Inconstitucionalidade da incidência de IR sobre pensão: modulação de efeitos

Por maioria dos votos, o Plenário do Supremo Tribunal Federal finalizou em 3 de junho último o julgamento da ADI 5.422, afastando a incidência do imposto de renda sobre valores recebidos à título de pensão alimentícia.

A ação foi proposta pelo Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFam), que questionou os dispositivos da Lei n° 7.713/88, e do decreto n° 3.000/99, haja vista o caráter não patrimonial dos valores alimentícios, sendo, portanto, incompatível com a ordem constitucional. 

Em consonância à tese de autoria do doutor Rolf Madaleno, diretor nacional do Instituto IBDFam, prevaleceu-se o entendimento do relator, ministro Dias Toffoli, acompanhado pelos ministros Alexandre de Moraes, Ricardo Lewandowski, Luiz Fux, Carmen Lúcia, André Mendonça, Rosa Weber e Luís Roberto Barroso. 

Em análise do caso, Dias Toffoli ressaltou que os alimentos, ou a pensão alimentícia não constituem renda, tampouco proventos de qualquer natureza do credor dos alimentos, apenas acréscimos patrimoniais recebidos pelo alimentante, que serão utilizados em prol do alimentado. 

Já em posicionamento contrário, o ministro Gilmar Mendes, acompanhado pelos ministros Nunes Marques e Edson Fachin não consideram a incidência de dupla tributação, sob o argumento de que quem paga os alimentos poderá deduzir os valores da base de cálculo do referido Imposto. 

Evidente que o posicionamento dos julgadores é de enorme relevância e gera grande impacto à União e aos contribuintes, que, após o trânsito em julgado da decisão sem oposição, não mais serão compelidos a recolher o tributo sobre as verbas de natureza alimentícia. Tal entendimento, por si só, já caracteriza um grande avanço na seara fiscal e seus reflexos na legislação tributária.  

Com o encerramento da discussão iniciada no ano de 2015, um dos cruciais pontos aos juristas é a questão da modulação de efeitos da referida decisão, que por sua vez, ainda não foi objeto de discussão pelo plenário do Supremo. 

Repisa-se que a referida decisão ainda não transitou em julgado, todavia, considerando sua repercussão e a resultância de seus efeitos para a União, há que se pontuar a alta probabilidade de apresentação de embargos de declaração pelo órgão, requerendo a modulação dos efeitos da decisão para que sua eficácia seja limitada, o que poderá restringir a possibilidade de recuperação do montante indevidamente recolhido nos últimos 05 (cinco) anos. 

Deve-se considerar, portanto, que, baseando-se inicialmente no voto divergente do ministro Gilmar Mendes ao ressaltar que com a não incidência do imposto sobre as verbas de natureza alimentar haveria grande impacto aos cofres públicos, e ainda, segundo dados informados pela Advocacia-Geral da União (AGU) e reforçados pelo ministro, que estimam a redução da arrecadação anual em R$ 1,05 bilhão e R$ 6,5 bilhões em cinco anos, o Supremo Tribunal Federal fará o necessário para amenizar ao máximo os prejuízos ao erário, considerando o deslinde do caso.

Não se pode prever o posicionamento do plenário se a questão de fato for apresentada pela União em sede de embargos de declaração, afinal, quando uma lei é declarada inconstitucional, seus efeitos (ex tunc) retroagem desde o início. 

Contudo, dada a relevância do caso e a implicação de ausência de arrecadação de receitas ao poder público, não se pode descartar a alta probabilidade de modulação de efeitos do julgado pelo STF, com o escopo de atenuar os resultados da decisão, o que inclusive é o entendimento de vários especialistas.

