Coisa julgada e rescisão com base em precedentes

A discussão jurisprudencial quanto à possibilidade de rescisão da coisa julgada com base em precedentes já é antiga e remonta à década de 60, quando o STF fixou a tese veiculada na sua Súmula 343 [1]. Nessa oportunidade, antes de qualquer discussão quanto a uma pretensa aproximação do sistema jurídico nacional de um modelo de stare decisis e, ainda, muito influenciado pela segunda fase histórica do Processo Civil [2], chamada de autonomista, técnica ou científica, o STF entendeu pela impossibilidade de rescindir coisa julgada com base, no que atualmente se denomina, precedentes. E isso porque, nesse momento histórico, ainda era vigente a concepção de que apenas a lei em sentido estrito era capaz de atuar como fonte material do Direito, enquadrando-se as decisões judiciais naquele campo das fontes secundárias, assim como os costumes, a doutrina, a equidade e os princípios gerais do direito.

Acontece que, com o passar dos anos e após uma Constituição e dois Códigos de Processo Civil, a discussão ganhou nova roupagem. Após a Emenda Constitucional 45/2004 o ordenamento jurídico trouxe novos institutos como o da repercussão geral, os recursos repetitivos e as súmulas vinculantes. O CPC/73, já reformado, também contemplava, em alguma medida, a força materialmente normativa de precedentes exarados por tribunais superiores, inclusive com a possibilidade de julgamentos monocráticos de recursos na hipótese de a decisão recorrida estar ou não em consonância com jurisprudência dominante de tais Tribunais, apenas para ficar nesse exemplo [3]. O CPC/2015 amplificou e qualificou o tratamento dessa modalidade de julgamento, estatuindo o regime de precedentes, em especial e em razão do disposto no seu artigo 926 [4].

Há, em suma, uma valorização da decisão judicial como fonte material do Direito, em especial aquelas decisões proferidas pelos nossos tribunais superiores, o que apresenta uma relevância no específico nicho Direito Tributário, já que um tratamento judicativo desigual para sujeitos passivos que se encontram em posições tributárias análogas pode implicar em sérios problemas micro e macroeconômicos.

Dentro desse contexto, em 2008, no âmbito do recurso extraordinário nº 328.812, o STF reconhece a capacidade criativa das suas decisões, ao afirmar que quando uma decisão desta corte (STF) fixa uma interpretação constitucional, entre outros aspectos está o Judiciário explicitando os conteúdos possíveis da ordem normativa infraconstitucional em face daquele parâmetro maior, que é a Constituição [5]. E, partindo dessa premissa, assim concluiu:

“De fato, negar a via da ação rescisória para fazer valer a interpretação constitucional do Supremo importa, a rigor, em admitir uma violação muito mais grave à ordem normativa. Sim, pois aqui a afronta se dirige a uma interpretação que pode ser tomada como a própria interpretação constitucional realizada” [6].

Nesse instante, o STF supera o teor da sua Súmula 343 e reconhece a possibilidade de se manejar instrumentos rescisórios — mais precisamente ação rescisória — para desfazer coisa julgada que se contraponha a um precedente daquela corte. O que, todavia, inexistia nessa oportunidade é uma manifestação do STF quanto à existência ou não de algum tipo de limite no emprego dessa ação rescisória pautada em precedente pretoriano. Essa discussão só surge em 2014, quando do julgamento do recurso extraordinário nº 590.809, oportunidade em que o STF promoveu um aperfeiçoamento da ratio decidendi do recurso extraordinário nº 328.812.

Antes, entretanto, de apresentar as conclusões do STF nesse novo caso analisado, convém aqui destacar a sua moldura fática. 

Pois bem. Esse novo caso era um recurso extraordinário com repercussão geral reconhecida, interposto contra decisão proferida pelo TRF da 4ª Região que julgou procedente ação rescisória ajuizada pela União contra decisão transitada em julgada em favor de uma determinada pessoa jurídica, na qualidade de contribuinte. Em suma, o contribuinte ajuizou ação para ver garantido o seu direito ao creditamento do IPI nas hipóteses de insumo adquirido sem incidência tributária ou sujeito à alíquota zero, ação esta que transitou em julgado com decisão de mérito favorável ao autor. Ressalte-se que, à época em que proferida a decisão, os precedentes existentes, inclusive do próprio STF, eram favoráveis à pretensão do contribuinte.

Acontece que, depois da empreitada exitosa do contribuinte, com decisão transitada em julgado em seu favor, o STF revisitou a mesma questão de fundo debatida naquela lide, oportunidade em que superou o entendimento até então firmado, afastando o direito ao crédito de IPI — julgamento proferido no recurso extraordinário nº 353.657/PR [7] [8].

Diante deste novo quadro jurisprudencial, a União promoveu a ação rescisória alhures mencionada por entender que a decisão transitada em julgado em favor do contribuinte ofenderia o entendimento firmado no recurso extraordinário nº 353.657/PR, ação essa julgada procedente e que ensejou, por parte do contribuinte, a interposição do citado recurso extraordinário nº 590.809.

Importante ainda destacar que o caso fomentador da superação da jurisprudência do STF (recurso extraordinário nº 353.657/PR), apesar de julgado em 2007, foi interposto antes do advento da Emenda Constitucional nº 45/2004, ou seja, foi decidido sem que tivesse sido afetado pelo instituto da repercussão geral. Em suma, este era o cenário fático do recurso extraordinário nº 590.809.

Nessa oportunidade, o STF trouxe dois limites importantes para a convocação de novo pronunciamento como fundamento para ações rescisórias.

O primeiro limite então estabelecido foi no sentido de que decisões pretorianas fruto de overruling não poderiam servir de fundamento para a rescisão de decisões submetidas à coisa julgada. Caso assim não fosse, a cada superação de um precedente do STF pela própria Corte Constitucional, uma nova ação rescisória poderia ser manejada, o que ensejaria não apenas a mitigação da coisa julgada, mas sua verdadeira extinção.

