de normas tributárias, assim como combater práticas criminosas. Não deve o Estado brasileiro prescindir do acesso automático aos dados bancários dos contribuintes por sua administração tributária, sob pena de descumprimento de seus compromissos internacionais. 7. O art. 1º da Lei Complementar 104/2001, no ponto em que insere o § 1º, inciso II, e o § 2º ao art. 198 do CTN, não determina quebra de sigilo, mas transferência de informações sigilosas no âmbito da Administração Pública. Outrossim, a previsão vai ao encontro de outros comandos legais já amplamente consolidados em nosso ordenamento jurídico que permitem o acesso da Administração Pública à relação de bens, renda e patrimônio de determinados indivíduos. 8. À Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, órgão da Advocacia-Geral da União, caberá a defesa da atuação do Fisco em âmbito judicial, sendo, para tanto, necessário o conhecimento dos dados e informações embasadores do ato por ela defendido. Resulta, portanto, legítima a previsão constante do art. 3º, § 3º, da LC 105/2001. 9. Ação direta de inconstitucionalidade nº 2.859/DF conhecida parcialmente e, na parte conhecida, julgada improcedente. Ações diretas de inconstitucionalidade nº 2390, 2397, e 2386 conhecidas e julgadas improcedentes. Ressalva em relação aos Estados e Municípios, que somente poderão obter as informações de que trata o art. 6º da Lei Complementar nº 105/2001 quando a matéria estiver devidamente regulamentada, de maneira análoga ao Decreto federal nº 3.724/2001, de modo a resguardar as garantias processuais do contribuinte, na forma preconizada pela Lei nº 9.784/99, e o sigilo dos seus dados bancários.

(ADI 2859, Relator(a): DIAS TOFFOLI, Tribunal Pleno, julgado em 24-02-2016, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-225  DIVULG 20-10-2016  PUBLIC 21-10-2016)

[7] I – O art. 6º da Lei Complementar 105/01 não ofende o direito ao sigilo bancário, pois realiza a igualdade em relação aos cidadãos, por meio do princípio da capacidade contributiva, bem como estabelece requisitos objetivos e o translado do dever de sigilo da esfera bancária para a fiscal; II – A Lei 10.174/01 não atrai a aplicação do princípio da irretroatividade das leis tributárias, tendo em vista o caráter instrumental da norma, nos termos do artigo 144, § 1º, do CTN.

ARTIGO DA SEMANA –  Meio ambiente na Reforma Tributária

João Luís de Souza Pereira. Advogado. Mestre em Direito. Membro da Comissão de Direito Financeiro e Tributário do IAB. Professor convidado das pós-graduações da FGV/Direito Rio e do IAG/PUC-Rio.

A Reforma Tributária dos Tributos Sobre o Consumo, aprovada pela Emenda Constitucional nº 132/2023, indica que os legisladores têm preocupação com as relações existentes entre a tributação e o meio ambiente.

A utilização da tributação como forma de preservação do meio ambiente é consequência da função extrafiscal dos tributos.

Tradicionalmente, tributos extrafiscais eram aqueles cuja função principal era servir ao Poder Executivo como um instrumento de política econômica. Assim, além de reduzir ou aumentar a taxa de juros, por exemplo, o Presidente da República poderia, manejando alguns tributos, fazer determinadas intervenções na economia. 

A compreensão da função extrafiscal evoluiu.

Atualmente, a extrafiscalidade adquiriu uma conotação mais ampla, de modo a identificar a utilização de tributos para estimular ou desestimular determinada conduta das pessoas de modo a alcançar determinada política econômica, ambiental, cultural, social, etc… 

Em relação ao meio ambiente, a função extrafiscal tem sido objeto de muitos estudos e debates acadêmicos. JOSÉ MARCOS DOMINGUES, por exemplo, em sua conhecida obra Direito Tributário e Meio Ambiente[1], afirma que “o princípio determina prioritariamente ao Poder Público que gradue a tributação de forma a incentivar atividades, processos produtivos ou consumos ‘ecologicamente corretos’ ou envrironmentally friendly (literalmente, amistosos, adequados sob a ótica ambientalista, numa palavra não-poluidores), e desestimular o emprego de tecnologias defasadas, a produção e o consumo de bens ‘ecologicamente incorretos’ ou not environmentally friendly (isto é, nefastos à preservação ambiental). É, como se percebe, o campo da tributação extrafiscal”.

