ARTIGO DA SEMANA – MP 1.160/2023 e o fim do julgamento empatado no CARF em favor do contribuinte

João Luís de Souza Pereira. Advogado. Mestre em Direito. Professor convidado das pós-graduações da FGV-Direito Rio e do IAG/PUC-Rio.

O art. 1º, da Medida Provisória nº 1.160/2023, que restabelece o voto de qualidade em favor do fisco nos julgamentos do contencioso administrativo fiscal federal, não é boa notícia.

Antes de mais nada, é preciso dizer que a manutenção do chamado “voto de qualidade” não é medida de esquerda ou de direita, mas de centro, precisamente do fiel da balança.

Entre as diversas críticas que são feitas ao processo administrativo fiscal, prevalece aquela – típica do senso comum e nada técnica – que afirma que “não vale pena discutir uma autuação da Receita Federal junto à própria Receita”. 

Aqueles que militam no contencioso administrativo sempre insistiram no contrário, sobretudo porque sabem que a segunda instância no processo administrativo fiscal é mais arejada, fruto da convivência dos representantes dos contribuintes com os representantes do fisco.

A paridade na composição de órgãos julgadores de segunda instância não é um capricho, mas uma necessidade.

Ainda que se reconheça as críticas quanto à figura do Quinto Constitucional nos Tribunais de Justiça e demais órgãos jurisdicionais, o fato é que a presença de julgadores oriundos da advocacia e do Ministério Público faz muito bem aos julgamentos Colegiados, trazendo ao debate pontos de vistas multifacetados, enriquecendo as conclusões da prestação da tutela jurisdicional.

A composição paritária dos órgãos administrativos de função judicante tem o mesmo propósito: enriquecer o debate na tomada de decisão numa relação jurídica que nasce compulsoriamente com a ocorrência do fato gerador.

A previsão da solução do litígio em favor do contribuinte nos casos de empate nos julgamentos do CARF, tal qual previsto no art. 28, da Lei nº 13.988/2020, que introduziu o art. 19-E na Lei nº 10.522/2002, já foi objeto de apreciação recente pelo STF, que concluiu por sua constitucionalidade.

A reintrodução do voto qualidade em favor do fisco só traz insegurança. Afinal, como esperar estabilidade numa relação processual se a regra do jogo muda circunstancialmente e em menos de 3 (três) anos?

Além disso, esta alteração casuística na norma reguladora do processo administrativo fiscal, por ato normativo de iniciativa do Chefe do Poder Executivo, parece mandar um recado estranho aos litigantes: este processo não existe para ter um desfecho imparcial, mas para atender o interesse do fisco.

Também é preciso observar que o fim da previsão do desfecho do julgamento empatado em favor do contribuinte só irá aumentar o número de medidas judiciais em matéria tributária. Será o que o Ministro da Fazenda supôs que o contribuinte derrotado, ao final de um processo administrativo com julgamento acirrado, irá correr   para pagar ou parcelar o crédito tributário?

Base de cálculo do ITBI na regularização fundiária promovida pelo Incra

Para efeito de definição da base de cálculo do ITBI, podem os municípios ignorar o valor constante do título de domínio, com cláusulas resolutivas, expedido pelo Instituto Nacional da Colonização e Reforma Agrária (Incra), obedecidas as regras legais e regulamentares que determinam o Valor da Terra Nua (VTN) federal, no bojo do processo de regularização de terras federais através de legitimação de posses?

A pretexto de atribuir “valor de mercado” para efeito de exigência do ITBI, devido no processo de regularização fundiária promovido pelo órgão federal competente, podem legitimamente os municípios desconsiderar o valor atribuído à terra pública federal (VTN) pelo Incra?

Compete ao Incra a tarefa de promover a regularização jurídica de terras federais, devendo, nos termos do Estatuto da Terra (Lei 6.504/64), promover a discriminação das áreas ocupadas por posseiros, para a progressiva regularização de suas condições de uso e posse da terra, providenciando, nos casos e condições previstos nesta lei, a emissão dos títulos de domínio (artigo 97, I). 

Ainda segundo o Estatuto da Terra, a transferência do domínio ao posseiro de terras devolutas federais efetivar-se-á no competente processo administrativo de legitimação de posse (artigo 99); o título de domínio expedido pelo Incra será, dentro do prazo que o Regulamento estabelecer, transcrito no competente Registro Geral de Imóveis (artigo 100) e as taxas devidas pelo legitimante de posse em terras devolutas federais, constarão de tabela a ser periodicamente expedida pelo Incra, atendendo-se à ancianidade da posse, bem como às diversificações das regiões em que se verificar a respectiva discriminação (artigo 101)

Na regularização de terra pública federal através do reconhecimento da legitimação de posse, o Incra adota o Valor da Terra Nua (VTN), conforme critérios estabelecidos pela Lei n° 11.952 de junho de 2009:

Art. 12. Na ocupação de área contínua acima de um módulo fiscal e até o limite previsto no § 1o do art. 6o desta Lei, a alienação e, no caso previsto no § 4o do art. 6o desta Lei, a concessão de direito real de uso dar-se-ão de forma onerosa, dispensada a licitação (Redação dada pela Lei nº 13.465, de 2017).

§ 1o O preço do imóvel considerará o tamanho da área e será estabelecido entre 10% (dez por cento) e 50% (cinquenta por cento) do valor mínimo da pauta de valores da terra nua para fins de titulação e regularização fundiária elaborada pelo Incra, com base nos valores de imóveis avaliados para a reforma agrária, conforme regulamento
.

2o Na hipótese de inexistirem parâmetros para a definição do valor da terra nua na forma de que trata o 1o deste artigo, a administração pública utilizará como referência avaliações de preços produzidas preferencialmente por entidades públicas, justificadamente. 