Por ora, resta ao contribuinte aguardar o trânsito em julgado da ADI 5.422 e a decisão quanto à modulação de efeitos, que ainda não foi apresentada pela União em juízo. Se o plenário determinar a aplicação dos efeitos desde o início da lei, o contribuinte poderá restituir ou compensar os valores anteriormente recolhidos indevidamente nos cinco anos anteriores. Caso contrário, os efeitos serão limitados à data da decisão, possibilitando ao contribuinte tão somente, usufruir dos benefícios desta a partir de sua publicação no Diário Oficial.

Paloma Lima é advogada.

Revista Consultor Jurídico, 20 de setembro de 2022, 17h02

Coisa julgada e rescisão com base em precedentes

A discussão jurisprudencial quanto à possibilidade de rescisão da coisa julgada com base em precedentes já é antiga e remonta à década de 60, quando o STF fixou a tese veiculada na sua Súmula 343 [1]. Nessa oportunidade, antes de qualquer discussão quanto a uma pretensa aproximação do sistema jurídico nacional de um modelo de stare decisis e, ainda, muito influenciado pela segunda fase histórica do Processo Civil [2], chamada de autonomista, técnica ou científica, o STF entendeu pela impossibilidade de rescindir coisa julgada com base, no que atualmente se denomina, precedentes. E isso porque, nesse momento histórico, ainda era vigente a concepção de que apenas a lei em sentido estrito era capaz de atuar como fonte material do Direito, enquadrando-se as decisões judiciais naquele campo das fontes secundárias, assim como os costumes, a doutrina, a equidade e os princípios gerais do direito.

Acontece que, com o passar dos anos e após uma Constituição e dois Códigos de Processo Civil, a discussão ganhou nova roupagem. Após a Emenda Constitucional 45/2004 o ordenamento jurídico trouxe novos institutos como o da repercussão geral, os recursos repetitivos e as súmulas vinculantes. O CPC/73, já reformado, também contemplava, em alguma medida, a força materialmente normativa de precedentes exarados por tribunais superiores, inclusive com a possibilidade de julgamentos monocráticos de recursos na hipótese de a decisão recorrida estar ou não em consonância com jurisprudência dominante de tais Tribunais, apenas para ficar nesse exemplo [3]. O CPC/2015 amplificou e qualificou o tratamento dessa modalidade de julgamento, estatuindo o regime de precedentes, em especial e em razão do disposto no seu artigo 926 [4].

Há, em suma, uma valorização da decisão judicial como fonte material do Direito, em especial aquelas decisões proferidas pelos nossos tribunais superiores, o que apresenta uma relevância no específico nicho Direito Tributário, já que um tratamento judicativo desigual para sujeitos passivos que se encontram em posições tributárias análogas pode implicar em sérios problemas micro e macroeconômicos.

Dentro desse contexto, em 2008, no âmbito do recurso extraordinário nº 328.812, o STF reconhece a capacidade criativa das suas decisões, ao afirmar que quando uma decisão desta corte (STF) fixa uma interpretação constitucional, entre outros aspectos está o Judiciário explicitando os conteúdos possíveis da ordem normativa infraconstitucional em face daquele parâmetro maior, que é a Constituição [5]. E, partindo dessa premissa, assim concluiu:

“De fato, negar a via da ação rescisória para fazer valer a interpretação constitucional do Supremo importa, a rigor, em admitir uma violação muito mais grave à ordem normativa. Sim, pois aqui a afronta se dirige a uma interpretação que pode ser tomada como a própria interpretação constitucional realizada” [6].

Nesse instante, o STF supera o teor da sua Súmula 343 e reconhece a possibilidade de se manejar instrumentos rescisórios — mais precisamente ação rescisória — para desfazer coisa julgada que se contraponha a um precedente daquela corte. O que, todavia, inexistia nessa oportunidade é uma manifestação do STF quanto à existência ou não de algum tipo de limite no emprego dessa ação rescisória pautada em precedente pretoriano. Essa discussão só surge em 2014, quando do julgamento do recurso extraordinário nº 590.809, oportunidade em que o STF promoveu um aperfeiçoamento da ratio decidendi do recurso extraordinário nº 328.812.