O primeiro dispositivo da EC 132/2023 que indica a utilização de tributo como meio de preservação do meio ambiente é o art. 43, §4º, introduzido à Constituição, dispondo que “Sempre que possível, a concessão dos incentivos regionais a que se refere o § 2º, III, considerará critérios de sustentabilidade ambiental e redução das emissões de carbono”.

Portanto, para além dos requisitos legais já previstos em lei, os beneficiários de incentivos fiscais regionais deverão submeter à aprovação dos órgãos competentes projetos que sejam ambientalmente sustentáveis.

E seguida, a EC 132/2023 introduziu um novo parágrafo ao art. 145, da Constituição, prevendo que  “O Sistema Tributário Nacional deve observar os princípios da simplicidade, da transparência, da justiça tributária, da cooperação e da defesa do meio ambiente”.

Por alteração à Constituição, a defesa do meio ambiente passa a ser considerada um princípio constitucional tributário, integrando a relação das limitações constitucionais ao poder de tributar, ao lado da legalidade, capacidade contributiva, irretroatividade, etc… Trata-se de uma enorme evolução na relação tributação/meio ambiente. 

A partir de agora, a lei tributária que reduzir a tributação sobre atividade potencialmente poluidora deverá ser considerada inconstitucional. Do mesmo modo, a lei que aumentar tributo sobre atividade ecologicamente sustentável igualmente será violadora da Constituição. Em ambos os casos a inconstitucionalidade decorrerá da inobservância da defesa do meio ambiente pela lei tributária federal, estadual ou municipal.

É importante ressaltar, ainda, que o princípio constitucional tributário da defesa do meio ambiente independe de definição, complementação ou regulamentação por lei complementar, ordinária ou norma infralegal.

Basta que a norma tributária proteja atividade potencialmente poluidora para haver violação à defesa do meio ambiente.

Basta que a norma imponha tributação mais severa sobre atividade ambientalmente sustentável para ficar configurada a violação à Constituição. 

A rigor, a simples existência do art. 145, §2º, já seria suficiente para afirmar a necessidade da tributação defender o meio ambiente.

Mas o legislador foi além e criou o Imposto Seletivo (art. 153, VIII, da Constituição), da competência da União, que incidirá sobre “produção, extração, comercialização ou importação de bens e serviços prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente, nos termos de lei complementar”.

Nesta ordem de ideias, sem prejuízo da incidência tributária mais gravosa de uma maneira geral,  a produção, extração, comercialização ou importação de bens e serviços prejudiciais ao meio ambiente estarão sujeitos a um imposto específico.

Em boa hora, a EC 132/2023 também trouxe a defesa do meio ambiente para o IPVA.

Segundo o art. 155, § 6º, II, o IPVA poderá ter alíquotas diferenciadas em função do tipo, do valor, da utilização e do impacto ambiental.

Então, cabe aos Estados e ao DF apresentarem projetos de lei fixando alíquotas menores do imposto sobre a propriedade de veículos elétricos, bem como para aqueles que utilizem combustíveis menos poluentes, caso do AEHC e do GNV.

Curiosamente, a EC 132/2023, talvez concentrada na seletividade apenas no novo imposto da competência da União, não trouxe previsões expressas quanto à preservação do meio ambiente no que se refere ao IBS/CBS.

No entanto, é evidente que a tributação do IBS/CBS deverá observar a preservação do meio ambiente ao tributar as atividades com bens e serviços.

As alíquotas do IBS/CBS deverão ser fixadas em razão da natureza ecologicamente sustentável do bem ou serviço.

Também é evidente que, em observância ao art. 145, §2º, da Constituição, a desoneração de bens de capital de que trata o art. 156-A, §5º, V, não poderá contemplar atividades que não preservem o meio ambiente e/ou sejam dedicadas à produção de bem ou prestação de serviços poluidores.