Vale dizer, a regularização de terras públicas federais obedece a critérios legalmente definidos e o título de domínio conferido pelo órgão federal é o resultado da aplicação destes critérios à realidade fática. O valor do título de domínio expedido pelo Incra em favor do posseiro não constitui ato discricionário, mas ato vinculado às normas legais e regulamentares que estabelecem o preço da terra pública (artigo 12, Lei 12.952/09, supra citada).

Registre-se, desde logo, que o título de domínio é expedido sob um conjunto de condições resolutórias (artigo 15, Lei 11.952/2009), entre os quais o pagamento do valor definido pelo Incra no próprio título. A disciplina legal do tema, notadamente as condições resolutórias impostas pela lei, deixam claro que não se trata venda de terra pública (o que exigiria, entre outras condições, autorização legal expressa e licitação pública), mas de processo de legitimação de posses pelo seu proprietário (União Federal).

No entanto, a plena regularização do domínio junto ao Registro de Imóveis depende do recolhimento do ITBI, de competência dos municípios, nos termos do artigo 156, II da Constituição Federal.

Ocorre que vários municípios, a pretexto de arbitrar o valor de mercado do bem imóvel transferido para efeito de cobrança de ITBI, vêm desconsiderando o valor do negócio jurídico fixado pelo órgão federal (Incra) no título de domínio, equiparando o processo de regularização fundiária federal a uma simples transferência imobiliária entre dois agentes privados. Este procedimento afigura-se claramente inconstitucional e ilegal, por diferentes razões.

Primeira razão: ao desconsiderar o Valor da Terra Nua (VTN) fixado pelo Incra no título de domínio, para efeito de exigência de ITBI, os municípios invadem a competência federal exclusiva para legislar privativamente sobre direito agrário (artigo 22, I), bem como promover a regularização de terras federais. Por determinação constitucional, a destinação de terras públicas deve ser compatível com o plano nacional de reforma agrária (artigo 188).

Além da execução da reforma agrária e da colonização, é missão do órgão fundiário federal (Incra) promover o ordenamento e a regularização de terras devolutas federais (Portaria Incra nº 531, de 23 de março de 2020).

Ao desconsiderar o valor do título de domínio definido pelo Incra, com base em critérios legais e regulamentares (Lei 12.952/09), arbitrando a base de cálculo do ITBI em valores muito superiores, os municípios, a claras luzes, invadem a competência federal para promover a regularização jurídica das suas terras e frustram o objetivo maior pretendido pela Constituição que é a promoção de segurança jurídica no campo.

A segurança jurídica almejada pela regularização fundiária pressupõe a regular averbação do título de domínio expedido pelo Incra no Ofício do Registro de Imóveis, o que somente é possível após o recolhimento do ITBI devido na operação de transmissão imobiliária. Ao majorar absurdamente a base de cálculo tributária do ITBI — em valores até dez vezes superiores ao valor do negócio translativo — os Fiscos municipais acabam por comprometer o processo de regularização fundiária promovido pelo Governo Federal, em evidente inconstitucionalidade. 

Assim, manifesta a inconstitucionalidade das leis municipais que exigem o ITBI com base de cálculo superior ao VTN constante do título de domínio expedido pelo Incra, no bojo do processo de regularização de terras federais, o qual é resultado de aplicação de regras legais e regulamentares federais.

Segunda razão: a transmissão imobiliária, objeto da incidência do ITBI, pressupõe um negócio jurídico praticado entre alienante e adquirente, onde o preço (elemento essencial) é resultado da liberdade de negociação e da vontade das partes. 

Por outro lado, no caso da regularização fundiária promovida pela Incra não ocorre um negócio jurídico stricto sensu (como aquele realizado entre dois sujeitos privados), mas um negócio jurídico sui generis, na medida em que o elemento essencial do ato translativo (preço) não decorre de uma negociação entre o poder público (emissor do título de legitimação de posse) e o posseiro (adquirente); aqui, não há o elemento “vontade das partes”, mas mero ato de aplicação das regras legais e regulamentares. O preço do negócio jurídico (valor do título de domínio) não é resultado de um acordo de vontades entre o governo federal e o adquirente (posseiro), mas mero ato de aplicação concreta e obediência aos ditames legais e regulamentares que fixam o VTN federal.

A transferência imobiliária, objeto de incidência do ITBI, resultante do processo de regularização fundiária federal não pode ser juridicamente equiparada aos negócios translativos imobiliários praticados entre dois sujeitos privados, onde o preço (base de cálculo do ITBI) é o resultado de um pacto negocial e podem ser ajustados ao alvedrio da vontade.

Assim, evidente a ilegalidade da cobrança de ITBI com base de cálculo arbitrada pelos municípios em valores superiores ao fixado pelo Incra no título de domínio expedido em consonância com as regras federais de regularização fundiária uma vez que o preço do negócio jurídico de alienação da terra pública não resulta de um ato de vontade das partes, mas de mera aplicação das regras legais e regulamentares que estabelecem o Valor da Terra Nua.

Terceira razão: o Superior Tribunal de Justiça (STJ), quando do Julgamento do Recurso Especial Repetitivo nº 1.937.821/SP, analisado em março de 2022, definiu que os Fiscos municipais não podem fixar previamente a base de cálculo do ITBI com base em valores de referência por eles criados.

Segundo as teses fixadas pelo STJ no Tema 1.113:

  • “A base de cálculo do ITBI é o valor do imóvel transmitido em condições normais de mercado, não estando vinculada à base de cálculo do IPTU, que nem sequer pode ser utilizada como piso de tributação;
  • O valor da transação declarado pelo contribuinte goza da presunção de que é condizente com o valor de mercado, e essa presunção somente pode ser afastada pelo fisco mediante a instauração de processo administrativo próprio (art. 148 do CTN) e
  • O município não pode arbitrar previamente a base de cálculo do ITBI com respaldo em valor de referência por ele estabelecido unilateralmente”.

