No processo administrativo federal, a anulação, revogação e convalidação de atos administrativos encontram-se disciplinadas nos artigos 53 a 55 da Lei nº 9.784/1999,[1] dos quais se extrai a compreensão de que a anulação de atos administrativos ilegais é um dever da Administração Pública e não uma faculdade, inserindo-se, portanto, no contexto da obrigatoriedade e da vinculação à lei e não da discricionariedade.
No Processo Administrativo Fiscal (PAF), regido precipuamente, na esfera federal, pelo Decreto nº 70.235/1972, as nulidades encontram-se previstas no artigo 59 desse ato normativo,[2] em que se consideram nulas a lavratura de atos e termos por pessoa incompetente e a prolação de despacho e decisões por autoridade incompetente, bem como as decisões exaradas com preterição do direito de defesa.
Já o artigo 60 do mesmo decreto cuida das irregularidades, incorreções e omissões, diferentes das nulidades, que são passíveis de validação, por meio de saneamento, nas hipóteses de prejuízo para o sujeito passivo, salvo se este lhes houver dado causa, ou quando não influírem na solução do litígio.
Frise-se que o artigo 59 do Decreto nº 70.235/1972 versa sobre hipóteses normativas de nulidade absoluta (atos nulos), em que inexiste a possibilidade de convalidação do ato (medida essa passível de aplicação somente em relação à nulidade relativa, ou seja, aos atos anuláveis, na mesma linha do art. 60 acima referenciado),[3] situação em que a preservação da legalidade administrativa se impõe, com a retirada do ato do mundo jurídico, independentemente de provocação dos interessados, dado o poder de autotutela de que detém a Administração Pública.[4]
Nos termos da súmula do Supremo Tribunal Federal (STF) nº 346, “a Administração Pública pode declarar a nulidade dos seus próprios atos”; dessa forma, considerando-se que os fatos que servem de suporte a uma decisão administrativa integram a validade do ato, a ocorrência de motivos de fato falsos, ou seja, a utilização do ato administrativo como suporte à satisfação de finalidades alheias àquela prevista em lei (interesse público), vicia o ato de invalidade em razão do “desvio de poder”, ou do “mau uso da competência”,[5] situação em que a declaração de nulidade se impõe.
Não se pode ignorar que, em sua atuação, a Administração Pública, diversamente dos particulares, deve buscar sua legitimidade na realização de interesses públicos, sendo os meios jurídicos a ela disponibilizados veículos para o atingimento dos seus fins, inclusive, obviamente, nos atos vinculados de administração contenciosa, e nunca para a satisfação de interesses particularizados.
Quando um ato administrativo é produzido em desconformidade com a ordem jurídica, ele se evidencia inválido (nulo, anulável, inexistente, defeituoso juridicamente etc.), podendo ser assim qualificado pela própria Administração, de ofício ou por meio de provocação ou denúncia de terceiros.
Merece destaque, neste ponto, que, inobstante o rigor conceitual adotado pelos doutrinadores administrativistas em relação à diferenciação das hipóteses de invalidade dos atos administrativos, verifica-se, nas normas tributárias, a adoção dos termos “ato administrativo nulo” e “ato administrativo anulável” de forma não muito tecnicamente diferenciada, sendo ambos tratados, em sua materialidade, como “atos inválidos”, termo esse privilegiado por Celso Antônio Bandeira de Mello ao cuidar dos atos administrativos contrários ao direito.[6]
Exemplificativamente, tem-se que, no artigo 54, § 1º, da Lei nº 9.784/1999, em que se estabelece a decadência do direito da Administração anular atos administrativos, não se faz distinção entre atos nulos e anuláveis, sendo o prazo de cinco anos ali previsto (salvo comprovada má-fé) aplicável a ambas as situações.[7]
Pelo dever de obediência à legalidade, havendo ofensa ao direito, a Administração deve eliminar os atos viciados e seus efeitos, ab initio, ex tunc, retroativamente, sendo que, tratando-se de vício grave (conduta criminosa ofensiva a direitos e garantias fundamentais, como à igualdade, à legalidade e à ampla defesa), jamais podem prescrever (Teoria da imprescritibilidade dos efeitos do ato nulo), por se configurarem “atos inexistentes” ou “fora do possível jurídico e radicalmente vedados pelo Direito”.[8]
Referida teoria encontra-se em consonância com o artigo 169 do Código Civil brasileiro (Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002), que estipula que o negócio jurídico nulo não é suscetível de confirmação, nem convalesce pelo decurso de tempo.