A lei complementar que venha a dispor sobre regime de tributação específico do IBS sobre combustíveis (art. 156, §6º, I, “a”) também deve levar em consideração a natureza mais ou menos poluidora do combustível na fixação das alíquotas do tributo.     

Serviços de hotelaria que sejam desenvolvidos sem o uso adequado/reaproveitamento da água, com a utilização de energia de maior impacto ambiental deverão merecer tributação mais gravosa.

Do mesmo modo, os produtos da Cesta Básica Nacional de Alimentos (art. 8º, da EC 132/2023) que sejam produzidos com uso intensivo de agrotóxicos, em regiões de preservação ambiental ou com a utilização inadequada de recursos naturais não poderão se submeter à alíquota zero do IBS/CBS, sob pena de transgressão ao princípio constitucional tributário da defesa do meio ambiente.

Desnecessário dizer que os municípios deverão adequar as legislações do IPTU de modo a reduzir a tributação sobre a propriedade de imóveis projetados ou reformados de modo a reutilizar água e proporcionar o uso racional ou a economia de energia.

A EC 132/2023 deu um passo importante. Agora é vez das leis tributárias complementares e ordinárias darem cumprimento à defesa do meio ambiente.    


[1] DOMINGUES, José Marcos. Direito Tributário e Meio Ambiente. Rio de Janeiro: Renovar, 1999

STF valida créditos milionários da tese do século

Decisão do ministro Luiz Fux garante créditos de R$ 4,4 milhões à empresa do setor têxtil Manatex

A primeira manifestação do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre a estratégia da Fazenda Nacional para tentar derrubar decisões judiciais que concederam créditos da “tese do século” a contribuintes, logo após a decisão de mérito da Corte sobre o assunto, é favorável às empresas. O ministro Luiz Fux não admitiu uma ação rescisória da União contra R$ 4,4 milhões em créditos da Manatex, empresa do setor têxtil de Santa Catarina.

Apesar de ser monocrática (de um único ministro), a decisão é importante para várias empresas. Isso porque ela derruba uma tese usada em centenas de ações da Fazenda. Cerca de 700 ações rescisórias foram protocoladas contra empresas com créditos acima de R$ 1 milhão, segundo o procurador da Fazenda Nacional, Paulo Mendes de Oliveira, coordenador-Geral de Atuação Judicial perante ao STF (CASTF). Ou seja, no mínimo, o impacto financeiro para o governo nesta tese é de R$ 700 milhões.

Essas empresas, como a Manatex, ingressaram com a ação para excluir o ICMS da base de cálculo do PIS e da Cofins após o julgamento do mérito pelo STF, em março de 2017, e obtiveram o trânsito em julgado (quando não cabe mais recurso) da decisão favorável antes do julgamento dos embargos de declaração, que modularam os efeitos do entendimento da Corte, em maio de 2021.

Em 2017, o Supremo julgou inconstitucional a inclusão do ICMS na base de cálculo desses impostos federais. Quatro anos depois, restringiu para frente os efeitos, para só valer a partir de março de 2017 – exceto para quem já tivesse processo em andamento (RE 574.706).

Só que entre março de 2017 e maio de 2021, contribuintes obtiveram na Justiça decisões favorável, que geraram milhões em créditos tributários. No caso da Manatex, protocolou em agosto de 2017 – cinco meses após o STF julgar o mérito – e a decisão definitiva veio em fevereiro de 2021 – dois meses antes do julgamento do recurso. Isso deu a ela o direito de reaver os impostos pagos a mais desde agosto de 2012.

Foi justamente porque a decisão definitiva no processo da Manatex foi proferida antes do julgamento dos embargos no STF que Fux deu razão à companhia. “O acórdão rescindendo, à época de sua formalização, estava em harmonia com o entendimento do Plenário desta Corte relativo ao referido tema de repercussão geral, o que inviabiliza sua rescisão”, disse, na decisão da última quarta-feira, 28 (RE 1.468.946).