Na dicção do Superior Tribunal de Justiça, os municípios devem obedecer ao valor do negócio jurídico atribuído pelas partes para fins de tributação pelo ITBI, o qual presume-se refletir o valor de mercado do bem imóvel. Presume-se a validade do valor declarado pelas partes no negócio jurídico translativo. Trata-se de presunção juris tantum que pode ser afastada pelo Fisco municipal através da instauração de processo administrativo próprio.

Diferentemente, no caso de regularização fundiária, o valor da base de cálculo tributável (valor do título de domínio expedido pelo Incra) não resulta de uma presunção juris tantum, possível de ser afastada pelo Fisco municipal dentro do devido processo legal, mas, ao contrário, trata-se de verdadeira presunção jure et de jure já que o preço do negócio jurídico reflete a aplicação das regras legais e regulamentares que fixam o VTN federal.

Em outro dizer, o valor do negócio jurídico de regularização fundiária constitui um ato de aplicação pelo Incra de normas legais e regulamentares que fixam o valor da terra pública federal, autêntica presunção jure et de jureinsuscetível de ser ignorada pelo Fisco municipal. 

O arbitramento da base de cálculo do ITBI pelo Fisco municipal em montante distinto daquele constante do negócio jurídico de regularização fundiária dependeria da obtenção de prévia decisão judicial pelo ente municipal haja vista a natureza jurídica de presunção jure et de jure do valor constante do título de domínio emitido pelo órgão federal (dotado de competência legal para a regularização de terras federais) o qual representa a aplicação administrativa de critérios legais e regulamentares que estabelecem o valor da terra pública federal.

Portanto, respondendo diretamente à questão formulada no primeiro parágrafo deste artigo, não pode o municípío exigir ITBI adotando base de cálculo superior àquela constante do título de domínio expedido pelo Incra no bojo do processo de regularização de terra pública federal, pois:

  • Constitucionalmente, compete à União Federal legislar sobre direito agrário (artigo 22, I) bem como a tarefa de promover regularização fundiária em consonância com o plano nacional de reforma agrária (artigo 188). Ao desconsiderar o VTN federal definido pelo Incra e majorar a base de cálculo do ITBI (na busca de um suposto “valor de mercado”), o ente municipal invade a competência da União Federal e frustra os objetivos da política nacional de regularização fundiária e reforma agrária que buscam conferir segurança jurídica no campo;
  • O valor constante do título de domínio com cláusulas resolutivas expedido pelo Incra não é fruto de um pacto privado, tal como corre em uma transferência imobiliária realizada entre dois sujeitos privados; a regularização fundiária tem a natureza de um negócio jurídico sui generis na medida em que o preço da terra pública é resultado da aplicação de regras legais e regulamentares, e não produto de um ato discricionário do agente público ou da negociação com o adquirente privado. Equiparar a regularização fundiária promovida pelo Incra a uma transmissão imobiliária realizada entre dois agentes privados para efeito de ITBI representa manifesta ilegalidade;
  • O VTN constante do título de domínio expedido pelo Incra consubstancia uma presunção jure et de jure que somente pode ser desconsiderada pelo Fisco municipal por meio de decisão judicial, já que representa a simples aplicação de regras legais e regulamentares que fixam o valor da terra federal, diferentemente da presunção juris tantum dos demais negócios jurídicos imobiliários translativos realizados entre dois agentes privados, que, na dicção do Superior Tribunal de Justiça, pode ser desfeita, desde que obedecidas às exigências do devido processo legal.

Helenilson Cunha Pontes é sócio do Cunha Pontes Advogados, livre-docente (USP) e doutor (USP).

Revista Consultor Jurídico, 11 de janeiro de 2023, 19h02

O lucro arbitrado na omissão de receitas e o problema da vagueza

Quanto fios de cabelo alguém precisa ter para ser considerado “calvo”? E quantos quilos, para ser considerado “gordo”? Ou quantos anos, para ser considerado “idoso”? Todos esses termos têm em comum a sua inevitável vagueza, marcada pela dificuldade de determinar a sua aplicação aos chamados “casos-limite”.

Como define Humberto Ávila, em recentíssimo estudo sobre o tema, “o que caracteriza a vagueza é a falta de demarcação dos limites de aplicação do significado ou a falta de precisão ou acurácia dessa aplicação” [1]. Essa indeterminação semântica afeta diretamente a aplicação das regras jurídicas, pois torna igualmente indeterminados os limites do alcance da hipótese de aplicação das regras, diante de casos-limites.

No texto de hoje, analisaremos um problema tão recorrente quanto inexplorado na jurisprudência tributária e que se conecta com a questão da vagueza: diante de uma hipótese de omissão de receitas, quando deve ser arbitrado o lucro? [2] Antes de avançarmos, é preciso esclarecermos um pouco mais como essas discussões se conectam.

Omitir receita nada mais é do que deixar de registrar em sua escrituração ganhos tributáveis no resultado do período, gerando uma redução indevida da base de cálculo dos tributos que se conectam com esses ganhos, como IRPJ, CSLL, PIS e Cofins. A sua verificação pode se dar de duas formas: 1)comprovada, quando a fiscalização colige provas que evidenciam a diferença entre o montante de receitas declaradas e efetivamente ingressadas (p.ex. cotejo da escrituração com pagamentos recebidos por cartão de crédito ou registros de notas fiscais emitidas) ou 2) presumida, com base em previsões legais que estabelecem a presunção de omissão de receita, diante de certos indícios qualificados (p.ex. depósitos bancários de origem não comprovada e saldo credor na conta Caixa).