O segundo limite apresentado pelo STF foi no sentido de precisar que não é qualquer decisão pretoriana que tem a capacidade de fundamentar a ação rescisória, mas apenas aquelas dotadas de efeitos abrangentes, a repercutirem fora das balizas subjetivas do processo, nos exatos termos do voto do ministro Marco Aurélio, relator do recurso extraordinário nº 590.809, ou seja, aquelas decisões que apresentem um efeito transubjetivo [9].

Acontece que a discussão não parou por aí, pois o STF ainda encontra em seus escaninhos virtuais o debate que está sendo travado nos Temas 881 [10]e 885 [11], nos quais se aventa a existência de limite não tratado no julgamento do recurso extraordinário nº 590.809, demarcado pelo seguinte questionamento: em se tratando de relações jurídico-tributárias de trato sucessivo, um precedente vinculante do STF teria o condão de automaticamente estancar os efeitos da coisa julgada para o futuro ou, em contrapartida, esse efeito só seria alcançado mediante o emprego de instrumentos processuais rescisórios?

Até a produção deste texto, os pronunciamentos nos respectivos leading cases defendem um efeito rescisório automático a contar da publicação da ata de julgamento da ação em que foi veiculado o precedente. Defende-se, ainda, que o teor dessa nova decisão se submete aos princípios tributários da irretroatividade e da anterioridade, esse último de acordo com a particular espécie tributária tratada. Em suma, os votos até então proferidos equiparam a decisão pretoriana a uma nova lei tributária.

Tal posição nos parece equivocada, tanto sob uma perspectiva conceitual como também metodológica.

O equívoco conceitual decorre do fato de que essa posição trata precedente como se lei fosse, o que não demanda esforço hermenêutico para demonstrar a injuridicidade dessa aproximação, basta destacar que lei decorre de ato inaugural no sistema jurídico produtor de regras gerais no âmbito do poder legislativo [12].

O apontado erro conceitual implica outro, de caráter metodológico, pois ao tratar precedente como se lei fosse o submete a uma aplicação própria das leis, de caráter lógico-subsuntivo, ignorando, todavia, que no sistema de precedente o método adequado é o analógico-problemático, oriundo de uma ponderação sempre atenta à identidade-diversidade própria do analógico e que, como tal, só pode considerar-se em concreto [13].

O sobredito método, próprio de precedentes, só pode ser considerado em concreto para o objeto em análise (rescisão de coisa julgada nas relações de trato sucessivos), na hipótese de haver a propositura de instrumento processual rescisório, o que, no caso das demandas de trato sucessivo, se daria especificamente por intermédio de uma ação revisional, pois só assim é possível garantir que um terceiro, imparcial e equidistante ao estratégico interesse das partes na rescisão da coisa julgada, promova a substancialmente adequada comparação adrede citada, respeitando o devido processo legal, o contraditório maximizado, a ampla defesa substancial, o que também serve para minimizar a diferença de forças entre contribuintes e Estado [14]

Atualmente os sobreditos leading cases dos Temas 881 e 885 encontram-se sob vista do ministro Alexandre de Moraes, razão pela qual ainda há tempo de fomentar o debate aqui suscintamente trazido, de modo que a presente manifestação sirva de estímulo para se construir uma juridicamente adequada conclusão para essa história.


[1] Não cabe ação rescisória por ofensa a literal disposição de lei, quando a decisão rescindenda se tiver baseado em texto legal de interpretação controvertida nos tribunais. (data de aprovação: sessão plenária de 13/12/1963).

[2] Convém lembrar que nesse momento histórico o CPC vigente era o de 1934, fortemente pautado pela ideia de que o juiz era o aplicador em concreto da lei.

[3] A referência aqui é à lei federal: 

(1) 8.038/1990 que autorizou os Ministros do STF e do STJ a monocraticamente negar seguimento a recurso que contrariasse Súmula do próprio Tribunal;

(2) 9.139/1995 que alterou o artigo 557 do CPC/1973 permitindo que o relator de recurso a ele negasse seguimento se contrário a Súmula do respectivo Tribunal ou de Tribunal Superior;

(3) 9.756/1998 que promoveu alteração no § 3º do artigo 544 do CPC/1973 possibilitando que o relator de agravo de instrumento de despacho denegatório de seguimento de recurso especial julgasse diretamente o especial na hipótese em que o acórdão recorrido contrariasse súmula ou jurisprudência dominante do próprio STJ, bem como no artigo 557, o qual passou a admitir que julgador de segunda instância ou de tribunal superior, monocraticamente, negasse ou desse provimento a recurso cuja decisão atacada confrontasse Súmula ou jurisprudência dominante do STJ, do STF ou do respectivo Tribunal.

[4] Deixaremos de lado as críticas que temos a esse abrasileirado modelo de precedentes desenvolvidos no Brasil, o qual, em nossa opinião, apresenta problemas conceituais e metodológicos. Para os interessados, tecemos tais críticas aqui: RIBEIRO, Diego Diniz. Precedentes em matéria tributária e o novo CPC. In: Processo tributário analítico. CONRADO, Paulo César (org.). São Paulo: Noeses, 2016. Vol. III. pp. 111/140.

[5] Trecho do voto do relator, ministro Gilmar Mendes.

[6] Ibidem.

[7] IPI – INSUMO – ALÍQUOTA ZERO – AUSÊNCIA DE DIREITO AO CREDITAMENTO.

Conforme disposto no inciso II do § 3º do artigo 153 da Constituição Federal, observa-se o princípio da não-cumulatividade compensando-se o que for devido em cada operação com o montante cobrado nas anteriores, ante o que não se pode cogitar de direito a crédito quando o insumo entra na indústria considerada a alíquota zero.

[8] IPI – INSUMO – ALÍQUOTA ZERO – CREDITAMENTO – INEXISTÊNCIA DO DIREITO – EFICÁCIA.

Descabe, em face do texto constitucional regedor do Imposto sobre Produtos Industrializados e do sistema jurisdicional brasileiro, a modulação de efeitos do pronunciamento do Supremo, com isso sendo emprestada à Carta da República a maior eficácia possível, consagrando-se o princípio da segurança jurídica.