O ministro relator do recurso citou vários precedentes da Corte que não permitem a ação rescisória nesse tipo de situação. O principal deles foi o Tema 136: “Não cabe ação rescisória quando o julgado estiver em harmonia com o entendimento firmado pelo Plenário do Supremo à época da formalização do acórdão rescindendo, ainda que ocorra posterior superação do precedente”. Com isso, Fux não analisou os pedidos da Fazenda.

O advogado Gustavo Taparelli, sócio de tributário do escritório Abe Advogados, diz que a decisão de Fux, mesmo que monocrática, é um alento para os contribuintes, pois traz segurança jurídica. “Empresas entraram na Justiça, ganharam, tiveram o trânsito em julgado, fizeram as compensações tributárias e, depois, recebem na cabeça uma ação rescisória dizendo que deveriam ter se atentado ao julgamento dos embargos e não ao trânsito em julgado dos seus próprios processos”, afirma.

Para a PGFN, a empresa só poderia reaver os créditos até março de 2017 e não até o ano de 2012. Por isso, entrou com a ação rescisória para anular o acórdão da Manatex e adequá-lo ao entendimento do STF após os embargos.

De acordo com o procurador Paulo Mendes de Oliveira, a decisão de Fux é “absolutamente isolada” e a única que se tem notícia até então. Em outros recursos que subiram ao STF, outros ministros têm dito que a matéria é infraconstitucional, o que daria ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) a palavra final.

Porém, em outubro do ano passado, o próprio STJ passou a responsabilidade para o STF julgar o assunto (REsp 2088760). De toda forma, a PGFN vai recorrer, principalmente porque, segundo Paulo Mendes, a maioria dos Tribunais Regionais Federais (TRFs) tem dado vitória à União.

Para o procurador, o Tema 136 – base da argumentação do ministro Fux – não deve ser aplicado porque não havia um precedente definitivo da tese do século ainda, já que pendia o julgamento dos embargos. “Não é justo que seja formada uma coisa julgada quando o tema está pendente de definição”, afirma. “Uns deram sorte de o processo transitar em julgado antes”, conclui.

A União só teria razão se o contribuinte tivesse uma decisão definitiva após o julgamento da modulação, diz o tributarista Tércio Chiavassa, sócio de Pinheiro Neto. “Aí caberia a rescisória”. O advogado afirma que Fux apenas aplicou a jurisprudência do STF já consolidada nesse tema. “Ainda que tenha mudado posteriormente o período em questão, foi uma decisão que estava de acordo com o que decidiu o Supremo no momento”, diz.

Segundo o tributarista Paulo Leite, do Stocche Forbes Advogados, havia um certo receio do STF aplicar entendimento semelhante à tese da quebra automática da coisa julgada (Temas 881 e 885) em temas tributários. “Havia uma preocupação se o STF poderia revisar o entendimento, como houve de flexibilização da coisa julgada. Mas ele reafirmou que ação rescisória não é instrumento de uniformização de jurisprudência”, afirma.

Procurada, a Manatex e advogada que atua pela empresa não responderam até o fechamento desta edição.

Fonte: https://valor.globo.com/legislacao/noticia/2024/03/08/stf-valida-creditos-milionarios-da-tese-do-seculo.ghtml.

ARTIGO DA SEMANA – Autorregularização de débitos junto à Receita Federal

João Luís de Souza Pereira. Advogado. Mestre em Direito. Professor convidado das pós-graduações da FGV/Direito Rio e do IAG/PUC-Rio.

Como parte do esforço para cumprir a meta de déficit zero, acaba de ser publicada a Lei nº 14.640/2023, instituindo um programa de autorregularização incentivada de tributos administrados pela Secretaria da Receita Federal do Brasil.

Este novo programa de autorregularização é bem-vindo, sobretudo diante das amplas possibilidades de transação tributária para os débitos já inscritos na dívida ativa da União.

A autorregularização da Lei nº 14.740/2023 alcança os débitos ainda não constituídos, mesmo que o contribuinte já esteja sob ação fiscal, bem como aqueles objeto de auto de infração lavrados entre 30/11/2023 e o prazo final para adesão ao programa (art. 2º, §1º).

A adesão ao programa, por sua vez, deverá ocorrer no prazo de 90 (noventa) dias, contados a partir da futura regulamentação da Lei nº 14.740/2023 (art. 2º).