A conduta de omissão de receitas se conecta com a discussão do Lucro Arbitrado em razão da hipótese de arbitramento prevista no artigo 603, III, do RIR/2018, que determina que se arbitre o lucro quando “a escrituração a que o contribuinte estiver obrigado revelar evidentes indícios de fraudes ou contiver vícios, erros ou deficiências que a tornem imprestável para: i) identificar a efetiva movimentação financeira, inclusive bancária; ou ii) determinar o lucro real“.

A omissão de receitas, tanto presumida como comprovada, é, na melhor das hipóteses, indicativo de vícios, erros ou deficiências na escrituração, quando não se presta a demonstrar fraudes realizadas pelos contribuintes. Entretanto, não são quaisquer erros ou vícios que justificam o arbitramento, mas apenas aqueles que tornem imprestável a escrituração do contribuinte, para os fins estabelecidos em lei.

Ora, a partir de quantos vícios ou erros uma escrituração se torna imprestável? Ou pior, que tipos de vício a tornam imprestável? Lidar com a vagueza dessa qualificação é essencial para que se realize e controle o lançamento tributário, diante da obrigatoriedade do arbitramento, diante das hipóteses legais.

Explica-se: identificada a ocorrência de uma das hipóteses de arbitramento, não há qualquer margem de discricionariedade da fiscalização quanto a escolha de base de cálculo. Pelo contrário, o auditor-fiscal é obrigado realizar o arbitramento, uma vez verificado que se trata de uma hipótese legal para tanto, sob pena de nulidade, por vício material, do lançamento tributário realizado. O Carf tem inúmeros precedentes reconhecendo que “o artigo 47 da Lei nº 8.981, de 1995, ao usar a expressão de que o lucro será arbitrado, nos casos que especifica, não confere faculdade à autoridade fiscal, mas sim comando impositivo quanto à forma de tributação” [3]. Afirma-se, nessa linha, que o arbitramento “não se trata de uma faculdade, mas de efetiva imposição legal” [4] que deve ser observada no lançamento.

Inclusive, a vagueza na aplicação dessa hipótese de arbitramento afeta o crédito tributário em duas oportunidades: a primeira na realização do lançamento, e a segunda na sua revisão, pelos órgãos de contencioso administrativo. Essa constatação, apesar de trivial, é crucial para compreender a relevância dessa questão, pois basta haver uma discrepância de critério entre a administração tributária e o Carf na determinação do que seria “imprestável”, para que o auto de infração seja anulado.

A respeito da apuração do Lucro Arbitrado nas hipóteses de omissão de receita, não identificamos qualquer incompatibilidade da aplicação desse regime de apuração a partir tanto das omissões presumidas quanto das comprovadas. Perante o Direito, a receita apurada por meio da presunção legal é tão válida quanto aquela levantada por meio de provas diretas, e ambas são passíveis de contraprova do contribuinte. Dessa forma, uma vez fixada a receita bruta, ainda que com o cômputo das receitas omitidas, resta afastada peremptoriamente a possibilidade de se aplicar os parâmetros de cálculo do Lucro Arbitrado estabelecidos no artigo 608 do RIR/2018 [5]

Por outro lado, tampouco nos parece que o simples fato de haver receita omitida, por si só, permitiria inferir que a fiscalização deveria se socorrer necessariamente do Lucro Arbitrado. Para essa conclusão, deve-se passar à análise de um outro ponto: a existência ou efetivação do registro de custos e despesas relacionados à receita omitida e escriturada.

Se na escrituração contábil do contribuinte já se encontram registrados custos e despesas, em regra, não havendo nada que justifique a sua desconsideração, deve-se presumir que eles seriam efetivos, pois a omissão ocorre no registro da receita. Entretanto, o simples fato de haver gastos escriturados não significa que basta confrontá-los com a receita omitida e apurar as bases de cálculo. Aqui, a fiscalização deve verificar se os custos e despesas seriam razoavelmente correlacionáveis à essa receita objeto da omissão.

As situações mais comuns são as seguintes: 1) ausência total de escrituração de despesas/custos e receitas (omissão total de receitas e gastos); 2)escrituração de gastos correlacionados estritamente à receita declarada (omissão parcial de receitas e gastos[6]; e 3) escrituração de todos os gastos, e omissão de parte das receitas (omissão parcial das receitas).

Essa verificação da correlação entre receitas omitidas e gastos escriturados é mais factível de ser realizada nas hipóteses de omissão comprovada de receitas, pois é possível se ter uma dimensão real das operações realizadas, mas não declaradas, por meio de notas fiscais emitidas, operações com cartão, outros registros paralelos, controles de Estoque etc. Nesses casos, é possível a fiscalização verificar se os custos registrados (p.ex., de mercadorias vendidas) correspondem às receitas apuradas.

Caso a fiscalização verifique se tratar de uma omissão parcial apenas das receitas, não haveria óbice à apuração do Lucro Real. Entretanto, em se tratando das hipóteses de omissão total ou parcial de receitas e gastos, a fiscalização deveria, antes de partir para o arbitramento, intimar o contribuinte à regularização da sua escrituração, em prazo hábil, considerando a própria subsidiariedade desse método de apuração do lucro [7].

Intimado o contribuinte, duas situações podem ocorrer: 1) o contribuinte atende à fiscalização no prazo, retificando a sua escrituração, razão pela qual poderia ser apurado o Lucro Real; ou 2) ele não atende à fiscalização, autorizando-se ao arbitramento dos lucros, a partir da receita omitida, e desconsiderando a parcela de gastos escriturados.

