ITBI e IPTU: o STJ e os impostos municipais que incidem sobre imóveis (parte 1)

Dois dos três principais tributos municipais têm incidência sobre imóveis: o Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU) e o Imposto sobre a Transmissão de Bens Imóveis (ITBI). Juntamente com o Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza (ISSQN, mais conhecido apenas como ISS), eles compõem grande parte das receitas próprias nos mais de 5.500 municípios brasileiros.

A previsão desses tributos está no artigo 156 da Constituição, mas, devido ao regulamento infraconstitucional, muitas controvérsias jurídicas envolvendo ITBI e IPTU são resolvidas pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ). A jurisprudência do STJ sobre esses tributos é o tema da reportagem especial em duas partes que começa a ser divulgada neste domingo. 

Este primeiro texto apresenta julgados da corte sobre o ITBI. O imposto é antigo na literatura jurídica nacional: remonta a 1809, ainda na época do Império, com o chamado “imposto da sisa”. Desde 1891, possui previsão constitucional. É regulado, atualmente, pelos artigos 35 a 42 do Código Tributário Nacional (CTN).

Detalhe importante: as regras do CTN são da época em que o ITBI era de competência estadual, portanto, é preciso analisá-las em conjunto com o regramento constitucional vigente. Uma das principais controvérsias a respeito do tributo é a base de cálculo, já que esse parâmetro influencia o valor a ser pago.

Qual é o valor do imóvel?

Em fevereiro deste ano, a Primeira Seção estabeleceu importante definição a respeito do assunto ao julgar o Tema 1.113 dos recursos repetitivos (REsp 1.937.821). Para o colegiado, a base de cálculo do ITBI deve considerar o valor de mercado do imóvel individualmente determinado, afetado por fatores específicos como o estado de conservação.

A seção de direito público fixou três teses:

1) A base de cálculo do ITBI é o valor do imóvel transmitido em condições normais de mercado, não estando vinculada à base de cálculo do IPTU, que nem sequer pode ser utilizada como piso de tributação; 

2) O valor da transação declarado pelo contribuinte goza da presunção de que é condizente com o valor de mercado, que somente pode ser afastada pelo fisco mediante a regular instauração de processo administrativo próprio (artigo 148 do CTN); 

3) O município não pode arbitrar previamente a base de cálculo do ITBI com respaldo em valor de referência por ele estabelecido de forma unilateral.

De acordo com o relator do recurso, ministro Gurgel de Faria, a expressão “valor venal” contida no CTN deve ser entendida como o valor considerado em condições normais de mercado para as compras e vendas.

Embora seja possível aferir um valor médio, a avaliação de cada imóvel possui especificidades, com oscilações positivas e negativas, que devem ser levadas em conta – lógica diferente, portanto, da estimativa feita para fins de IPTU.

“Cumpre salientar que a planta genérica de valores é estabelecida por lei em sentido estrito, para fins exclusivos de apuração da base de cálculo do IPTU, não podendo ser utilizada como critério objetivo para estabelecer a base de cálculo de outro tributo, o qual, pelo princípio da estrita legalidade, depende de lei específica”, complementou o relator.

Fato gerador é a efetiva transferência do imóvel

No AREsp 1.760.009, o STJ reafirmou o entendimento adotado pela corte após decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) no Tema 1.124 da repercussão geral. Segundo esse entendimento, o fato gerador do ITBI somente ocorre com a efetiva transferência da propriedade imobiliária, que se dá mediante o registro no cartório de imóveis.

No julgamento do recurso, em abril de 2022, a Segunda Turma do STJ acrescentou que, mesmo em caso de cisão de empresa com transmissão de imóvel do seu patrimônio, o fato gerador do ITBI é o registro da transferência do bem no cartório.

Nessa demanda, após a cisão de uma empresa em outras quatro, com a transferência de duas fazendas para uma delas, houve o recolhimento de ITBI para o município paulista de São Manuel, em 2012. Dois anos após o pagamento, o georreferenciamento na região constatou que as fazendas pertenciam a outro município do mesmo estado, Igaraçu do Tietê. Após nova transferência de propriedade, valores de ITBI foram pagos a este segundo município, em 2015.

A empresa requereu judicialmente a devolução de valores, alegando que o pagamento feito em 2012 ao município de São Manuel não era devido. O STJ deu razão à empresa, ao concluir que, de fato, a transferência só foi efetivada com o registro do imóvel em 2015, após o processo de georreferenciamento.

Nas palavras do relator, ministro Herman Benjamin: “O STJ entende que, mesmo em caso de cisão, o fato gerador do ITBI é o registro no ofício competente da transmissão da propriedade do bem imóvel, em conformidade com a lei civil, o que, no caso, ocorreu em 2015. Logo, não há como considerar como fato gerador da referida exação a data de constituição das empresas pelo registro de contrato social na Junta Comercial, ocorrido em 2012”.

O relator lembrou que, mesmo antes da decisão do STF, o STJ já havia adotado esse entendimento no AREsp 215.273, de 2012, e em julgados de 2007, como o REsp 771.781 e o REsp 764.808. “O fato gerador do ITBI é o registro imobiliário da transmissão da propriedade do bem imóvel. A partir daí, portanto, é que incide o tributo em comento”, declarou Herman Benjamin no AREsp 215.273.

