No território aduaneiro brasileiro, tema recorrente são as importações indiretas. Sobre elas sempre orbitam questões intrincadas. Vamos dirigir nosso olhar para três aspectos relativos à importação indireta por encomenda. Sua definição encontra-se no artigo 3º da IN RFB no 1.861/2018, como sendo aquela em que a pessoa jurídica importadora é contratada para promover, em seu nome e com recursos próprios, o despacho aduaneiro de importação de mercadoria estrangeira por ela adquirida no exterior para revenda a encomendante predeterminado. Sua base legal localiza-se na Lei no 11.281/2006, em seus artigos 11 a 14.
É fundamental, desde logo, destacar qual a relação jurídica entre o importador e o encomendante. Nessa modalidade, é da sua essência ocorrerem dois negócios jurídicos distintos e autônomos de compra e venda.[1] O primeiro; internacional, entre o exportador e o importador, e o segundo entre esse e o encomendante predeterminado. É pressuposto dessa modalidade de importação, para sua higidez em face dos moldes prescritos na legislação aduaneira de regência, que o importador aufira lucros na operação, adicionando sua margem ao valor dos custos de importação da mercadoria. A diferença entre essa modalidade e a importação direta é que na indireta o importador é contratado previamente por um terceiro interessado (encomendante) para realizar em seu nome e com recursos próprios, o despacho aduaneiro da mercadoria que irá adquirir no exterior para, após nacionalizá-la, revendá-la ao interessado previamente determinado. A encomenda não se confunde, igualmente, com a outra modalidade de importação indireta; a conta e ordem, definida no artigo 2º da IN RFB no 1.861/2018[2], eis que essa se caracteriza pela prestação de serviços[3] do importador ao real adquirente para promover em seu nome despacho de importação de mercadoria por aquele adquirida no exterior. A natureza jurídica dos vínculos e a forma de sua remuneração distinguem bem as duas espécies de importação indireta.
Além dessas distinções fundamentais e por decorrência delas, observa-se que na encomenda há uma importação própria com revenda posterior à nacionalização acobertada pela emissão de uma nota fiscal de saída para circulação jurídica onerosa das mercadorias nacionalizadas. Na conta e ordem, ao contrário, o importador emite nota de saída para as mercadorias do real adquirente circularem fisicamente, não configurando a sua emissão uma compra e venda, como determina o artigo 7º, §1º, I, da IN RFB no1.861/2018. Para sua remuneração o importador emitirá nota fiscal de serviços (artigo 2º, §2º e 7º, III, da IN RFB no 1.861/2018). As relações jurídicas em ambas as modalidades devem estar formalizadas em contrato a ser apresentado no Pucomex (Portal Único de Comércio Exterior, artigo 5º, II, IN RFB no 1.861/2018). As obrigações fiscais e contábeis de ambas as espécies estão previstas nos artigos 7º ao 10º da IN RFB no 1.861/2018.
Dito isso, destacaremos três aspectos da importação por encomenda, a saber: (a) os limites da habilitação no Radar[4] nas operações de importação por encomenda; (b) equiparação do encomendante a industrial para efeito de incidência do IPI; (c) a previsão da IN no 2.090/2022 sobre controle de valoração aduaneira nessa operação.
Dentre os momentos em que a Aduana exerce sua função de controle aduaneiro, a habilitação prévia dos intervenientes para atuarem no comércio exterior, conhecida popularmente como “habilitação no Radar”, exemplifica um controle prévio à operação. Ele é importante para ampliar a capacidade de gestão de risco aduaneiro e permitir maior celeridade no fluxo das mercadorias no despacho e desembaraço, momentos mais críticos do procedimento de nacionalização. Nesse sentido, consoante regras vigentes previstas nos artigos 16 e 17 da IN RFB no 1.984/2020, na importação os intervenientes podem se habilitar em três modalidades: expressa, limitada e ilimitada. Não há limites quantitativos para as importações nas modalidades expressa e ilimitada.
Na modalidade limitada porém, os habilitados estão sujeitos a limites de US$ 50 mil ou US$ 150 mil a cada período consecutivo de seis meses considerando o valor aduaneiro das mercadorias que importarem. As operações indiretas exigem a habilitação tanto do importador, quanto do encomendante e do real adquirente (artigo 4º, I, IN RFB no 1.861/2018).
E os limites para importações no período consecutivo de seis meses a serem considerados, devem ser do importador ou dos terceiros? Prevê o artigo 17, §2º, I e II, da IN RFB no 1.984/2020 que na importação por conta e ordem, como é o real adquirente quem adquire a mercadoria no exterior, deve ser observado o seu limite de habilitação.
Na encomenda é previsto que serão observados os limites tanto do importador, quanto do encomendante. Ora se a operação entre eles, nessa modalidade, é de compra e venda, sendo a importação toda promovida pelo importador, o limite de habilitação a ser considerado, previsto no artigo 17, da IN no 1.984/2020, deveria ser exclusivamente do importador. Ele quem deve possuir os recursos próprios para a operação, ele quem irá negociar e adquirir o produto no exterior.
