João Luís de Souza Pereira – Advogado. Mestre em Direito. Professor convidado da pós-graduação da FGV/Direito Rio e do IAG/PUC-Rio
Ainda são bastante comuns os autos de infração lavrados pelas Secretarias Estaduais de Fazenda exigindo o ICMS em razão do confronto entre a receita declarada pelo contribuinte e aquelas decorrentes de informações fornecidas pelas administradoras de cartão de crédito/débito.
Estes autos de infração, evidentemente, têm sua origem na quebra do sigilo bancário do contribuinte.
A quebra de sigilo bancário tem previsão no art. 197, II, do Código Tributário Nacional e a matéria é minuciosamente disciplinada pela Lei Complementar nº 105/2001.
Os artigos 5º e 6º, da Lei Complementar nº 105/01 não autorizam apenas à Administração Pública a invadir a base de dados, informações e operações financeiras das pessoas. Muito pior: promovem por si só e de forma geral, rotineira, ininterrupta e irrestrita, a quebra automática do sigilo destes dados e informações, determinando às instituições financeiras que, independentemente de indícios, suspeitas ou qualquer outro fundamento, forneçam, periodicamente, o registro de todas as operações efetuadas pelos usuários de seus serviços.
A LC 105/2001 foi amplamente discutida no Judiciário e o Supremo Tribunal Federal acabou decidindo por sua constitucionalidade.
No âmbito do Estado do Rio de Janeiro, diversas normas cuidam do fornecimento e utilização de dados obtidos junto às administradoras de cartões de crédito para fins de fiscalização do ICMS.
O art. 189, VII, do Código Tributário Estadual, adaptou o art. 197, II, do CTN, para expressamente prever a obrigatoriedade das administradoras de cartão de crédito ou débito, mediante intimação, fornecerem informações de que dispõem sobre as operações realizadas por contribuinte do ICMS.
O art. 2º, II, da Lei nº 5.391/2009 e o Decreto nº 41.726/2009 dispõem que o comprovante de transação com cartão de crédito, emitido por empresa contribuinte do ICMS tem valor fiscal para efeito de apuração do imposto.
Também merece destaque o art. 3º-A, VII, da Lei nº 2.657/96, segundo o qual, considera-se saída de mercadoria sem emissão de documento fiscal os valores relativos à diferença entre os valores informados pelas administradoras de cartão de crédito ou débito em conta corrente e demais estabelecimentos similares e aqueles registrados nas escritas fiscal ou contábil do contribuinte ou nos documentos por ele emitidos.
Apesar de todos estes dispositivos da legislação tributária estadual, o cerne da questão está nos artigos 5º e 6º, da LC 105/2001 e naquilo que o STF decidiu no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 2859.
Embora o Supremo Tribunal Federal tenha acolhido a constitucionalidade da Lei Complementar nº 105/2001, é preciso destacar que o Tribunal fez aguda ressalva quanto à aplicação do art. 6º, da LC 105/2001, pelo Estados-membros.
Com efeito, os arts. 5º e 6º, da Lei Complementar nº 105/2001[1], cuidam de situações distintas e têm destinatários diferentes.
O art. 5º, segundo a expressão literal do dispositivo, é voltado exclusivamente à União, jamais podendo ser utilizado pelos Estados.
Já o art. 6º, da LC 105/2001, tem aplicação aos demais entes da federação.
No entanto, nas palavras do Supremo Tribunal Federal (ADIN 2859, DJ 21/10/2016), os Estados “somente poderão obter as informações de que trata o art. 6º da Lei Complementar nº 105/2001 quando a matéria estiver devidamente regulamentada, de maneira análoga ao Decreto federal nº 3.724/2001, de modo a resguardar as garantias processuais do contribuinte, na forma preconizada pela Lei nº 9.784/99, e o sigilo dos seus dados bancários”.
Mas o que significa a regulamentação da matéria de maneira análoga ao Decreto federal nº 3.724/2001?