(STF; RE 353.657, relator(a): min. MARCO AURÉLIO, Tribunal Pleno, julgado em 25/06/2007, DJe-041 DIVULG 06-03-2008 PUBLIC 07-03-2008 EMENT VOL-02310-03 PP-00502 RTJ VOL-00205-02 PP-00807).

[9] Já tivemos a oportunidade de nos aprofundar na análise desses limites no seguinte texto: RIBEIRO, Diego Diniz. Coisa julgada, direito judicial e ação rescisória em matéria tributária. In: Processo Tributário Analítico. Paulo César Conrado (coordenador). São Paulo: Noeses, 2013. Vol. II. pp 83-110.

[10] Limites da coisa julgada em matéria tributária, notadamente diante de julgamento, em controle concentrado pelo Supremo Tribunal Federal, que declara a constitucionalidade de tributo anteriormente considerado inconstitucional, na via do controle incidental, por decisão transitada em julgado.

[11] Efeitos das decisões do Supremo Tribunal Federal em controle difuso de constitucionalidade sobre a coisa julgada formada nas relações tributárias de trato continuado.

[12] Por todos: DAVID, René. Os grandes sistemas do direito contemporâneo. 4ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

[13] NEVES, A. Castanheira. Instituto dos assentos. Coimbra: Coimbra Editora. 2014 (reimpressão). p. 74.

[14] Essa diferença de forças decorre da capacidade do Estado em fazer valer suas pretensões coercitivamente, fruto da autotutela dos seus interesses.

Diego Diniz Ribeiro é advogado tributarista e aduanerista, sócio do Daniel & Diniz Advocacia, ex-conselheiro titular do Carf na 3ª Seção de Julgamento, professor de Direito Tributário, Direito Aduaneiro, Processo Tributário e Processo Civil, doutorando em Processo Civil pela USP, mestre em Direito Tributário pela PUC-SP, pós-graduado em Direito Tributário pelo Ibet e pesquisador do NEF da FGV-SP e do grupo de estudos de Processo Tributário Analítico do Ibet.

Revista Consultor Jurídico, 18 de setembro de 2022, 8h00

ARTIGO DA SEMANA – APRIMORAMENTO DO PROCESSO ADMINISTRATIVO FISCAL ESTADUAL

A decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo sobre o voto de qualidade no Tribunal de Impostos e Taxas (TIT) que apresentamos como destaque desta semana nos leva a refletir sobre a necessidade de aprimoramentos no Processo Administrativo Fiscal do Estado do Rio de Janeiro. 

Sem prejuízo da conclusão dos trabalhos da comissão instalada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) e pelo Senado Federal, há medidas legais e infralegais que devem ser adotadas pelas autoridades fluminenses com o objetivo de melhorar a qualidade do processo administrativo fiscal fluminense.

Todos que militam no processo administrativo fiscal do RJ ficariam agradecidos se a Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (ALERJ) aprovasse projetos de lei para o aperfeiçoamento do processo Administrativo Fiscal.

A primeira medida legislativa que se impõe é a extinção do voto de qualidade dos presidentes de Câmara do Conselho de Contribuintes.

A partir da publicação da Lei (federal) nº 13.988/2020 e da maioria que se formou no julgamento das ADIs 6399, 6403 e 6415, não faz mais nenhum sentido o silêncio do legislador fluminense acerca da extinção do voto de qualidade pelos Presidentes de Câmaras do Conselho de Contribuintes do Estado do Rio de Janeiro.

Considerando que há Câmaras privativamente presididas por conselheiros representantes dos contribuintes (2ª e 3ª), a discussão pelo fim do qualidade no processo administrativo fiscal estadual ganha especial relevância, na medida em que a tese defendida não é o fim de um julgamento pró fisco mas, sobretudo, da supremacia de um julgamento justo.

Num Estado Democrático de Direito que prima pela isonomia e paridade de armas na dialética processual, nada justifica que o voto de um julgador – seja representante da Fazenda ou dos Contribuintes – tenha maior peso do que os de seus pares. Portanto, já passou da hora do voto de qualidade ser extirpado do processo administrativo fiscal estadual.

Os legisladores estaduais também precisam incluir dispositivo no Decreto-Lei nº 05/75 (Código Tributário Estadual) prevendo os embargos de declaração como um dos recursos no processo administrativo fiscal estadual.

Trata-se de recurso consagrado na legislação processual brasileira que tem por objetivo o aperfeiçoamento dos julgados, evitando a manutenção de decisões contraditórias, obscuras ou omissas.

À míngua de previsão legal para a oposição de embargos de declaração, os contribuintes arguem a nulidade dos julgados, muitas vezes acolhida, resultando em novos julgamentos pela instância recorrida com evitável dispêndio de tempo, recursos materiais e humanos.

A legislação tributária estadual também precisa ser aperfeiçoada para deixar expresso que os autos de infração e as notas de lançamento deverão estar instruídos com todos os termos, depoimentos, laudos e demais elementos de prova indispensáveis à comprovação do ilícito.

Lamentavelmente, os autos de infração lavrados pela fiscalização da SEFAZ não costumam anexar todos os elementos de convicção  utilizados pelo autuante para a formalização da exigência fiscal. Consequentemente, o processo administrativo se inicia com indexável prejuízo ao direito de defesa, que poderá ser evitado ser a legislação impor aos Auditores Fiscais o dever da melhor instrução possível aos autos de infração/notas de lançamento.

Outra medida que representaria importante avanço no processo administrativo fiscal estadual seria a previsão de suspensão dos processos versando sobre matérias que estão submetidas à apreciação do Supremo Tribunal Federal ou do Superior Tribunal de Justiça sob os ritos da Repercussão Geral ou dos Recursos Repetitivos.

A adoção desta medida pelo legislador estadual irá ao encontro da desejável harmonia ente as decisões administrativas e judiciais, também afastando um desnecessário ingresso em juízo para a discussão de matérias pacificadas nos Tribunais Superiores.

O processo administrativo fiscal do Estado do Rio de Janeiro também precisa ser aperfeiçoado para, do ponto de vista legislativo, prever patamar razoável para a interposição de recurso de ofício pela autoridade julgadora de primeira instância. 