Devolução do imposto no negócio anulado

O STJ entende que, no caso de anulação da venda do imóvel, o valor pago a título de ITBI é passível de restituição. A discussão ocorreu no EREsp 1.493.162, relatado na Primeira Seção pelo ministro Napoleão Nunes Maia Filho, hoje aposentado.

O negócio que ensejou a transferência de propriedade do imóvel e, por conseguinte, a tributação pelo ITBI não se concretizou em caráter definitivo devido à superveniente declaração de nulidade por sentença judicial transitada em julgado.

O fisco questionou decisão da Segunda Turma do STJ alegando que, mesmo na hipótese de anulação posterior do negócio, o imposto seria devido, e invocou como paradigma um acórdão divergente da Primeira Turma (REsp 1.175.640). Por unanimidade, a seção corroborou o acórdão da Segunda Turma e manteve a condenação imposta ao fisco de devolver o valor do ITBI.

De acordo com o relator, não tendo havido a transmissão da propriedade, já que era nulo o negócio de compra e venda, não há fato gerador do imposto, nos termos do artigo 156, inciso II, da Constituição, e do artigo 35, incisos I, II e III, do CTN, “sendo devida a restituição do correspondente valor recolhido pelo contribuinte”.

Valor de venda ou valor de arrematação?

A transferência de propriedade tributada pelo ITBI pode envolver imóvel arrematado em leilão judicial, o que trouxe para o STJ a discussão sobre a base de cálculo em tais hipóteses. No REsp 1.188.655, em 2010, a Primeira Turma debateu se a base de cálculo do imposto seria o valor da arrematação ou o valor de venda do imóvel – uma diferença significativa, tendo em vista que imóveis leiloados podem ser arrematados por preços bem inferiores aos de mercado.

O relator, ministro Luiz Fux (hoje no STF), destacou que, embora continuassem a chegar ao STJ recursos contra decisões que aceitavam o valor venal como base de cálculo, o entendimento do tribunal, desde 1990, apontava para o valor da arrematação judicial.

O ministro citou dois precedentes nos quais o assunto foi debatido com profundidade, o REsp 863.893, relatado pelo ministro Francisco Falcão em 2006, e o REsp 2.525, relatado pelo ministro Armando Rollemberg (falecido) em 1990. No primeiro desses dois casos, a dúvida sobre a base de cálculo estava entre o valor da arrematação e o valor da avaliação judicial prévia ao leilão.

“No caso concreto – de arrematação judicial do bem imóvel –, o tribunal a quo manifestou-se no sentido de que a base de cálculo do ITBI é o valor da avaliação judicial. Nos termos da jurisprudência supracitada, todavia, tal posicionamento não deve prevalecer, porquanto não há que se falar em registro da transmissão do imóvel quando da avaliação judicial”, explicou o ministro ao citar casos mais antigos, como o REsp 2.525 – o primeiro sobre o assunto.

Neste, o ministro Armando Rollemberg ratificou as razões apresentadas pelo Ministério Público Federal (MPF), segundo as quais a arrematação é uma forma de venda que se processa judicialmente e permite a aquisição de imóveis por preço inferior ao da avaliação. O relator afirmou que o valor atribuído não é o valor alcançado na venda, e não há lógica jurídica que permita a prevalência do valor de avaliação para servir como base de cálculo do tributo.

Desde esse precedente, o STJ decide no sentido de considerar o valor da arrematação como base de cálculo do ITBI – entendimento confirmado, mais recentemente, no AgInt no AREsp 2.050.401, no AREsp 1.542.296 e no AREsp 1.425.219.

Ônus da prova para afastar imunidade tributária

Ao analisar o AREsp 444.193, a Segunda Turma ratificou o entendimento do tribunal segundo o qual, havendo dúvida sobre a real destinação do imóvel, para fins de aplicação da imunidade tributária, cabe à Fazenda Pública apresentar prova de que seu uso estaria desvinculado da finalidade religiosa.

No caso julgado, o fisco municipal questionou se alguns terrenos seriam mesmo para templos adventistas, buscando a cobrança do ITBI na transação. Isso ocorreu após a igreja adquirir imóveis no município e pleitear administrativamente a imunidade tributária.

Em primeira instância, o pedido da igreja foi julgado improcedente, ante a ausência de provas de utilização dos terrenos para a construção de templos. O tribunal estadual reformou a sentença, dando razão à instituição religiosa.

No STJ, o município questionou a decisão, sustentando que não havia provas do uso dos terrenos para a finalidade religiosa, razão pela qual seria devido o recolhimento de ITBI.

O relator, ministro Mauro Campbell Marques, lembrou que havia presunção relativa de veracidade nas declarações da igreja. Assim, segundo ele, caberia à Fazenda Pública, nos termos do artigo 333, inciso II, do Código de Processo Civil, apresentar prova de que os terrenos estariam desvinculados da destinação institucional.