Por outro lado, nas hipóteses de omissão por presunção de receitas, esse confronto com os gastos é mais problemático, pois o que há é a receita apurada a partir de elementos indiciários, que não permitem essa correlação direta com os gastos total ou parcialmente escriturados. Nesses casos, como dificilmente será possível concluir que a omissão se deu apenas nas receitas, parece-nos que a fiscalização deveria partir diretamente à intimação para correção da escrituração e, a depender do atendimento pelo contribuinte, apurar o Lucro Real ou Arbitrado.

Caso o contribuinte, após intimação para comprovar os seus gastos, não atender essa determinação e por isso sofrer o arbitramento do lucro, não pode posteriormente buscar na esfera administrativa comprovar exaustivamente esses elementos, buscando uma requalificação da base de cálculo para o Lucro Real — como estabelecido pela Súmula Carf nº 59 [8]. De outro giro, em atendendo a intimação, ou sendo a informação escriturada suficiente para a apuração do Lucro Real, não há qualquer óbice de administrativamente demonstrar novos custos e despesas não escriturados e verificados pela fiscalização, em um contexto de revisão da base de cálculo apurado pelo Fisco.

Além desse ângulo da correlação entre os gastos registrados e as receitas apuradas, usualmente utilizado para verificar a imprestabilidade da escrituração, há um segundo ângulo de análise baseado nas diferenças quantitativas entre as receitas declaradas e as omitidas.

Nas hipóteses de omissão parcial de receitas e gastos, e principalmente em razão da ausência de intimação da fiscalização para complementação dos registros contábeis e fiscais, costuma-se verificar o grau de discrepância entre a receita omitida e a declarada, para determinar se se trata de um caso de imprestabilidade da escrituração. 

Nesses casos, parece haver um casuísmo bastante elevado na determinação de qual grau de diferença seria suficiente a justificar que o lucro deveria ser arbitrado, sob pena de se impor uma margem de lucro irreal ao contribuinte. Vejamos alguns exemplos:

i) Ac. nº 1401-001.773 [9]: apurou-se que uma diferença de 65% entre a receita declarada e a receita omitida, seria uma margem de lucro impossível de ser alcançada, justificando o arbitramento;

ii) Ac. nº 9101-003.136 [10]: apurou-se que as receitas declaradas correspondiam a 3,2% das receitas omitidas; reconhecendo a necessidade do arbitramento;

iii) Ac. nº 1301-001.817 [11]: apurou-se que as receitas omitidas correspondiam a 65% das receitas declaradas, decidindo pela obrigatoriedade do Lucro Arbitrado;

iv) Ac. nº 1402-00.456 [12]: manteve-se o arbitramento do lucro pois a receita declarada correspondia a aproximadamente 10% da receita omitida, apurada a partir de depósitos bancários;

v) Ac. nº 1202-001.065 [13]: cancelou-se o lançamento com base no Lucro Real pois a receita omitida era 32% superior à receita declarada, evidenciado a imprestabilidade da escrituração;

vi) Ac. nº 1201-000.621 [14]: a receita omitida correspondia a 76% da receita declarada, justificando o arbitramento;

Recentemente, a CSRF, por meio do Ac. nº 9101-006.018[15], ao analisar a aplicação da presunção do artigo 42 da Lei nº 9.430/1996, aduziu que “a jurisprudência, em casos de absurda discrepância entre o que foi omitido e o que foi declarado/escriturado, vem flexibilizando a manutenção do regime pelo Lucro Real, considerando aplicável o arbitramento“.

Mais do que tentar estabelecer uma média “numérica”, um exame qualitativo dos casos permite inferir que na maioria deles, ao se apurar essa diferença quantitativa entre receita omitida e declarada, analisa-se se a adição da primeira à segunda não geraria margens de lucro irreais para as atividades das pessoas jurídicas fiscalizadas, até mesmo porque não se pode perder de vista que o tributo não é instrumento de sanção ao contribuinte que não mantém a regularidade de suas obrigações acessórias.

Considerando essa preocupação, o problema se torna como se chegar a uma margem de lucro parâmetro, para fins de cotejo com o caso concreto?

Há casos em que as margens são evidentemente irreais, onde não há o problema da vagueza em relação à imprestabilidade, pela “absurda discrepância”. Mas há situações em que essas margens entram em um campo de indeterminação prática que parece apontar para dois caminhos possíveis: 1) a utilização de provas apresentadas pela própria fiscalização ou pelo contribuinte, a respeito da margem de lucro média do setor; ou 2) adotar como parâmetro as margens presumidas pela própria legislação do imposto de renda, na apuração do Lucro Arbitrado, com fulcro no artigo 605 do RIR/2018.

Como se viu, a hipótese de arbitramento do lucro sob análise é, inescapavelmente, vaga. Não há como se determinar aprioristicamente o que seria uma escrituração imprestável, nos termos do artigo 605, III do RIR/2018. Isso não quer dizer que não se possa pensar em parâmetros para análise dos casos, ou mesmo de procedimentos no âmbito das fiscalizações, voltadas a contornar essa dificuldade de definição sem que se caia em um casuísmo jurisprudencial. 

A observância dos parâmetros propostos acima nos parece trazer uma maior operacionalidade prática à apuração dos tributos em hipóteses de omissão de receitas, com um ganho de segurança para os contribuintes e para a fiscalização.

*Retomando os trabalhos da Direto do Carf, todos os colunistas desejam um feliz 2023 aos nossos leitores, esperando que sigam acompanhando e consultando nossas considerações sobre a jurisprudência do Carf nesse ano vindouro.


[1] ÁVILA, Humberto. Teoria da Indeterminação no Direito. São Paulo: Malheiros, 2022, p.37-38.