Mantida a regra atual – em que o recurso de ofício se constitui como uma regra – o julgamento de primeira é desprestigiado, significa um mero ritual de passagem, sem contar o desnecessário congestionamento nas pautas de segunda instância, abarrotadas de recursos de ofício absolutamente desnecessários.

É igualmente urgente que seja extinto o recurso exclusivo da Representação Geral da Fazenda ao SEFAZ. Este recurso hierárquico, por mero descontentamento face às teses definidas em julgamento colegiado, está longe de ser meio de controle da legalidade do ato administrativo. Trata-se, na verdade, de pura irresignação de uma das partes face ao decidido, repita-se, por órgão julgador colegiado.

Recorrer ao SEFAZ para reformar decisão tomada por um colegiado deve ser a exceção e só faz sentido se a decisão recorrida for absolutamente nula ou fruto de atuação fora da competência do colegiado.  Como o STJ já decidiu “a necessidade de controlar pressupõe algo descontrolado” (MS 8.810, DJ 06/10/2003). Meras irresignações, portanto, não podem dar ensejo à revisão de acórdãos pelo SEFAZ.

Também não podemos deixar de mencionar a necessidade de ser alterada a praxe adotada por diversos órgãos julgadores administrativos que, reconhecendo nulidade do processo ou de qualquer ato administrativo, não se preocupam em analisar o mérito do pedido e com isso simplesmente acolhem a nulidade, determinando que outro ato ou decisão  seja proferido em boa e devida forma.

Melhor seria, contudo, que mesmo se tratando de nulidade, as autoridades administrativas enfrentassem o mérito nos casos em que se puder decidir favoravelmente ao sujeito passivo.

A adoção desta providência, já prevista no processo administrativo fiscal federal (art. 59, § 3º, do Decreto nº 70.235/72) é medida de justiça fiscal e de evidente economia processual, abreviando a tramitação de processos que, ao fim e ao cabo, culminarão no afastamento de exigências fiscais descabidas.

Outra medida importante que precisa ser tomada está na comunicação das decisões administrativas.

Desde há muito – quem sabe até desde sempre – adotou-se como praxe no processo administrativo fiscal estadual a adoção de portarias de intimação para a comunicação de decisões de primeira ou segunda instâncias.

Nada contra a utilização das Portarias Intimação, não fosse o fato de  em todas elas constar a seguinte expressão: “O processo administrativo respectivo, contendo o inteiro teor do despacho acima mencionado, encontra-se à disposição dos interessados no endereço da repartição fiscal abaixo mencionada”.

Em razão da expressão acima transcrita, as diversas repartições simplesmente não anexam cópia integral da decisão administrativa proferida pelo Auditor-Chefe, pela Junta de Revisão Fiscal ou pelo Conselho de Contribuintes do Estado do Rio de Janeiro.

Pior ainda, sequer a ementa da decisão é transcrita na Portaria de Intimação, de modo que a expressão “do despacho acima mencionado” chega a ser falaciosa, visto que as Portarias limitam-se a informar a parte dispositiva da decisão.

Desnecessário dizer que a falta de juntada do inteiro teor da decisão administrativa caracteriza evidente prejuízo ao direito de defesa, na medida em que subtrai do contribuinte o direito de prontamente saber o conteúdo da decisão que repercute negativamente em sua esfera de interesses, fazendo-o perder precioso tempo na elaboração de seu recurso.

E nem se diga que o alerta de que o processo administrativo está à disposição na repartição competente é motivo para sanar a evidente irregularidade. Basta lembrar que, não raro, o interessado poderá estar estabelecido em outro município, mas circunscrito a uma Auditoria Especializada, por exemplo, localizada na capital. Além disso há casos em que o interessado está localizado em outro Estado, mas recebeu Portaria de Intimação dirigida por Chefe de Posto Fiscal. Portanto, é muito provável que o contribuinte perca bastante tempo até reunir condições para, deslocando-se à repartição fiscal, ter acesso ao inteiro teor da decisão.

Ademais, a utilização das Portarias de Intimação sem a devida juntada da decisão administrativa também representa violação a expressa previsão da legislação tributária estadual, precisamente ao artigo 36, parágrafo único, do Decreto nº 2.473/79, segundo o qual “A intimação de decisão será acompanhada de cópia ou resumo do ato.”

Portanto, é preciso que sejam adotadas medidas administrativas e/ou infralegais para que tais violações ao direito de defesa deixem de ser praticadas.

Como se vê, há muito trabalho pela frente. Atos legais, infralegais e administrativos podem mudar o rumo de um processo administrativo que precisa ser aprimorado para conferir maior justiça, eficácia e prestígio ao direito de defesa.

O momento de renovação do Executivo e Legislativo é propício para a implementação de mudanças.

A rigor, não é preciso esperar que o resultado dos trabalhos da comissão instalada pelo STF e Senado se transforme em normas legais. Cabe ao TJRJ, ALERJ e ao Governo do Estado formarem comissão com representantes do CRC, da classe dos advogados – não necessariamente da OAB/RJ – e representantes do empresariado para promover uma discussão com vistas a aprimorar o processo administrativo fiscal estadual.

Para tributaristas, voto de qualidade no TIT-SP traz prejuízo aos contribuintes

Após o Órgão Especial do Tribunal de Justiça de São Paulo julgar constitucional o voto de qualidade no Tribunal de Impostos e Taxas (TIT) de São Paulo, especialistas em Direito Tributário ouvidos pela revista eletrônica Consultor Jurídico defenderam mudanças na regra de desempate dos julgamentos na corte.

Atualmente, o TIT-SP usa o voto do presidente da câmara em caso de empate, já que os colegiados são paritários, isto é, possuem o mesmo número de julgadores indicados pelo Fisco e pelos contribuintes. As chamadas “câmaras baixas” (12 no total) possuem quatro membros cada, enquanto a câmara superior conta com 16 integrantes e é conduzida pelo presidente do tribunal, que é sempre um representante do Fisco.