Responde o próprio Supremo Tribunal Federal:
“… a regulamentação da matéria no âmbito estadual e municipal deverá, obrigatoriamente, conter as seguintes garantias:
i) pertinência temática entre as informações bancárias requeridas na forma do art. 6º da LC no 105/01 e o tributo objeto de cobrança no processo administrativo instaurado;
ii) prévia notificação do contribuinte quanto à instauração do processo (leia-se, o contribuinte deverá ser notificado da existência do processo administrativo previamente à requisição das informações sobre sua movimentação financeira) e relativamente a todos os demais atos;
iii) submissão do pedido de acesso a um superior hierárquico do agente fiscal requerente;
iv) existência de sistemas eletrônicos de segurança que sejam certificados e com registro de acesso, de modo que torne possível identificar as pessoas que tiverem acesso aos dados sigilosos, inclusive para efeito de responsabilização na hipótese de abusos;
v) estabelecimento de mecanismos efetivos de apuração e correção de desvios;
vi) amplo acesso do contribuinte aos autos, garantindo-lhe a extração de cópias de quaisquer documentos e decisões, de maneira a permitir que possa exercer a todo tempo o controle jurisdicional dos atos da administração, segundo atualmente dispõe a Lei 9.784/1999.”
No Estado do Rio de Janeiro, somente a partir do Decreto nº 46.902/2020 é que foi regulamentada a aplicação do art. 6º, da Lei Complementar nº 105/2001, no âmbito estadual.
A publicação do Decreto nº 46.902/2020 é extremamente importante porque escancara um fato defendido desde há muito: até a sua publicação, a fiscalização do ICMS não estava autorizada a promover a quebra do sigilo bancário dos contribuintes, apesar de todos os dispositivos da legislação estadual que, aparentemente, davam guarida às autuações promovidas pela SEFAZ/RJ.
Em outras palavras: as normas estaduais anteriores ao Decreto nº 46.902/2020 não contemplam todas as hipóteses que, segundo o Supremo Tribunal Federal, autorizariam o acesso aos dados do contribuinte sem prévia autorização judicial.
Consequentemente, todas as informações obtidas por tal meio são imprestáveis, da mesma forma que não se aproveita o fruto decorrente de uma árvore podre ou envenenada.
Esta posição, a propósito, tem sido acolhida pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro[2].
É bem verdade que há decisões do TJRJ em sentido contrário, admitindo a quebra de sigilo bancário com fundamento no art. 5º, da LC 105/2001.
Tais decisões, à evidência, não devem prevalecer, porque o art. 5º claramente tem como destinatário das informações a administração tributária da União.
Portanto, o ICMS decorrente de auto de infração lavrado anteriormente a 15/01/2020, exigindo o imposto por divergências entre o que foi declarado pelo contribuinte e o que foi informado por administradoras de cartão de crédito/débito, é indevido.
[1] Art. 5o O Poder Executivo disciplinará, inclusive quanto à periodicidade e aos limites de valor, os critérios segundo os quais as instituições financeiras informarão à administração tributária da União, as operações financeiras efetuadas pelos usuários de seus serviços.
§ 1o Consideram-se operações financeiras, para os efeitos deste artigo:
I – depósitos à vista e a prazo, inclusive em conta de poupança;
II – pagamentos efetuados em moeda corrente ou em cheques;
III – emissão de ordens de crédito ou documentos assemelhados;
IV – resgates em contas de depósitos à vista ou a prazo, inclusive de poupança;
V – contratos de mútuo;
VI – descontos de duplicatas, notas promissórias e outros títulos de crédito;
VII – aquisições e vendas de títulos de renda fixa ou variável;
VIII – aplicações em fundos de investimentos;
IX – aquisições de moeda estrangeira;
X – conversões de moeda estrangeira em moeda nacional;
XI – transferências de moeda e outros valores para o exterior;
XII – operações com ouro, ativo financeiro;
XIII – operações com cartão de crédito;
XIV – operações de arrendamento mercantil; e
XV – quaisquer outras operações de natureza semelhante que venham a ser autorizadas pelo Banco Central do Brasil, Comissão de Valores Mobiliários ou outro órgão competente.
§ 2o As informações transferidas na forma do caput deste artigo restringir-se-ão a informes relacionados com a identificação dos titulares das operações e os montantes globais mensalmente movimentados, vedada a inserção de qualquer elemento que permita identificar a sua origem ou a natureza dos gastos a partir deles efetuados.