O ministro citou precedentes do tribunal no mesmo sentido. Um deles, de 2007 (Ag 849.285), tratou de controvérsia similar com entidades que gozam de imunidade tributária, porém relacionada ao IPTU. Em qualquer caso, para o STJ, existindo alguma contestação sobre a utilização de imóveis por instituição beneficiada pela imunidade tributária, cabe ao fisco competente produzir a prova.

Alienação onerosa para coproprietário

No REsp 722.752, a Segunda Turma discutiu o caso de quatro coproprietários de seis imóveis urbanos, que extinguiram parcialmente a copropriedade para que cada um deles passasse a ser o único titular de um imóvel. Nessa situação, como ficaria o ITBI?

No recurso relatado pelo ministro Herman Benjamin, o colegiado deu razão ao fisco municipal, que pedia o recolhimento do tributo. Ele comentou que, ao contrário do que entendeu o tribunal estadual, não houve a mera dissolução do condomínio, já que cada coproprietário adquiriu dos demais os 75% do imóvel que não lhe pertenciam.

“O ITBI deve incidir sobre a transmissão desses 75%. Isso porque a aquisição dessa parcela se deu por alienação onerosa: compra (pagamento em dinheiro) ou permuta (cessão de parcela de outros imóveis)”, explicou.

De acordo com o ministro, em razão do reconhecimento de que cada imóvel deve ser tributado de forma autônoma, o STF não permitiu que os municípios considerassem como uma universalidade todos os imóveis de um contribuinte, para fins de progressividade das alíquotas. 

“Ora, se o município não pode considerar o conjunto de imóveis uma universalidade, para fins de cobrança do IPTU, não teria sentido admitir que o contribuinte possa fazê-lo, com o intuito de pagar menos ITBI”, disse o relator.

Esta notícia refere-se ao(s) processo(s): REsp 1937821AREsp 1760009AREsp 215273REsp 771781REsp 764808EREsp 1493162REsp 1175640REsp 1188655REsp 863893REsp 2525AREsp 2050401AREsp 1542296AREsp 1425219AREsp 444193Ag 849285REsp 722752

Fonte: Notícias do STJ

Nulidades no processo administrativo fiscal

No processo administrativo federal, a anulação, revogação e convalidação de atos administrativos encontram-se disciplinadas nos artigos 53 a 55 da Lei nº 9.784/1999,[1] dos quais se extrai a compreensão de que a anulação de atos administrativos ilegais é um dever da Administração Pública e não uma faculdade, inserindo-se, portanto, no contexto da obrigatoriedade e da vinculação à lei e não da discricionariedade.

No Processo Administrativo Fiscal (PAF), regido precipuamente, na esfera federal, pelo Decreto nº 70.235/1972, as nulidades encontram-se previstas no artigo 59 desse ato normativo,[2] em que se consideram nulas a lavratura de atos e termos por pessoa incompetente e a prolação de despacho e decisões por autoridade incompetente, bem como as decisões exaradas com preterição do direito de defesa.

Já o artigo 60 do mesmo decreto cuida das irregularidades, incorreções e omissões, diferentes das nulidades, que são passíveis de validação, por meio de saneamento, nas hipóteses de prejuízo para o sujeito passivo, salvo se este lhes houver dado causa, ou quando não influírem na solução do litígio.

Frise-se que o artigo 59 do Decreto nº 70.235/1972 versa sobre hipóteses normativas de nulidade absoluta (atos nulos), em que inexiste a possibilidade de convalidação do ato (medida essa passível de aplicação somente em relação à nulidade relativa, ou seja, aos atos anuláveis, na mesma linha do art. 60 acima referenciado),[3] situação em que a preservação da legalidade administrativa se impõe, com a retirada do ato do mundo jurídico, independentemente de provocação dos interessados, dado o poder de autotutela de que detém a Administração Pública.[4]

Nos termos da súmula do Supremo Tribunal Federal (STF) nº 346, “a Administração Pública pode declarar a nulidade dos seus próprios atos”; dessa forma, considerando-se que os fatos que servem de suporte a uma decisão administrativa integram a validade do ato, a ocorrência de motivos de fato falsos, ou seja, a utilização do ato administrativo como suporte à satisfação de finalidades alheias àquela prevista em lei (interesse público), vicia o ato de invalidade em razão do “desvio de poder”, ou do “mau uso da competência”,[5] situação em que a declaração de nulidade se impõe.

Não se pode ignorar que, em sua atuação, a Administração Pública, diversamente dos particulares, deve buscar sua legitimidade na realização de interesses públicos, sendo os meios jurídicos a ela disponibilizados veículos para o atingimento dos seus fins, inclusive, obviamente, nos atos vinculados de administração contenciosa, e nunca para a satisfação de interesses particularizados.

Quando um ato administrativo é produzido em desconformidade com a ordem jurídica, ele se evidencia inválido (nulo, anulável, inexistente, defeituoso juridicamente etc.), podendo ser assim qualificado pela própria Administração, de ofício ou por meio de provocação ou denúncia de terceiros.