As câmaras pares são presididas por julgadores indicados pelos contribuintes, enquanto as ímpares têm no comando juízes escolhidos pelo Fisco. Desde sua criação, em 1935, o TIT-SP adota o voto de qualidade para resolver julgamentos empatados. Mas há advogados que acreditam que o TJ-SP deveria ter declarado a inconstitucionalidade da regra.

Para Fernando Facury Scaff, colunista da ConJur, sócio do escritório Silveira, Athias, Soriano de Mello, Guimarães, Pinheiro & Scaff Advogados e professor de Direito Financeiro da USP, o TIT-SP deveria adotar o mesmo modelo do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf). Em âmbito federal, uma mudança legislativa recente extinguiu o voto de qualidade.

O caso foi parar no Supremo Tribunal Federal, onde já há maioria para validar a alteração da lei. O julgamento foi suspenso por pedido de vista do ministro Nunes Marques. “Trata-se de um erro do TJ-SP, que contraria a posição do STF. Poderia facilitar a vida do contribuinte paulista e seguir o padrão federal. O modelo do Carf deve ser o parâmetro dos estaduais”, afirmou Scaff. 

Na opinião do advogado Thiago Amaral, sócio da área de tributário do Demarest Advogados, o voto de qualidade prejudica o contribuinte. Mesmo com a alternância entre as partes na presidência das câmaras, ele acredita que há insegurança jurisprudencial no modelo atual. “Não raro, há casos idênticos, sorteados para câmaras diferentes, que terminam com soluções antagônicas por causa do voto de qualidade.”

Na câmara superior, segundo Amaral, há perda da paridade porque o voto de qualidade é dado por um julgador indicado pelo Fisco: “Até mesmo pela legislação um pouco engessada de São Paulo, em que não há previsão clara do TIT se submeter à jurisprudência fixada pelos tribunais superiores, como repercussão geral e recursos repetitivos, há muita discussão que prevalece por voto de qualidade, mas está fadada ao insucesso quando chegar ao Judiciário.”  

O excesso de judicialização também foi destacado pelo advogado Maurício Barros, do Demarest Advogados, que foi juiz do TIT-SP entre 2014 e 2019. “A lei de São Paulo é muito tímida com precedentes. Se há uma súmula vinculante ou declaração de inconstitucionalidade, o TIT tem de aplicar. Mas outros precedentes que vinculam o Judiciário não vinculam, em tese, o TIT. Há questões que estão pacificadas no Judiciário a favor do contribuinte, mas não se aplicam no TIT.”

Medida constitucional
Por outro lado, o advogado e colunista da ConJur Igor Mauler Santiagonão vê inconstitucionalidade no voto de qualidade. Apesar de não ser um entusiasta do modelo, ele afirmou que a Constituição não diz nada a respeito da matéria e, com isso, está aberto o caminho para o legislador instituir a norma que considerar mais adequada. 

“Se o legislador quiser instituir o voto de qualidade, é válido. Se quiser extinguir o voto de qualidade, dizendo que o empate favorece o contribuinte, essa opção também é válida. Não tem na Constituição nenhum dispositivo, nem direta nem indiretamente, que imponha ou vede o voto de qualidade. Isso está no espaço de livre conformação, como dizem os constitucionalistas, do legislador”, disse ele.

Conforme Santigo, trata-se de matéria que está 100% na competência do Legislativo: “A Constituição não dá um parâmetro, então prevalece a liberdade do legislador, que precisa ser respeitada. Talvez fosse ideal ter um critério uniforme nacionalmente. Mas vivemos em uma federação, em que há margem para o ente federativo decidir sua própria política”.

In dubio pro contribuinte
Thiago Amaral, por sua vez, acredita que há elementos para sustentar que o voto de qualidade conflita com princípios constitucionais como o da isonomia, o da razoabilidade e o da imparcialidade do juiz. Ele também destacou a aplicação do artigo 112 do Código Tributário Nacional.

O dispositivo estabelece que a “lei tributária que define infrações, ou lhe comina penalidades, interpreta-se da maneira mais favorável ao acusado”. Para Amaral, a melhor solução para os casos de empate no TIT seria decidir a favor do contribuinte, como vem acontecendo no Carf desde o fim do voto de qualidade. Seria uma espécie de “in dubio pro contribuinte”, segundo o advogado.

“Para exigir um tributo, principalmente no Judiciário, que é o caminho seguinte, é preciso ter requisitos de liquidez e certeza. Não dá para aferir isso em um procedimento em que um órgão técnico avalia e há evidente dúvida sobre esses elementos. Se há empate em um órgão com 16 julgadores, há liquidez e certeza para transformar-se em um título executivo?”, questionou ele.

Nesse cenário, Maurício Barros destacou o trabalho da comissão de juristas criada pelo Senado para modernizar a legislação de processos administrativos e tributários. “Até uma das ideias é ter uma uniformização maior das regras do processo administrativo”, disse o advogado, destacando a necessidade de se buscar também “uma jurisprudência mais homogênea” no contencioso administrativo tributário.

Tábata Viapiana é repórter da revista Consultor Jurídico.

Revista Consultor Jurídico, 15 de setembro de 2022, 19h06

Voto de qualidade para desempates no TIT é constitucional, decide TJ-SP

Por 14 votos a 10, o Órgão Especial do Tribunal de Justiça de São Paulo rejeitou um incidente de arguição de inconstitucionalidade cível e julgou constitucional a regra de desempate adotada pelo Tribunal de Impostos e Taxas (TIT). O TIT usa o voto do presidente da câmara em caso de empate nos julgamentos de recursos de contribuintes contra autuações por dívidas de ICMS.

Prevaleceu no julgamento a divergência instaurada pelo desembargador Moacir Peres. Ele destacou que o TIT tem 87 anos e sempre adotou o voto de qualidade sem ter sido questionado anteriormente. “É um importante critério de desempate, não existindo outra possibilidade legal, pelo menos neste momento. Assim, não vislumbro violação aos princípios da isonomia, da imparcialidade do juiz, da razoabilidade e da proporcionalidade.”

O magistrado classificou o voto de qualidade como “mera técnica de decisão quando não há maioria”. “O fato de o presidente da Câmara já ter votado antes do empate não viola os princípios da isonomia e da imparcialidade do juiz. O voto de qualidade tem natureza diversa do voto dado na qualidade de juiz. Não dá para afirmar que o voto de qualidade será necessariamente igual ao ordinário.”