Antes, entretanto, de apresentar as conclusões do STF nesse novo caso analisado, convém aqui destacar a sua moldura fática. 

Pois bem. Esse novo caso era um recurso extraordinário com repercussão geral reconhecida, interposto contra decisão proferida pelo TRF da 4ª Região que julgou procedente ação rescisória ajuizada pela União contra decisão transitada em julgada em favor de uma determinada pessoa jurídica, na qualidade de contribuinte. Em suma, o contribuinte ajuizou ação para ver garantido o seu direito ao creditamento do IPI nas hipóteses de insumo adquirido sem incidência tributária ou sujeito à alíquota zero, ação esta que transitou em julgado com decisão de mérito favorável ao autor. Ressalte-se que, à época em que proferida a decisão, os precedentes existentes, inclusive do próprio STF, eram favoráveis à pretensão do contribuinte.

Acontece que, depois da empreitada exitosa do contribuinte, com decisão transitada em julgado em seu favor, o STF revisitou a mesma questão de fundo debatida naquela lide, oportunidade em que superou o entendimento até então firmado, afastando o direito ao crédito de IPI — julgamento proferido no recurso extraordinário nº 353.657/PR [7] [8].

Diante deste novo quadro jurisprudencial, a União promoveu a ação rescisória alhures mencionada por entender que a decisão transitada em julgado em favor do contribuinte ofenderia o entendimento firmado no recurso extraordinário nº 353.657/PR, ação essa julgada procedente e que ensejou, por parte do contribuinte, a interposição do citado recurso extraordinário nº 590.809.

Importante ainda destacar que o caso fomentador da superação da jurisprudência do STF (recurso extraordinário nº 353.657/PR), apesar de julgado em 2007, foi interposto antes do advento da Emenda Constitucional nº 45/2004, ou seja, foi decidido sem que tivesse sido afetado pelo instituto da repercussão geral. Em suma, este era o cenário fático do recurso extraordinário nº 590.809.

Nessa oportunidade, o STF trouxe dois limites importantes para a convocação de novo pronunciamento como fundamento para ações rescisórias.

O primeiro limite então estabelecido foi no sentido de que decisões pretorianas fruto de overruling não poderiam servir de fundamento para a rescisão de decisões submetidas à coisa julgada. Caso assim não fosse, a cada superação de um precedente do STF pela própria Corte Constitucional, uma nova ação rescisória poderia ser manejada, o que ensejaria não apenas a mitigação da coisa julgada, mas sua verdadeira extinção.

O segundo limite apresentado pelo STF foi no sentido de precisar que não é qualquer decisão pretoriana que tem a capacidade de fundamentar a ação rescisória, mas apenas aquelas dotadas de efeitos abrangentes, a repercutirem fora das balizas subjetivas do processo, nos exatos termos do voto do ministro Marco Aurélio, relator do recurso extraordinário nº 590.809, ou seja, aquelas decisões que apresentem um efeito transubjetivo [9].

Acontece que a discussão não parou por aí, pois o STF ainda encontra em seus escaninhos virtuais o debate que está sendo travado nos Temas 881 [10]e 885 [11], nos quais se aventa a existência de limite não tratado no julgamento do recurso extraordinário nº 590.809, demarcado pelo seguinte questionamento: em se tratando de relações jurídico-tributárias de trato sucessivo, um precedente vinculante do STF teria o condão de automaticamente estancar os efeitos da coisa julgada para o futuro ou, em contrapartida, esse efeito só seria alcançado mediante o emprego de instrumentos processuais rescisórios?

Até a produção deste texto, os pronunciamentos nos respectivos leading cases defendem um efeito rescisório automático a contar da publicação da ata de julgamento da ação em que foi veiculado o precedente. Defende-se, ainda, que o teor dessa nova decisão se submete aos princípios tributários da irretroatividade e da anterioridade, esse último de acordo com a particular espécie tributária tratada. Em suma, os votos até então proferidos equiparam a decisão pretoriana a uma nova lei tributária.