Merece destaque, neste ponto, que, inobstante o rigor conceitual adotado pelos doutrinadores administrativistas em relação à diferenciação das hipóteses de invalidade dos atos administrativos, verifica-se, nas normas tributárias, a adoção dos termos “ato administrativo nulo” e “ato administrativo anulável” de forma não muito tecnicamente diferenciada, sendo ambos tratados, em sua materialidade, como “atos inválidos”, termo esse privilegiado por Celso Antônio Bandeira de Mello ao cuidar dos atos administrativos contrários ao direito.[6]

Exemplificativamente, tem-se que, no artigo 54, § 1º, da Lei nº 9.784/1999, em que se estabelece a decadência do direito da Administração anular atos administrativos, não se faz distinção entre atos nulos e anuláveis, sendo o prazo de cinco anos ali previsto (salvo comprovada má-fé) aplicável a ambas as situações.[7]

Pelo dever de obediência à legalidade, havendo ofensa ao direito, a Administração deve eliminar os atos viciados e seus efeitos, ab initioex tunc, retroativamente, sendo que, tratando-se de vício grave (conduta criminosa ofensiva a direitos e garantias fundamentais, como à igualdade, à legalidade e à ampla defesa), jamais podem prescrever (Teoria da imprescritibilidade dos efeitos do ato nulo), por se configurarem “atos inexistentes” ou “fora do possível jurídico e radicalmente vedados pelo Direito”.[8]

Referida teoria encontra-se em consonância com o artigo 169 do Código Civil brasileiro (Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002), que estipula que o negócio jurídico nulo não é suscetível de confirmação, nem convalesce pelo decurso de tempo.

Diante de atos inválidos, inexiste discricionariedade administrativa, pois “a Administração não pode conviver com relações jurídicas formadas ilicitamente”, sendo seu dever “recompor a legalidade ferida”, fulminando o ato viciado e pronunciando sua invalidação, salvo nos casos em que, em prol dos princípios da segurança jurídica e da boa-fé, for possível a sua convalidação, mas somente em relação a atos anuláveis,[9] que podem ser refeitos sem vício, nunca a atos nulos.[10]

A impossibilidade de se convalidar um ato nulo deriva da existência de vício no motivo de sua expedição ou em sua finalidade, isto porque se trata de situação de fato, cuja alteração com efeito retroativo se inviabiliza, “não se [podendo] corrigir um resultado que estava na intenção do agente que praticou o ato”.[11]

No processo administrativo, exige-se que a Administração Pública, além do dever de observar os fins estabelecidos em lei, aja de acordo com as normas procedimentais estabelecidas para tanto, de forma a evidenciar o itinerário utilizado para se chegar ao ato decisório prolatado.

O julgador administrativo, precipuamente aquele que atua na segunda instância, tem de se ater ao princípio da imparcialidade, devendo agir, no cumprimento de seus deveres, de acordo com as formalidades estabelecidas pelo legislador, sob pena de se violar a própria finalidade do ato decisório ou algum objetivo desejado pela lei.[12]

De acordo com o artigo 37 da Constituição, a Administração Pública deve observar, dentre outros, o princípio da impessoalidade, segundo o qual deve-se manter a neutralidade de sua atividade, esta orientada, repita-se, no sentido da realização do interesse público. É a Administração a autora institucional dos atos que expede, tornando-se relevante a individualização ou personificação do agente que desempenha função pública somente quando este atua, “não como expressão da vontade do Estado, mas como expressão de veleidade, capricho ou arbitrariedade pessoal”.[13]

A “imoralidade administrativa” é “fundamento de nulidade do ato viciado”, pois a moralidade de que trata o artigo 37 da Constituição Federal (moralidade jurídica) “não é meramente subjetiva, porque não é puramente formal, porque tem conteúdo jurídico, a partir de regras e princípios da Administração”.” A lei pode ser cumprida moralmente ou imoralmente. Quando sua execução é feita, por exemplo, com o intuito de prejudicar ou de favorecer alguém deliberadamente, por certo que se está produzindo um ato formalmente legal, mas materialmente ofensivo à moralidade administrativa.”[14]

Nesse sentido, desde muito, a Administração já se encontra obrigada pelo ordenamento jurídico a declarar a nulidade de seus atos quando eivados de ilegalidade ou prolatados em desfavor do interesse público, vindo o artigo 80 do Anexo II do Regimento Interno do Carf (Ricarf), em prol dos direitos fundamentais à ampla defesa e ao contraditório, a disciplinar, pormenorizadamente, o rito a ser adotado no âmbito do Processo Administrativo Fiscal (PAF) para se declarar a nulidade de uma decisão do colegiado, evitando-se dessa forma a prolação de uma lacônica declaração de nulidade do ato decisório, passível de contestação por parte dos interessados somente pela via do Poder Judiciário.

Nesse sentido, em conformidade com o referido artigo 80 do Ricarf, havendo a prolação de um acórdão de segunda instância com a participação no colegiado, devidamente comprovada, de conselheiro impedido (artigo 42 do Anexo II do Ricarf) ou com inobservância inequívoca das normas tributárias válidas e vigentes (artigo 62 do Anexo II do Ricarf), o colegiado deverá declarar a nulidade de sua decisão, observando-se as regras contidas nos artigos 53 e 54 da Lei nº 9.784/1999, dentre elas a nulidade imprescritível do ato administrativo prolatado com má-fé.