Diante de atos inválidos, inexiste discricionariedade administrativa, pois “a Administração não pode conviver com relações jurídicas formadas ilicitamente”, sendo seu dever “recompor a legalidade ferida”, fulminando o ato viciado e pronunciando sua invalidação, salvo nos casos em que, em prol dos princípios da segurança jurídica e da boa-fé, for possível a sua convalidação, mas somente em relação a atos anuláveis,[9] que podem ser refeitos sem vício, nunca a atos nulos.[10]
A impossibilidade de se convalidar um ato nulo deriva da existência de vício no motivo de sua expedição ou em sua finalidade, isto porque se trata de situação de fato, cuja alteração com efeito retroativo se inviabiliza, “não se [podendo] corrigir um resultado que estava na intenção do agente que praticou o ato”.[11]
No processo administrativo, exige-se que a Administração Pública, além do dever de observar os fins estabelecidos em lei, aja de acordo com as normas procedimentais estabelecidas para tanto, de forma a evidenciar o itinerário utilizado para se chegar ao ato decisório prolatado.
O julgador administrativo, precipuamente aquele que atua na segunda instância, tem de se ater ao princípio da imparcialidade, devendo agir, no cumprimento de seus deveres, de acordo com as formalidades estabelecidas pelo legislador, sob pena de se violar a própria finalidade do ato decisório ou algum objetivo desejado pela lei.[12]
De acordo com o artigo 37 da Constituição, a Administração Pública deve observar, dentre outros, o princípio da impessoalidade, segundo o qual deve-se manter a neutralidade de sua atividade, esta orientada, repita-se, no sentido da realização do interesse público. É a Administração a autora institucional dos atos que expede, tornando-se relevante a individualização ou personificação do agente que desempenha função pública somente quando este atua, “não como expressão da vontade do Estado, mas como expressão de veleidade, capricho ou arbitrariedade pessoal”.[13]
A “imoralidade administrativa” é “fundamento de nulidade do ato viciado”, pois a moralidade de que trata o artigo 37 da Constituição Federal (moralidade jurídica) “não é meramente subjetiva, porque não é puramente formal, porque tem conteúdo jurídico, a partir de regras e princípios da Administração”.” A lei pode ser cumprida moralmente ou imoralmente. Quando sua execução é feita, por exemplo, com o intuito de prejudicar ou de favorecer alguém deliberadamente, por certo que se está produzindo um ato formalmente legal, mas materialmente ofensivo à moralidade administrativa.”[14]
Nesse sentido, desde muito, a Administração já se encontra obrigada pelo ordenamento jurídico a declarar a nulidade de seus atos quando eivados de ilegalidade ou prolatados em desfavor do interesse público, vindo o artigo 80 do Anexo II do Regimento Interno do Carf (Ricarf), em prol dos direitos fundamentais à ampla defesa e ao contraditório, a disciplinar, pormenorizadamente, o rito a ser adotado no âmbito do Processo Administrativo Fiscal (PAF) para se declarar a nulidade de uma decisão do colegiado, evitando-se dessa forma a prolação de uma lacônica declaração de nulidade do ato decisório, passível de contestação por parte dos interessados somente pela via do Poder Judiciário.
Nesse sentido, em conformidade com o referido artigo 80 do Ricarf, havendo a prolação de um acórdão de segunda instância com a participação no colegiado, devidamente comprovada, de conselheiro impedido (artigo 42 do Anexo II do Ricarf) ou com inobservância inequívoca das normas tributárias válidas e vigentes (artigo 62 do Anexo II do Ricarf), o colegiado deverá declarar a nulidade de sua decisão, observando-se as regras contidas nos artigos 53 e 54 da Lei nº 9.784/1999, dentre elas a nulidade imprescritível do ato administrativo prolatado com má-fé.