Tal posição nos parece equivocada, tanto sob uma perspectiva conceitual como também metodológica.

O equívoco conceitual decorre do fato de que essa posição trata precedente como se lei fosse, o que não demanda esforço hermenêutico para demonstrar a injuridicidade dessa aproximação, basta destacar que lei decorre de ato inaugural no sistema jurídico produtor de regras gerais no âmbito do poder legislativo [12].

O apontado erro conceitual implica outro, de caráter metodológico, pois ao tratar precedente como se lei fosse o submete a uma aplicação própria das leis, de caráter lógico-subsuntivo, ignorando, todavia, que no sistema de precedente o método adequado é o analógico-problemático, oriundo de uma ponderação sempre atenta à identidade-diversidade própria do analógico e que, como tal, só pode considerar-se em concreto [13].

O sobredito método, próprio de precedentes, só pode ser considerado em concreto para o objeto em análise (rescisão de coisa julgada nas relações de trato sucessivos), na hipótese de haver a propositura de instrumento processual rescisório, o que, no caso das demandas de trato sucessivo, se daria especificamente por intermédio de uma ação revisional, pois só assim é possível garantir que um terceiro, imparcial e equidistante ao estratégico interesse das partes na rescisão da coisa julgada, promova a substancialmente adequada comparação adrede citada, respeitando o devido processo legal, o contraditório maximizado, a ampla defesa substancial, o que também serve para minimizar a diferença de forças entre contribuintes e Estado [14]

Atualmente os sobreditos leading cases dos Temas 881 e 885 encontram-se sob vista do ministro Alexandre de Moraes, razão pela qual ainda há tempo de fomentar o debate aqui suscintamente trazido, de modo que a presente manifestação sirva de estímulo para se construir uma juridicamente adequada conclusão para essa história.


[1] Não cabe ação rescisória por ofensa a literal disposição de lei, quando a decisão rescindenda se tiver baseado em texto legal de interpretação controvertida nos tribunais. (data de aprovação: sessão plenária de 13/12/1963).

[2] Convém lembrar que nesse momento histórico o CPC vigente era o de 1934, fortemente pautado pela ideia de que o juiz era o aplicador em concreto da lei.

[3] A referência aqui é à lei federal: 

(1) 8.038/1990 que autorizou os Ministros do STF e do STJ a monocraticamente negar seguimento a recurso que contrariasse Súmula do próprio Tribunal;

(2) 9.139/1995 que alterou o artigo 557 do CPC/1973 permitindo que o relator de recurso a ele negasse seguimento se contrário a Súmula do respectivo Tribunal ou de Tribunal Superior;

(3) 9.756/1998 que promoveu alteração no § 3º do artigo 544 do CPC/1973 possibilitando que o relator de agravo de instrumento de despacho denegatório de seguimento de recurso especial julgasse diretamente o especial na hipótese em que o acórdão recorrido contrariasse súmula ou jurisprudência dominante do próprio STJ, bem como no artigo 557, o qual passou a admitir que julgador de segunda instância ou de tribunal superior, monocraticamente, negasse ou desse provimento a recurso cuja decisão atacada confrontasse Súmula ou jurisprudência dominante do STJ, do STF ou do respectivo Tribunal.

[4] Deixaremos de lado as críticas que temos a esse abrasileirado modelo de precedentes desenvolvidos no Brasil, o qual, em nossa opinião, apresenta problemas conceituais e metodológicos. Para os interessados, tecemos tais críticas aqui: RIBEIRO, Diego Diniz. Precedentes em matéria tributária e o novo CPC. In: Processo tributário analítico. CONRADO, Paulo César (org.). São Paulo: Noeses, 2016. Vol. III. pp. 111/140.

[5] Trecho do voto do relator, ministro Gilmar Mendes.

[6] Ibidem.