§ 3o Não se incluem entre as informações de que trata este artigo as operações financeiras efetuadas pelas administrações direta e indireta da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.
§ 4o Recebidas as informações de que trata este artigo, se detectados indícios de falhas, incorreções ou omissões, ou de cometimento de ilícito fiscal, a autoridade interessada poderá requisitar as informações e os documentos de que necessitar, bem como realizar fiscalização ou auditoria para a adequada apuração dos fatos.
§ 5o As informações a que refere este artigo serão conservadas sob sigilo fiscal, na forma da legislação em vigor.
Art. 6o As autoridades e os agentes fiscais tributários da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios somente poderão examinar documentos, livros e registros de instituições financeiras, inclusive os referentes a contas de depósitos e aplicações financeiras, quando houver processo administrativo instaurado ou procedimento fiscal em curso e tais exames sejam considerados indispensáveis pela autoridade administrativa competente.
Parágrafo único. O resultado dos exames, as informações e os documentos a que se refere este artigo serão conservados em sigilo, observada a legislação tributária.
[2] APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO ANULATÓRIA DE AUTO DE INFRAÇÃO C/C REQUERIMENTO DE TUTELA DE URGÊNCIA. SENTENÇA DE IMPROCEDÊNCIA. RECURSO DO AUTOR. PRELIMINAR DE PRESCRIÇÃO DO CRÉDITO TRIBUTÁRIO AFASTADA. AUTO DE INFRAÇÃO DE ICMS. ENCERRAMENTO DA EMPRESA NA JUNTA COMERCIAL E NO CNPJ NÃO IMPEDE A COBRANÇA DO ICMS REFERENTE AO PERÍODO EM QUE SE ENCONTRAVA ATIVA, DESDE QUE OBSERVADO O PRAZO PRESCRICIONAL. ILEGALIDADE NOS AUTOS DE INFRAÇÃO CAUSADA PELA FORMA QUE A FAZENDA COLETOU OS DADOS QUE OS FUNDAMENTARAM. INFORMAÇÕES PRESTADAS PELAS OPERADORAS DOS CARTÕES. DECISÃO DO STF NA ADI Nº 2.859, NO SENTIDO DE QUE, PARA QUE O ESTADO POSSA ACESSAR OS DADOS INDIVIDUALIZADOS, NA FORMA DO ART. 6º DA LC Nº 105/2001, É NECESSÁRIA A EXISTÊNCIA DE NORMA PRÓPRIA PREVENDO A OBSERVAÇÃO DAS GARANTIAS DETERMINADAS NO JULGADO. LEGISLAÇÃO INFORMADA PELO ESTADO DO RIO DE JANEIRO, DA QUAL NÃO SE VERIFICA A EXISTÊNCIA DE NORMATIZAÇÃO PRÓPRIA DO ESTADO PREVENDO MEDIDAS QUE ASSEGUREM O SIGILO DOS DADOS OBTIDOS JUNTO ÀS OPERADORAS DE CRÉDITO, NOTADAMENTE A NOTIFICAÇÃO PRÉVIA DO CONTRIBUINTE E A IMPLANTAÇÃO DE SISTEMAS ELETRÔNICOS DE SEGURANÇA QUE SEJAM CERTIFICADOS E COM REGISTRO DE ACESSO. NÃO PREENCHIMENTO DO REQUISITO NECESSÁRIO DE APLICAÇÃO DO ART. 6º, DA LC Nº. 105/2001, CONFORME DECIDIDO PELO STF NA ADI Nº 2.859. CONFIGURADA A VIOLAÇÃO AO SIGILO BANCÁRIO DO CONTRIBUINTE, ENSEJANDO A NULIDADE DOS AUTOS DE INFRAÇÃO DECORRENTES DAS CONSULTAS. REFORMA DA SENTENÇA. PROVIMENTO DO RECURSO.
(0005521-19.2018.8.19.0024 – APELAÇÃO. Des(a). MARIA ISABEL PAES GONÇALVES – Julgamento: 12/12/2022 – SEGUNDA CÂMARA CÍVEL)