Peres disse que é contra o voto de qualidade, mas que nem por isso o considera inconstitucional: “Poderia muito bem se adotar número ímpar de julgadores nas câmaras”. O presidente do TJ-SP, desembargador Ricardo Anafe, classificou a regra de desempate como uma “aberração”, mas afirmou que a opção do legislador é “razoável e constitucional”. Anafe acompanhou o voto de Moacir Peres.

O relator sorteado, desembargador Ferreira Rodrigues, votou para acolher o incidente por entender que o voto de qualidade viola princípios constitucionais como o da isonomia e o da imparcialidade do juiz. Segundo ele, há inconstitucionalidade quando se atribui a um dos juízes, em um mesmo julgamento, a possibilidade de proferir dois votos, um ordinário, junto com os demais julgadores, e outro de desempate.  

“Essa previsão implica violação da isonomia em relação aos demais julgadores, que votam uma única vez. Em um tribunal estatal de tamanha importância, a diferenciação entre os juízes pode, sim, comprometer os julgamentos. Como já decidiu o STF, o princípio da isonomia vincula, incondicionalmente, todas as manifestações do poder público, inclusive no aspecto abstrato, pois não é possível ao legislador, no processo de formação da lei, incluir fatores que acarretam a ruptura da igualdade.”

Para Ferreira Rodrigues, a regra também ofende o princípio da imparcialidade ao dar a um juiz que já se manifestou o direito de proferir outro voto, impondo seu ponto de vista anterior. “Se nada indica que ele não manterá seu voto, nada indica, também, que ele vai mudar de posicionamento só por se tratar do voto de qualidade. A norma maximiza o risco de parcialidade, e não minimiza.”

Sobre o incidente
O incidente foi suscitado pela 6ª Câmara de Direito Público contra o artigo 61 da Lei Estadual 13.457/09, em ação movida por uma empresa do ramo têxtil contra o estado de São Paulo visando à nulidade de um auto de infração, uma vez que o não conhecimento do recurso especial interposto se deu por voto de qualidade do presidente da sessão do TIT.

Ao suscitar o incidente e encaminhar a discussão ao Órgão Especial, a 6ª Câmara de Direito Público argumentou que o artigo 61 da Lei Estadual 13.457/09 viola princípios previstos na Constituição Federal. Esse artigo prevê justamente o voto do presidente da câmara em caso de empate.

Processo 0033821-63.2021.8.26.0000

Tábata Viapiana é repórter da revista Consultor Jurídico.

Revista Consultor Jurídico, 14 de setembro de 2022, 17h38

Consultas fiscais e autovinculação da administração pública em pauta no Carf

É curioso como o acaso guarda caminhos inesperados para todas as ocasiões da vida de uma pessoa, inclusive para uma colunista da ConJur no momento de preparar um texto para o Direto do Carf.

Para o artigo de hoje, havia me proposto a, originalmente, cuidar da discussão a respeito do conceito de “serviços executados no exterior, cujo resultado se verifique no país” para fins de incidência do PIS/Cofins importação, nos moldes do artigo 1º, §1º inciso II da Lei nº 10.865/2004. Isto porque, no dia 16 de agosto de 2022, a 3ª Turma da Câmara Superior de Recursos Fiscais (CSRF) enfrentou o tema no julgamento do Processo 13312.000366/2009-53. Ocorre que, pelo fato de ainda não ter sido publicado o respectivo acórdão, somado à ansiedade de analisar rapidamente o precedente sobre matéria tão interessante, para ter acesso ao conteúdo da decisão fui obrigada a me socorrer à gravação da sessão de julgamento disponível no canal do Carf no YouTube. E foi aí que operou o acaso, tratando de fazer com que a coluna de hoje deixasse de ter como foco a questão específica da incidência do PIS/Cofins importação, passando a quedar-se, isto sim, sobre a força e a importância, no bojo do processo administrativo fiscal, das manifestações emanadas pela Receita Federal em sede consultiva. Afinal, esse foi o ponto nodal das discussões travadas entre os conselheiros no referido precedente, que despertaram algumas reflexões.

Suficientemente descrito o acaso, vamos o caso analisado pelo Carf.

O contribuinte sofreu autuação fiscal para cobrança de PIS/Cofins sobre importação de serviços em razão de remessas efetuadas ao exterior, para fins de pagamento de prestadores lá residentes, no contexto de, entre outros, contratos de prestação de serviço de consultoria para atividades estratégicas de divulgação e colocação de marca no país estrangeiro, bem como serviço de publicidade por veiculação da marca em canais estrangeiros.

Para contextualizar a motivação dessa cobrança, cumpre lembrar que a Lei nº 10.865/2004 estabeleceu a incidência do PIS/Cofins-Importação não só sobre operações internacionais com bens, mas também sobre aquelas relacionadas a prestação de serviços provenientes do exterior, prestados por pessoa física ou pessoa jurídica residente ou domiciliada no exterior.

Nesse contexto, o artigo 1º, §1º incisos I e II da Lei nº 10.865/2004 especifica as duas situações em que será considerada ocorrida a importação de serviços, para fins do PIS/Cofins-Importação, quais sejam: 1) serviços provenientes do exterior executados no país; e 2) serviços executados no exterior, mas com resultado verificado em território nacional. Não se deve perder de vista que em ambas as hipóteses é necessário que o serviço seja prestado por residente ou domiciliado no exterior

No que tange à primeira hipótese, não se apresentam maiores dificuldades. A execução do serviço contratado ocorrerá dentro do território nacional, de modo que o contratado atuará trazendo seu esforço humano para o Brasil, a fim de adimplir com o negócio jurídico firmado. Em assim fazendo, fará jus à contraprestação que será remetida ao exterior para pagamento do serviço aqui prestado, dando origem assim à ocorrência do fato gerador do PIS/Cofins-Importação (artigo 3º, II da Lei nº 10.865/2004).

