João Luís de Souza Pereira. Advogado. Mestre em Direito. Professor convidado das pós-graduações da FGV/Direito Rio e do IAG/PUC-Rio.
No texto da Reforma Tributária aprovado pela Câmara dos Deputados constam disposições sobre uma nova lei complementar que irá disciplinar diversos aspectos do novo Imposto Sobre Bens e Serviços (IBS).
Esta lei complementar será objeto de discussão em evento promovido pelo Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB) a se realizar entre os dias 31/07 e 01/08.
Antes da futura lei complementar existir e começar a produzir efeitos, convém refletir sobre o papel que a lei complementar exerce atualmente no Direito Tributário Brasileiro.
O artigo 59, II, da Constituição relaciona as leis complementares entre as normas objeto do processo legislativo brasileiro.
O artigo 69 dispõe que as leis complementares serão aprovadas por maioria absoluta.
Mas o que são leis complementares?
Das diversas manifestações doutrinárias sobre o tema, observa-se que lei complementar é expressão que possui duplo sentido.
Num sentido amplo, lei complementar designa toda norma que é produzida para regulamentar dispositivo constitucional, são leis que complementam a Constituição.
No sentido estrito, porém, leis complementares são aquelas designadas pela própria Constituição e que devem ser elaboradas segundo o quorum estabelecido no artigo 69.
Indo mais além, deve-se observar que a lei complementar tem uma função específica que a distingue das leis ordinárias. Leis Complementares são utilizadas para fazer a integração entre a Constituição e as leis ordinárias.
Esta natureza integrativa da lei complementar é de fundamental importância para o Direito Tributário, embora a Constituição também reserve à lei complementar a disciplina de matérias que, necessariamente, nada têm de integração com as leis ordinárias.
É ainda preciso enfrentar a questão de saber se são realmente leis complementares aquelas normas que apenas obedecem ao requisito do quorum qualificado em sua elaboração. Vale dizer, leis complementares apenas no aspecto formal são verdadeiramente complementares?
O STF já respondeu negativamente a esta pergunta, de modo que leis complementares precisam obedecer a forma prevista na Constituição e também tratar de matéria a elas reservadas pelo Texto Constitucional.
Com efeito, a invasão por lei ordinária de matéria reservada pela Constituição à lei complementar é questão que se resolve pela via do controle de constitucionalidade, vale dizer, a lei ordinária estará sendo inconstitucional.
A chamada Lei Complementar Tributária é aquela prevista no artigo 146 da Constituição que, na redação dada pela Emenda Constitucional n° 42/2003: (a) disporá sobre conflitos de competência entre a União, Estados, Distrito Federal e Municípios; (b) regulará as limitações constitucionais ao poder de tributar; (c) estabelecerá normas gerais em matéria de legislação tributária.
Em relação aos itens “a”, “b” e “c” anteriormente citados, esta lei complementar é o Código Tributário Nacional, embora tenha “nascido” originalmente como uma lei ordinária – a Lei n° 5.172/66. Na verdade, desde a Constituição de 1967, toda a matéria reservada à lei complementar tributária já estava disciplinada no CTN que, desde então, vem sendo recepcionado com status de lei complementar.
Nos termos do artigo 146, I, da Constituição é papel da lei complementar tributária dispor sobre conflitos de competência entre as pessoas políticas. Isto quer dizer que a lei complementar tributária deverá detalhar o âmbito de exercício da competência tributária das pessoas políticas – já extensamente traçado pela Constituição – de modo a evitar eventuais invasões de competência.
A tarefa de regular as limitações constitucionais ao poder de tributar (artigo 146, II) está disciplinada no artigo 14 do CTN no que diz respeito à limitação indicada no artigo 150, VI, “c”, da Constituição. Sobre este assunto, basta lembrar que, à luz da jurisprudência do STF, tais requisitos somente devem estar veiculados em lei complementar naquilo que se referem às questões tributárias, sendo possível a edição de lei ordinária para tratar de temas relacionados à constituição e o funcionamento de entidade imune (ADIN 1.802/DF e RE 93.770)
O artigo 146, III, da Constituição reserva à lei complementar a competência para dispor sobre normas gerais em matéria de legislação tributária, especialmente sobre: a) definição de tributos e de suas espécies, bem como, em relação aos impostos discriminados nesta Constituição, a dos respectivos fatos geradores, bases de cálculo e contribuintes; b) obrigação, lançamento, crédito, prescrição e decadência tributários; c) adequado tratamento tributário ao ato cooperativo praticado pelas sociedades cooperativas e d) definição de tratamento diferenciado e favorecido para as microempresas e para as empresas de pequeno porte, inclusive regimes especiais ou simplificados no caso do imposto previsto no art. 155, II, das contribuições previstas no art. 195, I e §§ 12 e 13, e da contribuição a que se refere o art. 239.