Concluindo, ressalta-se que admitir a preservação de uma decisão administrativa colegiada exarada em desconformidade com as regras processuais garantidoras da imparcialidade, ampla defesa e contraditório fulmina o processo administrativo fiscal em sua substancialidade, ruindo os objetivos imanentes às normas administrativas processuais, dentre elas a “proteção dos direitos dos administrados e [o] melhor cumprimento dos fins da Administração” (artigo 1º, caput, da Lei nº 9.784/1999) e a garantia da efetividade dos “princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência” (artigo 37 da Constituição Federal).


[1] Art. 53. A Administração deve anular seus próprios atos, quando eivados de vício de legalidade, e pode revogá-los por motivo de conveniência ou oportunidade, respeitados os direitos adquiridos.

Art. 54. O direito da Administração de anular os atos administrativos de que decorram efeitos favoráveis para os destinatários decai em cinco anos, contados da data em que foram praticados, salvo comprovada má-fé.

§ 1º No caso de efeitos patrimoniais contínuos, o prazo de decadência contar-se-á da percepção do primeiro pagamento.

§ 2º Considera-se exercício do direito de anular qualquer medida de autoridade administrativa que importe impugnação à validade do ato.

Art. 55. Em decisão na qual se evidencie não acarretarem lesão ao interesse público nem prejuízo a terceiros, os atos que apresentarem defeitos sanáveis poderão ser convalidados pela própria Administração. (destaques nossos)

[2] Art. 59. São nulos:

I – os atos e termos lavrados por pessoa incompetente;

II – os despachos e decisões proferidos por autoridade incompetente ou com preterição do direito de defesa.

§ 1º A nulidade de qualquer ato só prejudica os posteriores que dele diretamente dependam ou sejam conseqüência.

§ 2º Na declaração de nulidade, a autoridade dirá os atos alcançados, e determinará as providências necessárias ao prosseguimento ou solução do processo.

§ 3º Quando puder decidir do mérito a favor do sujeito passivo a quem aproveitaria a declaração de nulidade, a autoridade julgadora não a pronunciará nem mandará repetir o ato ou suprir-lhe a falta.

Art. 60. As irregularidades, incorreções e omissões diferentes das referidas no artigo anterior não importarão em nulidade e serão sanadas quando resultarem em prejuízo para o sujeito passivo, salvo se este lhes houver dado causa, ou quando não influírem na solução do litígio.

Art. 61. A nulidade será declarada pela autoridade competente para praticar o ato ou julgar a sua legitimidade.

[3] Hely Lopes Meirelles não admite a ocorrência de atos anuláveis na esfera administrativa, mas apenas de atos nulos (NEDER, Marcos Vinicius; LÓPEZ, Maria Teresa Martínez. Processo administrativo fiscal federal comentado: de acordo com a Lei nº 11.941, de 2009, e o Regimento Interno do CARF. 3. ed. São Paulo: Dialética, 2010, p. 556).

[4] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 35. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2022, p. 250.

[5] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 15. ed. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 363 a 372.

[6] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 15. ed. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 420 a 426.

[7] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 15. ed. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 439.

[8] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 15. ed. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 424 a 427.

[9] Exemplos de atos anuláveis: atos editados com vício de vontade ou com defeito de formalidade.

[10] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 15. ed. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 431 a 433.

[11] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 35. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2022, p. 252.

[12] NEDER, Marcos Vinicius; LÓPEZ, Maria Teresa Martínez. Processo administrativo fiscal federal comentado: de acordo com a Lei nº 11.941, de 2009, e o Regimento Interno do CARF. 3. ed. São Paulo: Dialética, 2010, p. 558 a 561.

[13] SILVA, José Afonso de. Comentário contextual da Constituição. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 335 a 336.

[14] SILVA, José Afonso de. Comentário contextual da Constituição. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 336.

Hélcio Lafetá Reis é presidente da 1ª Turma Ordinária da 2ª Câmara da 3ª Seção do Carf; auditor fiscal da Receita Federal desde 4 de julho de 1995; mestre em Direito Público pela PUC-MG (2012) e graduado em Direito pela UFMG (2005); pós-graduado em Gestão de Direito Tributário pela FGV (2006) e em Filosofia e Teoria do Direito pela PUC-MG (2017).

Revista Consultor Jurídico, 7 de outubro de 2022, 6h01

O que gera tantos litígios tributários?

Não raro ouvimos especialistas a apontar o excesso de processos em matéria tributária, aludindo a uma “cultura do litígio” que os incentivaria. Aproveita-se para sugerir soluções ao problema, a exemplo do uso de métodos alternativos à jurisdição, como a transação e a arbitragem. É o contexto em que surgem, também, os defensores de uma execução fiscal administrativa.