A celeuma se instaura, isto sim, com relação ao inciso II do § 1º do artigo 1º da Lei nº 10.865/2004, quando prevê a incidência das contribuições em relação aos serviços “executados no exterior, cujo resultado se verifique no país”. Afinal, o que seria tal resultado? É necessário aferir quando existe a tal repercussão em território nacional.

O tema é de fato espinhoso e, alfim, é muito casuístico.

O que de pronto percebemos é que a discussão do PIS/Cofins-Importação anda em paralelo com a discussão do Imposto sobre Serviços (ISS) relativamente à exportação, porque ambos apresentam a ideia de “resultado” da prestação do serviço para fins da tributação, além de possuírem regulamentação publicada em datas muito próximas (vide artigo 2º, I, da Lei Complementar nº 116/2003). Ocorre que, circunstancialmente, o contencioso judicial instaurou-se primeiramente com relação ao ISS, e não com relação ao PIS/Cofins-Importação. Esse fato faz com que, em grande medida, as definições importantes para o tema encontrem-se na jurisprudência acerca da questão da exportação de serviços para fins de ISS, qual seja, o REsp nº 831.124 e o AREsp no 587.403, que geram a conhecida distinção entre resultado utilidade x resultado consumação para fins de interpretação do que seria resultado do serviço verificado no Brasil.

Como já adiantado, não mais visamos, na coluna de hoje, maiores explanações sobre o tema. Aqui basta dizer que os casos concretos analisados pelo STJ apresentavam realidades muito distintas. Enquanto o primeiro cuidou de um serviço cujo término de fato ocorreu no Brasil (conserto das peças de aeronave, não havendo obrigação nenhuma do contratante brasileiro a respeito da colocação dessas peças nas respectivas aeronaves localizadas no estrangeiro); o segundo avaliou caso cuja essência própria do serviço contratado era culminar na obtenção de bem (projeto de engenharia) somente utilizável em território alienígena (local da obra para qual foi desenhado o projeto). Percebemos que o objeto do contrato, no primeiro caso, era de fato restrito ao Brasil, enquanto no segundo caso não. Por isso, não é possível falar em uma mudança de entendimento ou resposta final data pelo STJ a respeito do tema. Disso, é possível, isto sim, dizer que os termos do negócio jurídico pactuado serão fundamentais para se concluir a respeito do local do “resultado” do serviço, seja para fins de não incidência do ISS, seja para fins de incidência do PIS/Cofins-Importação.

Tratando especificamente do tema no âmbito administrativo, em 2017 a Receita Federal adotou interpretação amplíssima ao exarar a Solução de Consulta Cosit nº 51/2017, dizendo que o resultado estaria vinculado ao local onde se dá o proveito econômico da prestação do serviço.

Todavia, a própria RFB apresentou outros atos normativos dissonantes em relação a este (e.g. Solução de Consulta 76/2018).

Alfim, a Solução de Consulta nº 51/2017, foi parcialmente reformada pela Solução de Consulta Cosit nº 99.008/2018 e, posteriormente, o tema foi pacificado por meio da Solução de Divergência nº 3/2020. Esse último ato, assim como os anteriormente mencionados, tratou do caso de comissão paga a agente ou representante comercial residente no exterior, cujos pagamentos são atrelados a captação e intermediação de negócio lá efetuados. Consolidou-se, nessa situação, o entendimento de que não há incidência do PIS/Cofins-Importação, por inexistir hipótese de serviço cujo resultado aqui se verifique.

Foi justamente o advento da Solução de Divergência n. 3/2020 que impactou decisivamente os debates da CSRF, no sentido de, por maioria de votos, reverter parcialmente a decisão exarada pela turma ordinária do Carf no Acórdão nº 3301-004.585.

Como é consabido, de um lado, temos no âmbito administrativo federal a função jurisdicional de apaziguar litígios entre Fisco e contribuintes por meio do seu contencioso. De outro lado, a Receita Federal atua em caráter consultivo, com o fim precípuo de evitar litígios e promover a segurança jurídica, pelo esclarecimento de dúvidas, conforme disciplina atualmente o Decreto 70.235/72, com as alterações promovidas pelos artigos 48 a 50 da Lei nº 9.430/96, e a IN RFB nº 2.059/2021.

Mas desde a edição da IN RFB nº 1.396/2013, os efeitos da solução de consulta e de divergência que, até então, restringiam-se ao consulente e à Receita Federal, passaram a ser vinculantes no âmbito da Receita Federal, respaldando qualquer o sujeito passivo que aplicar a orientação ali firmada, independentemente de ser o consulente, desde que se enquadre na hipótese por ela abrangida. Tal medida foi muito importante para consagrar não só a já citada segurança jurídica, como também a isonomia entre contribuintes, possibilitando a solução de casos relativos à proteção da confiança de maneira mais homogênea, também em sintonia com a ideia de impessoalidade que deve reger a administração pública.

Daí a questão tão relevante posta nos debates da CSRF [1].

Partindo do pressuposto que os conselheiros entenderam que o caso concreto que estava sob julgamento amoldava-se àquele que fora objeto da Solução de Divergência nº 3/2020, pergunta-se: se a autoridade fiscal não tem o poder lavrar autos de infração usando a interpretação de “resultado do serviço” contrária ao quanto posto na manifestação consultiva, por que poderiam ser mantidos autos de infração pelo Carf sob tal argumento, rechaçado pela própria Receita Federal?

É certo que a administração atuante como aplicadora da lei não se confunde com a administração como órgão judicante [2]. Ademais, o Carf, organicamente, está dentro da estrutura do Ministério da Economia, mas fora da Receita Federal, de modo que as manifestações exaradas em soluções de consulta ou divergência não vinculam formalmente o Carf. Todavia, nada disso parece justificar, tanto por simples lógica como pelo conteúdo do princípio da isonomia, resposta diferente daquela alcançada pelo Carf: na hipótese de a Receita Federal, em sua função consultiva, formalizar interpretação favorável ao contribuinte, tal entendimento merece ser observado no julgamento de cobranças tributárias do mesmo jaez. Afinal, com a Receita Federal — órgão cuja função arrecadatória é zelar pelo patrimônio público da União, via cobrança de tributos — dizendo que determinada situação não configura hipótese de incidência tributária, tem-se manifestação do próprio Estado em prol do particular que não pode ser levianamente ultrapassada. Em tal manifestação a própria administração tributária reconhece que não pode haver tributação.