O art. 2º, da Lei nº 14.740/2023, prevê os benefícios para quem aderir à autorregularização: pagamento ou parcelamento do valor integral dos tributos confessados, acrescidos dos juros de mora (Taxa SELIC), com afastamento da incidência das multas de mora e de ofício.

Como se vê, a Lei nº 14.740/2023 está conferindo o tratamento de denúncia espontânea a débitos que venham a ser pagos ou parcelados no âmbito da autorregularização, incluindo aqueles que, de acordo com o art. 138, do CTN, não são mais espontâneos.

A Lei nº 14.740/2023 também prevê a possibilidade de liquidação do débito inclusive com o afastamento dos juros de mora. Para tanto, o contribuinte deverá pagar, no mínimo, 50% (cinquenta por cento) do débito à vista e quitar o saldo em até 48 (quarenta e oito) prestações mensais e sucessivas (art. 3º).

Melhor ainda: optando por esta modalidade de liquidação do débito, no pagamento dos 50% do sinal, admite-se a utilização de créditos de prejuízo fiscal e base de cálculo negativa da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL) de titularidade do sujeito passivo, de pessoa jurídica controladora ou controlada, de forma direta ou indireta, ou de sociedades que sejam controladas direta ou indiretamente por uma mesma pessoa jurídica, apurados e declarados à Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil, independentemente do ramo de atividade, bem como o uso de precatórios próprios ou adquiridos de terceiros, na forma do § 11 do art. 100 da Constituição Federal. (art. 3º, §§2º e 7º).

Vale destacar que a Lei nº 14.740/2023 não faz qualquer restrição quanto aos tributos que poderão ser objeto da autorregularização. Consequentemente, tributos retidos e não recolhidos, bem como aqueles acrescidos de multa qualificada, que geralmente não são admitidos em condições especiais de pagamento, poderão ser pagos/parcelados com as benesses da nova lei.

Lamentavelmente, os contribuintes que optaram pelo SIMPLES NACIONAL não foram contemplados na autorregularização.

Se a intenção é proporcionar a autorregularização e ajudar o caixa da União, melhor seria estender o programa a um espectro maior de devedores.

Mas, indiscutivelmente, a Lei nº 14.740/2023 resolverá o problema de muitos contribuintes e também proporcionará incremento na arrecadação para que seja alcançada meta do déficit zero…

ARTIGO DA SEMANA – Reflexos da ADI 5635 nos Fundos de Combate à Pobreza

João Luís de Souza Pereira. Advogado. Mestre em Direito. Professor convidado das pós-graduações da FGV/Direito Rio e do IAG/PUC-Rio.

No recente julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 5635 (ADI 5635) o Supremo Tribunal Federal concluiu pela constitucionalidade do Fundo Estadual de Estabilização Financeira (FEEF) e de seu sucessor, o Fundo Orçamentário Temporário (FOT)[1].

O STF, contudo, fez duas ressalvas: (i)deve-se afastar qualquer interpretação que vincule as receitas do FEEF/FOT a um programa governamental específico e (ii) há de se garantir a não cumulatividade do ICMS relativo ao depósito para o FEEF/FOT, sem prejuízo da vedação ao aproveitamento indevido dos créditos.

Embora o acórdão deste julgamento ainda não esteja disponível, as conclusões da ata de julgamento levam a reflexões importantes sobre o tema.

Uma primeira observação envolve decisões do próprio do STF em relação a outro fundo muito conhecido dos contribuintes, o Fundo Especial de Combate à Pobreza (FECP).

Curiosamente, ao analisar as leis estaduais sobre Fundos de Combate à Pobreza, o STF não cravou a natureza jurídica dos pagamentos realizados pelos contribuintes e destinados a estes Fundos (de combate à pobreza).

Os diversos julgados do STF sobre fundos de combate à pobreza concluíram pela constitucionalidade das normas que os instituíram tão somente porque o tema teria sido “constitucionalizado” pelas Emendas Constitucionais 31/2000 e 42/2003.