Concluindo, ressalta-se que admitir a preservação de uma decisão administrativa colegiada exarada em desconformidade com as regras processuais garantidoras da imparcialidade, ampla defesa e contraditório fulmina o processo administrativo fiscal em sua substancialidade, ruindo os objetivos imanentes às normas administrativas processuais, dentre elas a “proteção dos direitos dos administrados e [o] melhor cumprimento dos fins da Administração” (artigo 1º, caput, da Lei nº 9.784/1999) e a garantia da efetividade dos “princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência” (artigo 37 da Constituição Federal).
[1] Art. 53. A Administração deve anular seus próprios atos, quando eivados de vício de legalidade, e pode revogá-los por motivo de conveniência ou oportunidade, respeitados os direitos adquiridos.
Art. 54. O direito da Administração de anular os atos administrativos de que decorram efeitos favoráveis para os destinatários decai em cinco anos, contados da data em que foram praticados, salvo comprovada má-fé.
§ 1º No caso de efeitos patrimoniais contínuos, o prazo de decadência contar-se-á da percepção do primeiro pagamento.
§ 2º Considera-se exercício do direito de anular qualquer medida de autoridade administrativa que importe impugnação à validade do ato.
Art. 55. Em decisão na qual se evidencie não acarretarem lesão ao interesse público nem prejuízo a terceiros, os atos que apresentarem defeitos sanáveis poderão ser convalidados pela própria Administração. (destaques nossos)
[2] Art. 59. São nulos:
I – os atos e termos lavrados por pessoa incompetente;
II – os despachos e decisões proferidos por autoridade incompetente ou com preterição do direito de defesa.
§ 1º A nulidade de qualquer ato só prejudica os posteriores que dele diretamente dependam ou sejam conseqüência.
§ 2º Na declaração de nulidade, a autoridade dirá os atos alcançados, e determinará as providências necessárias ao prosseguimento ou solução do processo.
§ 3º Quando puder decidir do mérito a favor do sujeito passivo a quem aproveitaria a declaração de nulidade, a autoridade julgadora não a pronunciará nem mandará repetir o ato ou suprir-lhe a falta.
Art. 60. As irregularidades, incorreções e omissões diferentes das referidas no artigo anterior não importarão em nulidade e serão sanadas quando resultarem em prejuízo para o sujeito passivo, salvo se este lhes houver dado causa, ou quando não influírem na solução do litígio.
Art. 61. A nulidade será declarada pela autoridade competente para praticar o ato ou julgar a sua legitimidade.
[3] Hely Lopes Meirelles não admite a ocorrência de atos anuláveis na esfera administrativa, mas apenas de atos nulos (NEDER, Marcos Vinicius; LÓPEZ, Maria Teresa Martínez. Processo administrativo fiscal federal comentado: de acordo com a Lei nº 11.941, de 2009, e o Regimento Interno do CARF. 3. ed. São Paulo: Dialética, 2010, p. 556).
[4] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 35. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2022, p. 250.
[5] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 15. ed. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 363 a 372.
[6] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 15. ed. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 420 a 426.
[7] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 15. ed. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 439.
[8] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 15. ed. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 424 a 427.
[9] Exemplos de atos anuláveis: atos editados com vício de vontade ou com defeito de formalidade.
[10] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 15. ed. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 431 a 433.
[11] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 35. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2022, p. 252.
[12] NEDER, Marcos Vinicius; LÓPEZ, Maria Teresa Martínez. Processo administrativo fiscal federal comentado: de acordo com a Lei nº 11.941, de 2009, e o Regimento Interno do CARF. 3. ed. São Paulo: Dialética, 2010, p. 558 a 561.
[13] SILVA, José Afonso de. Comentário contextual da Constituição. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 335 a 336.
[14] SILVA, José Afonso de. Comentário contextual da Constituição. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 336.
Hélcio Lafetá Reis é presidente da 1ª Turma Ordinária da 2ª Câmara da 3ª Seção do Carf; auditor fiscal da Receita Federal desde 4 de julho de 1995; mestre em Direito Público pela PUC-MG (2012) e graduado em Direito pela UFMG (2005); pós-graduado em Gestão de Direito Tributário pela FGV (2006) e em Filosofia e Teoria do Direito pela PUC-MG (2017).
Revista Consultor Jurídico, 7 de outubro de 2022, 6h01