Corroborando o ponto, vem à tona o princípio da autovinculação da administração pública.

Tal princípio, que visa proibir comportamentos contraditórios, faz todo sentido no contexto do dinamismo da sociedade atual, da falta de densidade da lei e do excesso de legislação, os quais podem dar ensejo a mudanças de opinião e conduta nas relações jurídicas [3].

Em poucas palavras, a lógica da proibição ao comportamento contraditório não é limitar a liberdade de mudança de opinião e de conduta no âmbito jurídico, mas sim brecar os efeitos dessa liberdade quando dela derivar prejuízo àquele que legitimamente confia na orientação que fora oferecida.Daí vem a importantíssima aferição de que a autovinculação “surge justamente em decorrência da circunstância de que as fórmulas legais são insuficientes para resolver todos os conflitos surgidos na sociedade” [4]. Ou seja, a proibição de comportamento contraditório serve como instrumento da justiça material nos casos de violação à confiança legítima dos administrados não solucionados por qualquer regra do direito positivo.

É justamente o que se verifica no caso posto em discussão, em que não há regra formal vinculando o Carf às manifestações da Cosit.

Para a aplicação do princípio da proibição do comportamento contraditório, poder-se-ia levantar a ideia de necessidade de identidade subjetiva, a qual exigiria que os entendimentos geradores da legítima confiança e do dano deveriam emanar da mesma pessoa jurídica, vale dizer, do mesmo órgão administrativo. Como na situação em análise temos órgãos diversos (Receita Federal e Carf), não seria o caso de aplicação do princípio.

Todavia, conforme a mais atual doutrina do direito administrativo, não é esse o entendimento que se alinha com a afirmação do princípio da segurança jurídica enquanto formador do dever constitucional de coerência administrativa.

É essencial, diante da complexidade do tecido social a ser alcançada pelos diversos braços de atuação do poder público, que existam descentralizações, para a melhoria no desempenho das funções administrativas, preservando a unidade da pessoa jurídica de Direito Público da qual fazem parte. Isso, porém, não afasta, mas sim atrai a necessidade de um desempenho congruente, harmônico dos entes e órgãos que compõem essa malha administrativa [5].

Dessarte, ainda que os atos contraditórios emanem de órgãos com competências diferentes, “o critério para aferir a ocorrência do requisito da identidade subjetiva continuará sendo o da mesma Administração Pública, cuja unidade não deixa de existir em virtude da sua divisão interna organizacional” [6].

Não se pode olvidar, ainda, que a teoria da autovinculação administrativa não é benéfica unicamente aos particulares, que terão sua justa expectativa preservada em situações que não foram comtempladas pelo ordenamento jurídico. A administração pública igualmente muito se favorece com seus efeitos, pois a sua atuação de maneira coerente implicará celeridade e integridade da resposta às demandas consultivas; na redução da litigiosidade no contencioso administrativo; na redução dos riscos e dos custos das relações jurídico-administrativas; “e a maior aceitação dos particulares às suas decisões e, por consequência, o reforço da legitimidade de sua atuação” [7].

Percebendo claramente tais elementos, durante os debates do julgamento do Processo 13312.000366/2009-53, a conselheira Liziane Angelotti Meira apresentou manifestação tão inteligente quanto corajosa sintetizando o tema: “não adianta ser mais realista que o rei”.

Por todas essas razões, é de se aplaudir a decisão exarada na estreia da nova composição da 3ª Turma da CSRF, interpretando o “resultado de serviço” com base no entendimento posto na Solução de Divergência nº 3/2020, quando afastou a cobrança de PIS/Cofins-importação de serviço pelo simples proveito econômico da contratante residente no Brasil. Ao assim fazer deu luz materialmente ao princípio da isonomia e da autovinculação da administração pública, fato que mais do que justifica a mudança do destino da coluna hoje apresentada aos nossos leitores.


[1] A questão dos efeitos de soluções de consulta no Carf, ao que tudo indica, igualmente será objeto de debate quando do julgamento a respeito da figura do “encomendante do encomendante” e da SC Cosit nº 158/2021, no âmbito da interposição fraudulenta de terceiros. Sobre o tema, ver: https://www.conjur.com.br/2022-jan-19/direto-carf-interposicao-fraudulenta-sc-cosit-1582021-1s-reflexos-carf

[2] Sobre a diferenciação entre a função administrativa ativa e a função administrativa judicante ver Botallo, Eduardo Domingos. Curso de Processo Administrativo Tributário. 2ª ed. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 65-66.

[3] SCHREIBER, Anderson. A proibição de comportamento contraditório: tutela da confiança e venire contra factum proprium. São Paulo: Atlas, 2016. p. 4.

[4] FACCI, Lucio Picanço. A proibição de comportamento contraditório no âmbito da Administração Pública: a tutela da confiança nas relações jurídico-administrativas. Revista da Emerj, [s.l.], v. 14, nº 53, p. 199, 2011.

[5] LAURENTIIS, Thais De. Mudança de Critério Jurídico pela Administração Tributária: regime de controle e garantia do contribuinte. São Paulo: IBDT, 2022, p. 313.

[6] FACCI, op. cit., p. 224. 

[7] OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. O papel da advocacia pública no dever de coerência na Administração Pública. Rei – Revista Estudos Institucionais, [s.l.], v. 5, nº 2, p. 389, 6 out. 2019. 

Thais de Laurentiis é conselheira titular do Carf, vice-presidente da Turma 1.201, árbitra no CBMA, doutora e mestre em Direito Tributário pela Faculdade de Direito da USP — com período na Sciences Po/Paris —, especialista pelo Ibet, graduada pela Faculdade de Direito da USP, associada do IBDT e professora de Direito Tributário e Direito Aduaneiro em cursos de pós-graduação e extensão universitária.

Revista Consultor Jurídico, 14 de setembro de 2022, 8h00

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