Então, não há pronunciamento do STF sobre a natureza jurídica dos pagamentos realizados pelos particulares ao FECP.

Todavia, ao decidir que os recursos do FEEF/FOT não podem ter uma destinação específica, o STF definiu a natureza jurídica dos “depósitos” pagos pelos contribuintes a este fundos: tratam-se, na verdade, de impostos, no mínimo de um adicional do ICMS.

Esta conclusão é óbvia porque, caso se tratasse de outra espécie tributária, o STF não teria feito a ressalva da interpretação conforme à Constituição para afastar a destinação específica do produto da arrecadação dos depósitos para o “FEEF/FOT”.

Exatamente por entender que os “depósitos” ao FEEF/FOT são impostos, é que o STF concluiu pela observância do art. 167, IV, da Constituição, que veda a destinação específica do produto da arrecadação dos impostos.

A obviedade da natureza jurídica de imposto conferida aos “depósitos” para o FEEF/FOT também está na necessidade de observância da não cumulatividade quanto a este tributo.

A propósito, a observância do princípio da não cumulatividade ao FEEF/FOT pode gerar situação curiosa que deve ser resolvida pela via de embargos de declaração.

Vejamos.

Os “depósitos” ao FEEF/FOT são pagos à alíquota de 10% sobre a diferença do valor do ICMS calculado sem e com a utilização de benefícios ou incentivos fiscais concedidos.

No entanto, não é raro verificar que há incentivos fiscais que são concedidos mediante a aplicação de uma alíquota reduzida sobre a receita da saída de mercadorias, porém sem qualquer direito a crédito.

Portanto, ao aderir ao incentivo fiscal, o contribuinte renuncia ao direito de creditar-se do ICMS decorrente dos insumos aplicáveis à sua atividade.

Daí cabe a pergunta: como manter-se no incentivo fiscal que não admite qualquer direito a crédito, pagar o “depósito” ao FEFF/FOT e ao mesmo tempo observar a não cumulatividade?

Voltando à questão do FECP, a decisão do STF sobre o FEEF/FOT serve de precedente para que também se conclua pela natureza jurídica de imposto dos pagamentos destinados ao fundos de combate de pobreza, sobretudo porque as normas instituidoras do FECP deixam claro que o pagamento realizado pelos contribuintes são adicionais do ICMS.

Consequentemente, os pagamentos ao FECP não podem subsistir porque não resistem ao confronto com o art. 167, IV, da Constituição.

As leis instituidoras de fundos de combate à pobreza definem a destinação específica do produto da arrecadação e as Emendas Constitucionais 31/2000 e 42/2003 não fazem qualquer alteração ao princípio da não afetação da receita de impostos.

Logo, adicionais de ICMS, caso dos pagamentos destinados a FECP, FEEF ou FOT, não podem ter destinação específica para o produto de suas arrecadações.


[1] Decisão: O Tribunal, por maioria, julgou parcialmente procedente o pedido formulado na presente ação direta de inconstitucionalidade, para conferir interpretação conforme a Constituição ao art. 2º da Lei nº 7.428/2016 e ao art. 2º da Lei nº 8.645/2019, ambas do Estado do Rio de Janeiro, de modo a (i) afastar qualquer exegese que vincule as receitas vertidas ao FEEF/FOT a um programa governamental específico; e (ii) garantir a não cumulatividade do ICMS relativo ao depósito instituído, sem prejuízo da vedação ao aproveitamento indevido dos créditos; salientou que se aplicam aos depósitos em questão as regras próprias do ICMS; e, ao final, fixou a seguinte tese de julgamento: “São constitucionais as Leis nºs 7.428/2016 e 8.645/2019, ambas do Estado do Rio de Janeiro, que instituíram o Fundo Estadual de Equilíbrio Fiscal – FEEF e, posteriormente, o Fundo Orçamentário Temporário – FOT, fundos atípicos cujas receitas não estão vinculadas a um programa governamental específico e detalhado”. Tudo nos termos do voto do Relator, vencidos os Ministros André Mendonça, Cristiano Zanin e Edson Fachin. Plenário, Sessão Virtual de 6.10.2023 a 17.10.2023.

×