Como todo problema complexo, por certo há várias causas, mas neste texto se pretende examinar basicamente uma, que é central: o desrespeito aos precedentes. E, ao cabo, avaliar se da premissa decorrem os diagnósticos e as soluções propostas.

Quanto à principal causa para o excesso de processos judiciais, sabe-se que a maioria das questões que pendem no âmbito dos Tribunais têm a Fazenda Pública como parte. União, Estados, Distrito Federal, Municípios, e entes da administração indireta. Além das questões tributárias, que são muitas, há ainda as relativas a servidores públicos, e ao Direito Previdenciário.

Grande parte dessas questões seriam evitáveis. Bastaria que a Administração Pública em geral, e a Tributária em particular, respeitasse os precedentes. Mas nem as Delegacias Regionais de Julgamento da Receita Federal respeitam os precedentes do Carf — quando favoráveis ao contribuinte. Invocam o artigo 100 do CTN para alegar que as decisões dos órgãos de julgamento só integram a legislação tributária quando têm força vinculante, ignorando todas as demais. Decisões judiciais, só se proferidas em sede de recursos repetitivos, ou repercussão geral, e ainda assim às vezes se encontram caminhos para “interpretá-las” e assim reduzir seu alcance.

É bem provável que você, leitora, já tenha passado por isso: comparecer a uma repartição pública do Poder Executivo, na tentativa de ver uma pretensão acolhida, e escutar do servidor o seguinte: “A senhora até pode ter razão. Se for à Justiça, vai ganhar. Mas eu não posso fazer nada, porque a orientação é negar, e eu tenho que me preservar”.

Se preservar, no contexto do serviço público, parece ser, muitas vezes, negar a pretensão de um cidadão, ainda que de modo ilegal, desde que isso não favoreça terceiros, beneficiando apenas os interesses da própria Administração Pública.

São condutas assim que tornam o Judiciário repleto de processos que não precisariam existir, ocupando o tempo de magistrados, servidores e demais profissionais do Direito, que se poderiam estar dedicando a questões relevantes, ainda pendentes de solução definitiva. Incrementa-se, ainda, a possibilidade de se proferirem decisões discrepantes, ou de pessoas — as que vão e as que não vão ao Judiciário — receberem tratamentos diferentes para situações semelhantes, maltratando o princípio da igualdade e reclamando, no futuro, a reabertura de questões, e de novas polêmicas, com a que o Supremo Tribunal Federal está agora a deslindar, relativa à coisa julgada em questões tributárias diante de decisões definitivas contrárias à jurisprudência dominante. Jurisprudência defensiva e o bloqueio de recursos com o uso de critérios totalmente irrazoáveis, além do uso de algoritmos para apreciação de processos em massa, com a consequente perda da qualidade dessas apreciações, são sequelas também.

Quando o Supremo Tribunal Federal reconhece a ilegitimidade de uma exigência tributária, mas limita temporalmente os efeitos de sua decisão, “modulando-os” para o futuro, dá outra forte sinalização no sentido de que se ajuízem ações que poderiam ser evitadas. Isso porque o instituto da modulação, além de estar sendo usado, em matéria tributária, com frequência talvez superior à razoável, não raro ressalva o direito daqueles que já haviam movido ações até determinada data. Ou seja, na dúvida sobre se o STF declarará, ou não, uma exigência constitucional, o recado que se dá ao cidadão é: mova a sua ação individual, o quanto antes, pois se deixar para se movimentar depois da decisão, pode ser prejudicado por uma atribuição de efeitos ex nunc. O correto, nesse cenário, seria não só não se proceder à modulação, como também a Fazenda respeitar, de ofício, os efeitos da decisão, com a devolução do tributo indevidamente pago a todos os contribuintes, independentemente de pedido. A redução no número de feitos — totalmente desnecessários — seria enorme.

E, por último, a leitora pode estar pensando: e o que tudo isso tem a ver com transação, arbitragem, e execução administrativa, institutos citados no começo deste artigo? Nada. É incompreensível, por isso mesmo, que o suposto excesso de demandas seja usado como fundamento para defender tais institutos. A principal causa de insucesso das execuções fiscais é não se localizar o devedor, ou não se localizarem bens penhoráveis. Nesse caso, transação, arbitragem, e execução administrativa, seriam igualmente malsucedidas. Sem entrar nos méritos de tais institutos, o fato é que não dá para transacionar ou fazer arbitragem com quem não é encontrado, ou executar administrativamente quem não tem nada. 

Na verdade, talvez as execuções judiciais não sejam tão ineficazes assim, pois é preciso colocar na estatística aquelas que sequer precisam ser movidas, porque os contribuintes, não querendo ser executados, pagam espontaneamente. Esse número é bem grande. Aliás, sobre a criação de uma execução fiscal administrativa, o entendimento do STF sobre a chamada “averbação pré-executória” dá fortes indicativos de que a Corte — se mantiver a coerência com seus precedentes — não consideraria constitucional a constrição patrimonial, diretamente pelo Fisco, sem a necessária interveniência do Judiciário. Mas, de uma forma ou de outra, o excesso de processos, e o alegado insucesso das execuções que tramitam junto ao Judiciário, não tem nada a ver com isso.