[7] IPI – INSUMO – ALÍQUOTA ZERO – AUSÊNCIA DE DIREITO AO CREDITAMENTO.

Conforme disposto no inciso II do § 3º do artigo 153 da Constituição Federal, observa-se o princípio da não-cumulatividade compensando-se o que for devido em cada operação com o montante cobrado nas anteriores, ante o que não se pode cogitar de direito a crédito quando o insumo entra na indústria considerada a alíquota zero.

[8] IPI – INSUMO – ALÍQUOTA ZERO – CREDITAMENTO – INEXISTÊNCIA DO DIREITO – EFICÁCIA.

Descabe, em face do texto constitucional regedor do Imposto sobre Produtos Industrializados e do sistema jurisdicional brasileiro, a modulação de efeitos do pronunciamento do Supremo, com isso sendo emprestada à Carta da República a maior eficácia possível, consagrando-se o princípio da segurança jurídica.

(STF; RE 353.657, relator(a): min. MARCO AURÉLIO, Tribunal Pleno, julgado em 25/06/2007, DJe-041 DIVULG 06-03-2008 PUBLIC 07-03-2008 EMENT VOL-02310-03 PP-00502 RTJ VOL-00205-02 PP-00807).

[9] Já tivemos a oportunidade de nos aprofundar na análise desses limites no seguinte texto: RIBEIRO, Diego Diniz. Coisa julgada, direito judicial e ação rescisória em matéria tributária. In: Processo Tributário Analítico. Paulo César Conrado (coordenador). São Paulo: Noeses, 2013. Vol. II. pp 83-110.

[10] Limites da coisa julgada em matéria tributária, notadamente diante de julgamento, em controle concentrado pelo Supremo Tribunal Federal, que declara a constitucionalidade de tributo anteriormente considerado inconstitucional, na via do controle incidental, por decisão transitada em julgado.

[11] Efeitos das decisões do Supremo Tribunal Federal em controle difuso de constitucionalidade sobre a coisa julgada formada nas relações tributárias de trato continuado.

[12] Por todos: DAVID, René. Os grandes sistemas do direito contemporâneo. 4ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

[13] NEVES, A. Castanheira. Instituto dos assentos. Coimbra: Coimbra Editora. 2014 (reimpressão). p. 74.

[14] Essa diferença de forças decorre da capacidade do Estado em fazer valer suas pretensões coercitivamente, fruto da autotutela dos seus interesses.

Diego Diniz Ribeiro é advogado tributarista e aduanerista, sócio do Daniel & Diniz Advocacia, ex-conselheiro titular do Carf na 3ª Seção de Julgamento, professor de Direito Tributário, Direito Aduaneiro, Processo Tributário e Processo Civil, doutorando em Processo Civil pela USP, mestre em Direito Tributário pela PUC-SP, pós-graduado em Direito Tributário pelo Ibet e pesquisador do NEF da FGV-SP e do grupo de estudos de Processo Tributário Analítico do Ibet.

Revista Consultor Jurídico, 18 de setembro de 2022, 8h00

ARTIGO DA SEMANA – APRIMORAMENTO DO PROCESSO ADMINISTRATIVO FISCAL ESTADUAL

A decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo sobre o voto de qualidade no Tribunal de Impostos e Taxas (TIT) que apresentamos como destaque desta semana nos leva a refletir sobre a necessidade de aprimoramentos no Processo Administrativo Fiscal do Estado do Rio de Janeiro. 

Sem prejuízo da conclusão dos trabalhos da comissão instalada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) e pelo Senado Federal, há medidas legais e infralegais que devem ser adotadas pelas autoridades fluminenses com o objetivo de melhorar a qualidade do processo administrativo fiscal fluminense.

Todos que militam no processo administrativo fiscal do RJ ficariam agradecidos se a Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (ALERJ) aprovasse projetos de lei para o aperfeiçoamento do processo Administrativo Fiscal.