A etapa seguinte é uma operação interna, como outra qualquer, com produto já nacionalizado, portanto o encomendante não está diretamente inserido nos riscos aduaneiros a serem gerenciados e controlados pela Aduana. Nesse sentido, a avaliação da capacidade econômica e limites quantitativos, cremos, dever-se-ia restringir ao importador, sem prejuízo da sua habilitação e do encomendante e da vinculação de ambos, via contrato, ser comprovada no Pucomex.
O segundo ponto cinge-se à equiparação do encomendante a industrial para efeitos de incidência do IPI, nos termos do que prevê o artigo 13, da Lei no11.281/2006. A exigência do IPI na importação e nas revendas das mercadorias nacionalizadas e não submetidas à industrialização já foi julgada pelo STF, em 2020, no RE no 946.648/SC, Tema 906.[5] Nesse julgado, com manifestações e votos de vários ministros, com sustentações orais e pareceres contra e a favor, após serem discutidos os limites da competência tributária para exigência do IPI, considerando o aspecto material da sua hipótese de incidência, o princípio da isonomia, o trato da matéria nas operações internas, assim como o respeito ao princípio da nação mais favorecida do Gatt (General Agreement on Tariffs and Trade), a Corte Maior, por maioria, validou a equiparação do importador a industrial e a cobrança do IPI nas revendas de produtos industrializados nacionalizados.
Fica evidente da leitura da íntegra do acórdão que o ponto fundamental para reconhecer a constitucionalidade da cobrança foi o fato de que seria a cobrança do IPI na revenda do produto nacionalizado sobre o valor de revenda no mercado interno (preço de saída), com o acréscimo da margem de lucro do importador, que o colocaria em condições de igualdade com a incidência sobre o produto industrializado no mercado interno. Se o IPI só incidisse sobre o desembaraço aduaneiro o produto importado seria integrado à economia nacional em condições mais vantajosas em relação ao produto nacional industrializado.[6]
Ainda que se tenha defendido posição muito controversa de que a Constituição, em seu artigo 153, IV, teria outorgado competência à União Federal para tributar o produto industrializado independente do processo de industrialização, restou evidente que as equiparações não podem ser feitas de forma arbitrária e distante do aspecto material do imposto, sob pena se invadir a competência tributária estadual do ICMS.[7]
Atentos à decisão do STF, considerando as acerbas discussões para se admitir a equiparação do importador a industrial e a incidência do IPI na revenda do produto industrializado importado, a equiparação do encomendante a industrial se afigura ainda mais indevida, distanciando-se, com mais evidência, dos limites da constitucionalidade e da legalidade na cobrança desse imposto.
O encomendante não importa, não industrializa e não tem relação com os fatos geradores previstos no art. 46, I e II, do CTN. Ele é adquirente de mercadoria já nacionalizada que circula no mercado interno, como qualquer outro distribuidor, comerciante ou consumidor final que adquirisse de fábrica nacional e não é, por isso, equiparado a industrial.
Portanto, além da equiparação do encomendante ser ilegítima, ela ainda fere o princípio da isonomia, pois, como dissemos, no mercado interno, um distribuidor que adquire da indústria suporta o IPI na condição de contribuinte de fato, ou consumidor final, e não como contribuinte equiparado do imposto. Essa realidade finda por levar a grandes celeumas e processos decorrentes de autuações aduaneiras, em que a fiscalização entende que há interposição fraudulenta e ocultação do encomendante com objetivo de se quebrar a cadeia do IPI e fugir à sua equiparação a industrial.
O terceiro e último aspecto em destaque refere-se à valoração aduaneira nas importações por encomenda. Na recente IN RFB no 2.090/2022[8], artigo 4º, §5º verifica-se: “…vedação para a utilização do método do valor de transação (…) aplica-se ainda ao caso em que haja vinculação entre o vendedor estrangeiro e o encomendante predeterminado, de que trata a Instrução Normativa RFB no 1.861, de 2018, exceto se ficar demonstrado que a vinculação não influenciou o preço”.
É dizer, de um lado, a modalidade por encomenda pressupõe autonomia na relação do importador com o exportador destinada a nacionalização do produto que será, em seguida, revendido ao encomendante. Esse não mantém contato com o exportador para negociar os valores da importação, tão pouco fecha o seu câmbio, tarefa destinada com exclusividade ao importador (artigo 3º, §5º, IN RFB no 1.861/2018), inclusive relacionada à exigência de que utilize recursos próprios. É dele a compra e venda internacional.