[2] O tema foi explorado por mim e pelo colunista Fernando Brasil de Oliveira Pinto no artigo “O Lucro Arbitrado nas Hipóteses de Omissão de Receitas” (In: Marcelo Magalhães Peixoto; Alexandre Evaristo Pinto. (Org.). 100 anos do Imposto sobre a Renda no Brasil. 1ed.São Paulo: MP Editora, 2022, v. 1, p. 321-338). As reflexões trazidas aqui partem das considerações lá propostas para avançar na sistematização do tema.

[3] Ac. nº 1402-000.728, Rel. Moisés Giacomelli, j. 29/09/2011.

[4] Ac. nº 1201-004.787, rel. Efigênio de Freitas, j. 14/4/2021. No mesmo sentido, Ac. nº 1302-004.548, rel. Paulo Henrique Silva Figueiredo, j. 18/6/2020.

[5] Art. 608. O lucro arbitrado, quando não conhecida a receita bruta, será determinado por meio de procedimento de ofício, com a utilização de uma das seguintes alternativas de cálculo (…)

[6] Nesse caso, pode haver a escrituração de parte dos gastos relacionados à receita omitida.

[7] Nesse sentido, Ac. 1402-001.606, rel. Fernando Brasil de O. Pinto, j. 12/3/2014. No mesmo sentido, acórdãos nº 1302-002.915 e 9101-003.644.

[8] “A tributação do lucro na sistemática do lucro arbitrado não é invalidada pela apresentação, posterior ao lançamento, de livros e documentos imprescindíveis para a apuração do crédito tributário que, após regular intimação, deixaram de ser exibidos durante o procedimento fiscal”.

[9] Redator Guilherme Adolfo dos Santos Mendes, j. 26/1/2017.

[10] Rel. Gerson Guerra, j. 03/11/2017.

[11] Rel. Wilson Fernandes Guimarães, j. 24/3/2015.

[12] Rel. Moisés Giacomelli, j. 25/2/2011.

[13] Rel. Orlando José Gonçalves Bueno, j. 7/11/2013.

[14] Rel. Guilherme Adolfo dos Santos Mendes, j. 24/11/2011.

[15] Rel. Luis Henrique Marotti Toselli, j. 28/3/2022.

Carlos Augusto Daniel Neto é sócio do escritório Daniel & Diniz Advocacia Tributária, em estágio pós-doutoral em Direito Tributário na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), doutor em Direito Tributário pela Universidade de São Paulo (USP), mestre em Direito Tributário pela PUC-SP, ex-conselheiro titular da 1ª e 3ª Seções do Carf, pesquisador do NEF/FGV e do Nupem/IBDT e professor permanente do mestrado profissional do Cedes e de diversos cursos de pós-graduação.

Revista Consultor Jurídico, 11 de janeiro de 2023, 9h28

ISS sobre honorários de sucumbência e a exigência de regime especial

Existem algumas situações em matéria tributária que são completamente absurdas, além de trágicas, acarretando problemas enormes para os contribuintes. Uma delas diz respeito à cobrança de ISS sobre honorários de sucumbência, previstos no artigo 85 do Código de Processo Civil, ao estabelecer que “a sentença condenará o vencido a pagar honorários ao advogado do vencedor”.

O que alguns municípios vêm buscando é que as sociedades de advocacia 1) emitam Nota Fiscal referente aos honorários de sucumbência, e 2) paguem ISS sobre essa receita. A situação é esdrúxula e, segundo observo, 3) esconde segundas intençõesfiscalistas. 

Comecemos pela emissão da Nota Fiscal de Serviços, observando que a lei processual tem por base a regra do “quem perde, paga os honorários ao advogado do vencedor”. Logo, a Nota Fiscal deve ser emitida para quem? No caso, os honorários não serão devidos por quem contratou o advogado, mas por quem perdeu a demanda, observando-se ainda que os advogados que receberão os honorários jamais prestaram serviços a quem os está pagando. Não se trata de honorários contratuais, mas de sucumbência, considerando ainda que estes “constituem direito do advogado e têm natureza alimentar” (CPC, artigo 85, §14), sendo permitido ao advogado “requerer que o pagamento dos honorários que lhe caibam seja efetuado em favor da sociedade de advogados que integra na qualidade de sócio” (CPC, artigo 85, §15).

Logo, se tanto e quando muito, a emissão da Nota Fiscal (que não pode  ser “de serviços”) serviria para acobertar o gasto realizado por quem perdeu a demanda, e não para quem contratou os serviços do advogado. A despeito de ser absurdo obrigar alguém a emitir um documento fiscal para quem não o contratou, essa regra poderia ter alguma razoabilidade exclusivamente para efeito dos tributos federais — afinal, tais valores comporão a receita bruta daquela sociedade de advogados para fins de apuração de Pis, Cofins, Imposto de Renda da Pessoa Jurídica e Contribuição Social dobre o Lucro Líquido. Nesse sentido, a Nota Fiscal jamais poderia ser “de serviços”, já que não existe serviço advocatício prestado à parte vencida. Como os Municípios não admitem Nota Fiscal que não seja “de serviços”, essa não pode ser emitida, sendo suficiente um recibo e o lançamento do montante recebido como receita tributável na contabilidade da sociedade que receber os honorários de sucumbência, para fins federais. É verdade que algumas sociedades emitem Notas Fiscais de Serviços sobre honorários de sucumbência, porém o fazem por mera liberalidade, pois, a rigor, nenhum serviço foi prestado a quem as está remunerando — afinal, adotar esse procedimento facilita a apuração contábil dos tributos federais, além de evitar problemas com o fisco municipal.

Também não faz sentido algum usar tal receita para a cobrança de Imposto sobre Serviços (ISS), que, como o nome indica, incide sobre os serviçosprestados pelas sociedades de advogados. Afinal, qual serviço foi prestado pelos advogados ao vencido naquela demanda, o qual desembolsará os honorários de sucumbência que vierem a ser estipulados pelo Poder Judiciário? Absolutamente nenhum. Observa-se que sequer deverá haver a emissão de Nota Fiscal de Serviços, pois, como visto, não houve prestação de serviços a quem paga. Logo, usar tal receita para fins de tributação municipal é algo que não faz sentido.