No que diz respeito à definição dos tributos, suas espécies e definição dos fatos geradores do impostos (artigo 146, III, “a”) não se pode deixar de dizer que o CTN não define todas as contribuições instituídas pelo ordenamento constitucional de 1988. Apenas a contribuição de melhoria, que já estava prevista em Constituições anteriores, é que está devidamente definida no Código Tributário Nacional.
Ainda em relação a este dispositivo, vale lembrar que a definição dos fatos geradores dos impostos não pode desvirtuar as linhas gerais estabelecidas pela própria Constituição. Ao definir a competência tributária das pessoas políticas em relação aos impostos (artigos 153, 154, 155 e 156) a Constituição já delimitou com bastante precisão o âmbito de atuação do legislador infraconstitucional.
Já em relação ao artigo 146, III, “b”, deve-se observar que a disciplina da obrigação tributária e respectivo crédito devem estar na lei complementar, assim como a decadência e a prescrição. O legislador constituinte, portanto, reservou à lei complementar o tratamento das formas de nascimento da obrigação, constituição, suspensão e extinção do crédito tributário.
O artigo 146, III, “c”, dispõe que cabe à lei complementar dar adequado tratamento tributário ao ato cooperativo praticado pelas sociedades cooperativas.
O artigo 146, III, “d” deve ser lido em conjunto com seu parágrafo único. Tais dispositivos preveem que cabe à lei complementar definir o tratamento diferenciado e favorecido, do ponto de vista tributário, para as microempresas e empresa de pequeno porte. Em obediência a este dispositivo foi publicada a Lei Complementar nº 123/2006 substituindo diversas leis esparsas, originárias das diversas pessoas políticas, que disciplinaram o tratamento tributário das microempresas e das empresas de pequeno porte.
Os diversos incisos do parágrafo único do artigo 146 indicam algumas regras básicas da LC 123/2006, valendo destacar o inciso III, segundo o qual “o recolhimento será unificado e centralizado e a distribuição da parcela de recursos pertencentes aos respectivos entes federados será imediata, vedada qualquer retenção ou condicionamento.” Isto permite que se faça uma distinção entre a distribuição mencionada neste dispositivo e a repartição das receitas tributárias de que trata a Seção VI, do Capítulo I, do Título VI da Constituição (artigos 157 e seguintes).
A distribuição a que se refere o artigo 146, parágrafo único, III, da Constituição é uma forma de transferência de tributo da competência tributária alheia, arrecadado por uma pessoa política, mas que não lhe pertence originalmente. A repartição a que aludem os artigos 157 e seguintes da Constituição é forma de transferência de tributo próprio para outra pessoa política. Na repartição poderá haver retenção ou condicionamento na forma autorizada pelo artigo 160, parágrafo único. O mesmo não ocorre na distribuição.
Além da lei complementar prevista no artigo 146, a Constituição determina que diversas outras matérias de natureza tributária sejam disciplinadas por esta espécie normativa.
O artigo 146-A, introduzido pela Emenda Constitucional n° 42/2003, prevê a necessidade de uma lei complementar para estabelecer critérios especiais de tributação, com o objetivo de prevenir desequilíbrios da concorrência, o que tem sido entendido como um princípio da neutralidade.
O artigo 148 dispõe que somente lei complementar poderá instituir empréstimos compulsórios.
O artigo 153, VII, prevê que lei complementar disciplinará as grandes fortunas para efeito do imposto da competência da União.
O artigo 154, I, dispõe que a competência residual da União em relação a impostos será exercida através de lei complementar.
O artigo 155, § 1°, III, estabelece a necessidade de lei complementar para disciplinar os casos em que o doador tiver domicílio no exterior, bem com nos casos de de cujus residente ou domiciliado no exterior, com bens localizados no exterior ou com inventário processado no exterior, para fins do imposto de que trata o artigo 155, I.
O artigo 155, § 2°, XII, prevê a necessidade de lei complementar para, em última análise, traçar normas gerais em relação ao ICMS (vide Lei Complementar 87/96 e suas alterações).
O artigo 156, III, determina que os serviços sujeitos à incidência do ISS serão aqueles previstos em lei complementar (vide Lei Complementar n° 116/2003).
Já o artigo 156, § 3°, dispõe, ainda em relação ao ISS, que somente lei complementar poderá: (a) fixar suas alíquotas máximas e mínimas; (b) excluir de sua incidência as exportações de serviços para o exterior e (c) regular a forma e as condições como isenções, incentivos e benefícios fiscais serão concedidos e revogados.
Finalmente, o artigo 195, § 4°, remete ao artigo 154, I, para determinar a necessidade lei complementar para a União exercer sua competência residual em relação às contribuições de seguridade social.