O fato de o encomendante ter vínculo com o exportador é irrelevante para a valoração aduaneira, considerando a liberdade negocial que deve ter o importador nessa modalidade de importação. O foco deve ser se o importador por encomenda possui, ou não, vínculo com o exportador. Nesse sentido já se manifestou a RFB através da Solução de Consulta no 120 da Cosit, datada de 28/09/2020.[9] Ela respondeu negativamente a questionamentos sintetizados na indagação: se houver vínculo entre o exportador e o encomendante, mas não houver entre o exportador e o importador por encomenda, esse vínculo deve ser informado em algum local da DI? A resposta categórica foi não.
O fundamento: “especificamente, na importação por encomenda, ocorre a relação de compra e venda, entre o exportador e o importador por encomenda. Nesse sentido, deve-se indicar a existência de eventual vínculo, a que se refere a legislação aduaneira entre o exportador e o importador por encomenda”
Nesse caso, como as soluções de consulta têm “efeito vinculante no âmbito da RFB” e “respaldam o sujeito passivo que as aplicar, ainda que não seja o respectivo consulente”, nos termos do artigo 33, da IN RFB no 2.058/2021, parece-nos indevida a previsão do §5º da IN RFB no 2.090/2022 quando pretende exercer o controle do valor aduaneiro com base na relação entre o exportador e o encomendante.
[1] Definição de compra e venda do Código Civil Brasileiro: Art. 481. Pelo contrato de compra e venda, um dos contratantes se obriga a transferir o domínio de certa coisa, e o outro, a pagar-lhe certo preço em dinheiro.
[2] “Art. 2º Considera-se operação de importação por conta e ordem de terceiro aquela em que a pessoa jurídica importadora é contratada para promover, em seu nome, o despacho aduaneiro de importação de mercadoria estrangeira, adquirida no exterior por outra pessoa jurídica.”
[3] Definição de prestação de serviço do Código Civil Brasileiro: “Art. 593. A prestação de serviço, que não estiver sujeita às leis trabalhistas ou a lei especial, reger-se-á pelas disposições deste Capítulo. Art. 594. Toda a espécie de serviço ou trabalho lícito, material ou imaterial, pode ser contratada mediante retribuição.”
[4] Para manter a expressão corriqueiramente utilizada em comércio exterior, mas imprecisa. A rigor, as pessoas não são habilitadas “no RADAR”, mas habilitadas “para atuarem no comércio exterior”, via SISCOMEX/PUCOMEX, conforme IN RFB no 1.984/2020.
[5] Tema 906 STF: “É constitucional a incidência do Imposto sobre Produtos Industrializados – IPI no desembaraço aduaneiro de bem industrializado e na saída do estabelecimento importador para comercialização no mercado interno”.
[6] Trecho do voto do Ministro Relator para o Acórdão Alexandre de Moraes: “Veja-se que, nessa fase, o encargo tributário ocorre na primeira saída da mercadoria do estabelecimento do importador, porque é nesse exato momento que o importador se encontra em condições de igualdade com o industrial brasileiro, e não no momento do despacho aduaneiro, no qual a tributação teve por objetivo somente neutralizar os incentivos fiscais concedidos pelo país exportador.” Trecho do Parecer de Heleno Taveira Torres transcrito no voto do Min. Alexandre de Morais: “…para garantir equivalência de tributação no preço do produto no mercado interno, é necessária a incidência do IPI tanto no desembaraço aduaneiro (artigo 46, I e II e artigo 51, I do CTN) quanto na etapa de saída do estabelecimento de “revenda” (com toda a margem agregada de preço dirigido ao consumo, inclusive margem de lucro do estabelecimento)…”.
[7] Voto do Ministro Marco Aurélio, citando José Roberto Vieira: “Ora, quando o legislador ordinário, mediante equiparações fictícias, contempla operações realizadas por estabelecimentos que não industrializaram os produtos, meros comerciantes, submetendo-as à tributação pelo IPI, escapa, a toda evidência, dos lindes da moldura hipotética constitucional, afastando-se dos cancelos da operação realizada pelo industrial, para penetrar na seara das operações exclusivamente mercantis, invadindo a arena de incidência do ICMS.” No mesmo sentido: MACHADO, Hugo de Brito. Comentários ao Código Tributário Nacional. São Paulo: Atlas, 2003, p. 521.
[8] Tema recente da Coluna na pesquisa detalhada de Leonardo Branco que vale conferir: https://www.conjur.com.br/2022-jul-19/carf-doze-pontos-regra-valoracao2
[9]Disponível em: http://normas.receita.fazenda.gov.br/sijut2consulta/link.action?visao=anotado&idAto=112764. Acesso em 28/07/2022.
Fernando Pieri Leonardo é sócio-fundador da HLL Advogados, mestre em Direito pela UFMG, pós-graduado em Direito Aduaneiro Europeu pela Universidade Católica de Lisboa, multiplicador do Programa OEA da RFB, fundador e presidente da Comissão de Direito Aduaneiro da OAB-MG, acadêmico da International Customs Law Academy (Icla) e professor de pós-graduação na PUC-MG, Enap, IBDT, Ibmec e Cedin.
Fonte: Revista Consultor Jurídico, 2 de agosto de 2022, 9h22