Hugo de Brito Machado Segundo é mestre e doutor em Direito, professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará, professor do Centro Universitário Christus (graduação/mestrado), membro do Instituto Cearense de Estudos Tributários (Icet) e da World Complexity Science Academy (WCSA), advogado e visiting scholar da Wirtschaftsuniversität de Viena (Áustria).

Revista Consultor Jurídico, 5 de outubro de 2022, 10h43

Gilmar Mendes suspende análise do limite da coisa julgada Ministros julgavam se decisões favoráveis aos contribuintes perdem efeito com mudança de jurisprudência.

O ministro Gilmar Mendes, do STF, pediu vista e suspendeu a análise de dois casos de repercussão geral que tratam da quebra de decisões tributárias já transitadas em julgado.
O RE 955.227 discute se as decisões da Suprema Corte em controle difuso de constitucionalidade fazem cessar os efeitos futuros da coisa julgada em matéria tributária. O relator é o ministro Luís Roberto Barroso.
Já no RE 949.297, o tema em discussão é semelhante ao tratado no recurso anterior, mas, neste julgamento, o colegiado vai decidir se decisão transitada em julgado que declare a inexistência de relação jurídico-tributária, ao fundamento de inconstitucionalidade incidental de tributo, perde sua eficácia em razão de superveniente declaração de constitucionalidade da norma pelo STF, na via do controle concentrado e abstrato de constitucionalidade. A relatoria é do ministro Edson Fachin.

RE 955.227
O STF reconheceu a repercussão geral, em 2016, de tema que discute os efeitos de uma decisão transitada em julgado em matéria tributária quando há posteriormente pronunciamento em sentido contrário pela Suprema Corte.
No caso, a União questiona decisão definitiva que garantiu à petroquímica Braskem, em 1992, o direito de não recolher a CSLL – Contribuição Social Sobre o Lucro Líquido.
A União alegou que a reiteração de decisões do STF em sentido contrário ao da sentença transitada em julgado, ainda no início dos anos 1990, implica que a coisa julgada não opera mais efeitos.
Sustentou ainda que, do contrário, fica configurada uma situação de violação de igualdade entre os contribuintes, uma vez que aqueles que não tiveram acesso à Justiça ficaram sujeitos ao recolhimento da CSLL.
Assim, ressaltou, com relação aos fatos geradores ocorridos após as decisões reiteradas do STF, os efeitos futuros da coisa julgada teriam sido sustados e o tributo passaria a ser exigível.
Coisa julgada
O relator do recurso, ministro Luís Roberto Barroso, votou no sentido de negar provimento ao recurso extraordinário da União, reconhecendo, porém, a constitucionalidade da interrupção dos efeitos futuros da coisa julgada em relações jurídicas tributárias de trato sucessivo, quando a Corte se manifestar em sentido contrário em recurso extraordinário com repercussão geral.
O ministro propôs a fixação da seguinte tese:
“1. As decisões do STF em controle incidental de constitucionalidade, anteriores à instituição do regime de repercussão geral, não impactam automaticamente a coisa julgada que se tenha formado, mesmo nas relações jurídicas tributárias de trato sucessivo. 2. Já as decisões proferidas em ação direta ou em sede de repercussão geral interrompem automaticamente os efeitos temporais das sentenças transitadas em julgado nas referidas relações, respeitadas a irretroatividade, a anterioridade anual e a noventena ou a anterioridade nonagesimal, conforme a natureza do tributo.”
Barroso também propôs, com base no art. 27 da lei 9.868/99, que a tese firmada seja aplicada a partir da publicação da ata de julgamento deste acórdão, considerando o período de anterioridade nonagesimal, nos casos de restabelecimento de incidência de contribuições sociais, e de anterioridade anual e noventena, para o restabelecimento da incidência das demais espécies tributárias, observadas as exceções constitucionais.
Os ministros Dias Toffoli, Rosa Weber e Alexandre de Moraes seguiram o Relator. Toffoli seguiu o entendimento com ressalvas. Já o ministro Gilmar Mendes divergiu.
Veja a íntegra do voto.
RE 949.297
Também em 2016, o STF reconheceu a existência de repercussão geral em recurso que trata do limite da coisa julgada em âmbito tributário, na hipótese de o contribuinte ter em seu favor decisão judicial transitada em julgado que declare a inexistência de relação jurídico-tributária, ao fundamento de inconstitucionalidade incidental de tributo, por sua vez declarado constitucional, em momento posterior, na via do controle concentrado e abstrato de constitucionalidade exercido pelo STF.

No caso concreto, trata-se de contribuinte que pretende obter ordem judicial que lhe assegure o direito de continuar a não recolher a CSLL – Contribuição Social sobre o Lucro Líquido, instituída pela lei 7.689/88, com base em decisão proferida em mandado de segurança ajuizado em 1989 e com trânsito em julgado em 1992, cujo fundamento é a inconstitucionalidade da norma por ofensa ao princípio da irretroatividade.
No recurso, a União contestou decisão do TRF da 5ª região, a qual manteve sentença em mandado de segurança que deu ganho de causa ao contribuinte e declarou inconstitucional a lei 7.689/88.
Alegou que a coisa julgada formada em mandado de segurança em matéria tributária não alcança os exercícios seguintes ao da impetração, nos termos da Súmula 239 do STF.