Minha suspeita é que esse procedimento busca afastar as sociedades de advogados do sistema de tributação per capita previsto na Lei Complementar 406/68, artigo 9º, §§1º e 3º. Não restam dúvidas que as sociedades de advogados possuem direito a serem tributadas per capita, em especial após sedimentado o entendimento do STF no Tema 918 de Repercussão Geral, relatado pelo Ministro Edson Fachin, assim lavrado: “Inconstitucionalidade de lei municipal que estabelece impeditivos à submissão de sociedades profissionais de advogados ao regime de tributação fixa ou per capita em bases anuais na forma estabelecida pelo Decreto-Lei n. 406/1968 (recepcionado pela Constituição da República de 1988 com status de lei complementar nacional)”.

Ocorre que diversos Municípios transformaram o que é um direito em um regime especial, como fez o Município de São Paulo através da Lei nº 17.719/21 (artigo 13, que alterou o artigo 15 da Lei municipal nº 13.701, de 2003). O erro está em que o direito de as sociedades profissionais serem tributadas “per capita” é ex-lege, não havendo espaço jurídico para o Município negar tal incidência — não existe âmbito de discricionariedade; existe âmbito fiscalizatório, o que é completamente diferente. Logo, é flagrante a abusividade de exigir que as sociedades de advogados requeiram anualmente regime especial, pois transforma o que é um direito, em uma faculdade, que pode ser negada pelo poder concedente, que estabelece critérios e condicionantes para o exercício desse direito, pois, sendo regime especial, o que é um direito dos contribuintes se transforma em algo discricionário, a critério da municipalidade.

São situações como essas que maculam o relacionamento Fisco-Contribuinte, pois criam  empecilhos que acabam por dificultar o pleno exercício de direitos pelos contribuintes. Nada impede que o Município fiscalize e imponha penalidades em caso de infrações. Mas é uma arbitrariedade fazer com que o contribuinte periodicamente necessite requerer um direito que lhe é plenamente assegurado, e, ainda mais, sob condições.

Enfim, minha suspeita é que a exigência de emissão de Nota Fiscal de Serviços para quem jamais contratou os serviços jurídicos, visa desenquadrar as sociedades de advogados do regime especial que os Municípios indevidamente exigem para manter a tributação per capita, que, repete-se, é ex-lege, não estando sujeita a nenhuma condicionalidade.

Fernando Facury Scaff é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP), advogado e sócio do escritório Silveira, Athias, Soriano de Mello, Bentes, Lobato & Scaff Advogados.

Revista Consultor Jurídico, 9 de janeiro de 2023, 8h00

A questão tributária em recuperação judicial: começa a ser trilhado o fim do impasse?

A reforma da Lei 11.101/2005 buscou em certa medida aclarar pontos específicos e superar divergências que na prática geravam o que parte da doutrina denomina “jurisprudência lotérica”, em que as partes passam a contar com um fator imponderável: dependendo de quem for o juiz da causa, seu destino poderá ser completamente diferente.

No tocante à questão tributária, embora mantida a redação do artigo 57 da Lei 11.101/2005, que prevê a comprovação da regularidade fiscal como requisito para a concessão da recuperação judicial e cuja aplicação era mitigada pelos tribunais pátrios, a Lei 14.112/2020 trouxe importantes alterações com relação ao prosseguimento das execuções fiscais (artigo 6º, §7º-B da Lei 11.101/2005), melhores condições de parcelamento e transação envolvendo débitos tributários (artigos 10-A, 10-B e 10-C da Lei 10.522/2002) e novas hipóteses de convolação em falência (artigo 73, V e VI da lei 11.101/2005).

Diante da mudança legislativa, que colocou à disposição das recuperandas novos incentivos ao equacionamento dos débitos tributários, parte da jurisprudência e da doutrina passou a entender que a orientação anterior no sentido de que o juízo recuperacional poderia dispensar a exigência da certidão negativa para a concessão da recuperação judicial estaria superada.

Neste sentido, o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) passou a exigir prova da regularidade fiscal das recuperandas para a concessão da recuperação judicial, em especial nos casos em que a aprovação do plano de recuperação judicial ocorreu após a vigência da reforma da Lei 11.101/2005. Com a alteração do entendimento outrora sedimentado inclusive para os processos em andamento, concluiu-se que não há direito adquirido a regime jurídico decorrente de construção jurisprudencial, concedendo-se prazos que variam de 30 a 180 dias para a comprovação da regularidade fiscal, inclusive ex officio.

No entanto, a questão não se uniformizou na medida em que o próprio STJ, mesmo após a vigência da reforma, tem mantido o posicionamento até então vigente em decisões monocráticas, no sentido de manter a dispensa da providência do artigo 57 da Lei 11.101/2005, considerada incompatível com o princípio da preservação da empresa.

Em síntese, a partir daí, passamos a ter o TJ-SP, na maioria dos casos, exigindo prova da regularidade fiscal como requisito legal para a homologação do plano de recuperação judicial ou eventuais aditivos, e o STJ mantendo a mesma linha do entendimento anterior à reforma legislativa nas inúmeras decisões monocráticas recentemente proferidas sobre o tema.

Diante desse quadro, o TJ-SP, cumprindo seu papel fundamental de uniformização da jurisprudência (artigo 926 do CPC), aprovou em 24/11/2022 os seguintes enunciados:

Enunciado XIX: Após a vigência da Lei 14.112/2020, constitui requisito para a homologação do plano de recuperação judicial, ou de eventual aditivo, a prévia apresentação das certidões negativas de débitos tributários, facultada a concessão de prazo para cumprimento da exigência.