A União argumentou ainda que a coisa julgada em seara tributária pode ser relativizada, em decorrência da superveniência de novos parâmetros normativos ou de decisão do Supremo que considere constitucional a norma considerada inconstitucional pela decisão passada em julgado.
Eficácia pró-futuro
O relator, ministro Edson Fachin, votou no sentido de dar provimento para reformar o acórdão recorrido e modular os efeitos temporais da decisão para que tenha eficácia pró-futuro a partir da publicação da ata de julgamento do acórdão.
O ministro propôs a fixação da seguinte tese:
“A eficácia temporal de coisa julgada material derivada de relação tributária de trato continuado possui condição resolutiva que se implementa com a publicação de ata de ulterior julgamento realizado em sede de controle abstrato e concentrado de constitucionalidade pelo Supremo Tribunal Federal, quando os comandos decisionais sejam opostos, observadas as regras constitucionais da irretroatividade, a anterioridade anual e a noventena ou a anterioridade nonagesimal, de acordo com a espécie tributária em questão.”
Os ministros Luís Roberto Barroso, Rosa Weber e Alexandre de Moraes seguiram o Relator. Toffoli seguiu o entendimento com ressalvas. Já o ministro Gilmar Mendes divergiu.
Acesse a íntegra do voto.
Ato contínuo, Gilmar Mendes pediu vista em ambos os casos.

Fonte: https://www.migalhas.com.br/quentes/374646/tributario-gilmar-mendes-suspende-analise-do-limite-da-coisa-julgada

Mesmo sem penhora na execução fiscal, crédito tributário tem preferência na arrematação de bem do devedor

Em julgamento de embargos de divergência, a Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça (STJ) estabeleceu que a Fazenda Pública tem preferência para habilitar seu crédito na arrematação levada a efeito em processo executivo movido por terceiro, independentemente da existência de penhora na execução fiscal. 

Por unanimidade, os ministros entenderam que, não havendo penhora na execução fiscal, garante-se o exercício do direito do credor privilegiado mediante a reserva da totalidade (ou de parte) do produto da arrematação do bem do devedor ocorrida na execução de terceiros.

Com o julgamento, o colegiado pacificou entendimentos divergentes entre a Primeira e a Quarta Turmas e deu provimento aos embargos de divergência interpostos pelo Estado de Santa Catarina contra acórdão da Primeira Turma que considerou necessário haver pluralidade de penhoras sobre o mesmo bem para ser instaurado o concurso de preferências.

Em seu recurso, o embargante apontou julgado da Quarta Turma segundo o qual a Fazenda Pública deve receber de forma preferencial, sem concorrer com credor quirografário do devedor em comum, independentemente de o crédito tributário estar ou não garantido por penhora nos autos da respectiva execução fiscal (AgInt no REsp 1.328.688).

Ordem de preferência na satisfação do crédito

O relator na Corte Especial, ministro Luis Felipe Salomão, explicou que o concurso universal – concorrência creditícia que incide sobre todo o patrimônio – não se confunde com o concurso singular de credores, quando mais de um credor requer o produto proveniente de um bem específico do devedor. 

O magistrado acrescentou que, no caso analisado, o Estado de Santa Catarina possui crédito tributário que é objeto de execução fiscal, motivo pelo qual pleiteia a preferência frente aos demais credores da sociedade executada em concurso singular.

Salomão destacou que tanto o Código Civil (de 1916 e de 2002) quanto o Código de Processo Civil (de 1973 e de 2015) conferem primazia às preferências creditícias fundadas em regras de direito material (“título legal à preferência”, como diz a lei), em detrimento da preferência pautada na máxima prior in tempore potior in iure, ou seja, o primeiro a promover a penhora (ou arresto) tem preferência no direito de satisfação do crédito.

“Nessa perspectiva, a distribuição do produto da expropriação do bem do devedor solvente deve respeitar a seguinte ordem de preferência: em primeiro lugar, a satisfação dos créditos cuja preferência funda-se no direito material; na sequência – ou quando inexistente crédito privilegiado –, a satisfação dos créditos comuns (isto é, que não apresentam privilégio legal) deverá observar a anterioridade de cada penhora, ato constritivo considerado título de preferência fundado em direito processual”, afirmou.

Processo existe para concretizar o direito material

O ministro lembrou que a jurisprudência do STJ considera não ser possível sobrepor uma preferência processual a uma preferência de direito material, por ser incontroverso que o processo existe para que o direito material se concretize.

Para o relator, o privilégio do crédito tributário – artigo 186 do Código Tributário Nacional – é evidente também no concurso individual contra devedor solvente, “sendo imperiosa a satisfação do crédito tributário líquido, certo e exigível”, independentemente de prévia execução e de penhora sobre o bem cujo produto da alienação se pretende arrecadar.


EREsp 1603324

Fonte: Notícias do STJ

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