Enunciado XX: A exigência de apresentação das certidões negativas de débitos tributários é passível de exame de ofício, independentemente da parte recorrente.

O Enunciado XIX tem fundamental importância para a análise da questão e deve ser interpretado à luz da jurisprudência atual do TJ-SP. Com efeito, a partir da sua redação interpreta-se que a comprovação da regularidade fiscal é requisito para a homologação de planos de recuperação judiciais e eventuais aditivos, sendo que o TJ-SP estabeleceu como critério temporal a data da deliberação assemblear:

“Direito intertemporal. Não há direito adquirido a regime jurídico. Precedentes do Supremo Tribunal Federal. Requisitos para concessão de recuperação judicial que devem ser apurados tal como previstos, no ordenamento jurídico, à época da deliberação da assembleia geral de credores sobre o plano de recuperação judicial. Tempus regit actum. Art. 5º, XXXVI, da Constituição Federal; art. 6º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro. Assim, não se pode invocar orientação jurisprudencial anterior à entrada em vigor da Lei 14.112/2020 caso a deliberação assemblear seja posterior, como ocorre na hipótese” (TJ-SP; Agravo de Instrumento 2067179-82.2021.8.26.0000; relator: des. Cesar Ciampolini; 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Foro Central Cível – 2ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais; data do julgamento: 20/10/2021; data de registro: 27/10/2021).

Além disso, o Enunciado XIX, à luz do entendimento acima colacionado, abrange expressamente as hipóteses de aditamento a planos de recuperação judicial, sendo este ponto essencial para a solução de possíveis controvérsias, pois em razão da pandemia de Covid-19 diversas empresas que já tinham seus planos homologados em data anterior à vigência da Lei 14.112/2020 (23/01/2021) e apresentaram novos aditivos passaram a sustentar a inaplicabilidade da nova lei para condicionar a nova homologação à prova da regularidade fiscal.

Desse modo, de acordo com a análise aqui exposta, todas as deliberações assembleares sobre planos de recuperação judicial ou eventuais aditivos ocorridas após a vigência da Lei 14.112/2020 seguem o princípio geral do tempus regit actum, devendo a sua homologação ser precedida da apresentação das certidões negativas de débitos tributários prevista no art. 57 da Lei 11.101/2005.

Já o Enunciado XX vai em linha com o entendimento já sedimentado pelo TJSP, no sentido de que compete ao Judiciário o exame de ofício a questão da legalidade do processo recuperacional e falimentar na medida em que se trata de questão de ordem pública e em conformidade com o artigo 933 do CPC devem ser conhecidas de ofício. Aliás, não é por outra razão que o enunciado deixa expresso que a essas situações aplica-se o efeito translativo dos recursos, o que significa dizer que a questão de deve ser conhecida pelo órgão julgador mesmo que o recurso tenha objeto distinto.

Evidente que a edição dos enunciados acima não implica o fim dos debates, por dois motivos.

O primeiro, é que o entendimento do TJ-SP, apesar de ter de ser respeitado por todos os órgãos julgadores do estado de São Paulo, salvo melhor juízo, não vincula, por óbvio, o STJ, o que significa dizer que a questão da comprovação da regularidade fiscal como requisito para a concessão da recuperação judicial e se pode a questão ser conhecida de ofício pelo órgão julgador fatalmente continuará sendo objeto de inúmeros recursos especiais até pronunciamento específico quanto à divergência.

O segundo, é que alguns pontos importantes ainda não foram objeto de uniformização e, portanto, não são tratados pelos enunciados. Destacamos, a nosso ver, os principais:

a) A despeito da mudança jurisprudencial no tocante à aplicação do art. 57 da Lei 11.101/2005, não há, ainda, definição quanto às consequências de eventual não apresentação das certidões negativas, se sobrestamento ou extinção do processo, revogação do stay period ou convolação da recuperação judicial em falência.

b) As novas regras relacionadas a parcelamento e transação tributários são direcionadas à Fazenda Nacional, com possibilidade de edição de leis semelhantes pelos demais entes da federação. Nesse sentido, a possibilidade de equacionamento das dívidas tributárias de empresas em recuperação judicial em âmbito estadual e municipal não é uniforme e, nesse cenário, o Judiciário deve se deparar também com a questão da exigibilidade ou dispensa das certidões negativas das demais Fazendas Públicas, consideradas as peculiaridades de cada caso.

c) É possível que existam débitos tributários em litígio sem garantia do juízo, o que, salvo melhor juízo, impossibilitaria a obtenção de certidão positiva com efeito negativo. Ao se deparar com situações de impossibilidade de obtenção das certidões negativas ou positivas com efeito negativo, deverá o Judiciário avaliar, de acordo com as circunstâncias concretas, qual a melhor solução a ser adotada.

Todos esses últimos pontos são essenciais, pois além do inequívoco objetivo do legislador de preservar a atividade empresarial e seus benefícios econômicos e sociais, os tribunais superiores já consolidaram o entendimento que a Fazenda Pública não pode criar óbices ao livre exercício da atividade econômica (artigo 170, CF) como meio coercitivo para cobrança de tributos (Súmulas 70, 3.323 e 547/STF e 127/STJ).

Apesar de todos os problemas que ainda serão enfrentados, não há dúvida de que toda solução começa com o primeiro passo e este foi dado pelo TJ-SP, provocando desta feita que o STJ também se pronuncie em breve sob a forma de enunciado ou por meio de julgamentos colegiados.

Oreste Nestor de Souza Laspro é advogado, administrador judicial. Professor de Direito Processual da Faculdade de Direito da USP (Universidade de São Paulo).

Revista Consultor Jurídico, 9 de janeiro de 2023, 8h00

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