A primeira medida legislativa que se impõe é a extinção do voto de qualidade dos presidentes de Câmara do Conselho de Contribuintes.

A partir da publicação da Lei (federal) nº 13.988/2020 e da maioria que se formou no julgamento das ADIs 6399, 6403 e 6415, não faz mais nenhum sentido o silêncio do legislador fluminense acerca da extinção do voto de qualidade pelos Presidentes de Câmaras do Conselho de Contribuintes do Estado do Rio de Janeiro.

Considerando que há Câmaras privativamente presididas por conselheiros representantes dos contribuintes (2ª e 3ª), a discussão pelo fim do qualidade no processo administrativo fiscal estadual ganha especial relevância, na medida em que a tese defendida não é o fim de um julgamento pró fisco mas, sobretudo, da supremacia de um julgamento justo.

Num Estado Democrático de Direito que prima pela isonomia e paridade de armas na dialética processual, nada justifica que o voto de um julgador – seja representante da Fazenda ou dos Contribuintes – tenha maior peso do que os de seus pares. Portanto, já passou da hora do voto de qualidade ser extirpado do processo administrativo fiscal estadual.

Os legisladores estaduais também precisam incluir dispositivo no Decreto-Lei nº 05/75 (Código Tributário Estadual) prevendo os embargos de declaração como um dos recursos no processo administrativo fiscal estadual.

Trata-se de recurso consagrado na legislação processual brasileira que tem por objetivo o aperfeiçoamento dos julgados, evitando a manutenção de decisões contraditórias, obscuras ou omissas.

À míngua de previsão legal para a oposição de embargos de declaração, os contribuintes arguem a nulidade dos julgados, muitas vezes acolhida, resultando em novos julgamentos pela instância recorrida com evitável dispêndio de tempo, recursos materiais e humanos.

A legislação tributária estadual também precisa ser aperfeiçoada para deixar expresso que os autos de infração e as notas de lançamento deverão estar instruídos com todos os termos, depoimentos, laudos e demais elementos de prova indispensáveis à comprovação do ilícito.

Lamentavelmente, os autos de infração lavrados pela fiscalização da SEFAZ não costumam anexar todos os elementos de convicção  utilizados pelo autuante para a formalização da exigência fiscal. Consequentemente, o processo administrativo se inicia com indexável prejuízo ao direito de defesa, que poderá ser evitado ser a legislação impor aos Auditores Fiscais o dever da melhor instrução possível aos autos de infração/notas de lançamento.

Outra medida que representaria importante avanço no processo administrativo fiscal estadual seria a previsão de suspensão dos processos versando sobre matérias que estão submetidas à apreciação do Supremo Tribunal Federal ou do Superior Tribunal de Justiça sob os ritos da Repercussão Geral ou dos Recursos Repetitivos.

A adoção desta medida pelo legislador estadual irá ao encontro da desejável harmonia ente as decisões administrativas e judiciais, também afastando um desnecessário ingresso em juízo para a discussão de matérias pacificadas nos Tribunais Superiores.

O processo administrativo fiscal do Estado do Rio de Janeiro também precisa ser aperfeiçoado para, do ponto de vista legislativo, prever patamar razoável para a interposição de recurso de ofício pela autoridade julgadora de primeira instância. 

Mantida a regra atual – em que o recurso de ofício se constitui como uma regra – o julgamento de primeira é desprestigiado, significa um mero ritual de passagem, sem contar o desnecessário congestionamento nas pautas de segunda instância, abarrotadas de recursos de ofício absolutamente desnecessários.

É igualmente urgente que seja extinto o recurso exclusivo da Representação Geral da Fazenda ao SEFAZ. Este recurso hierárquico, por mero descontentamento face às teses definidas em julgamento colegiado, está longe de ser meio de controle da legalidade do ato administrativo. Trata-se, na verdade, de pura irresignação de uma das partes face ao decidido, repita-se, por órgão julgador colegiado.

Recorrer ao SEFAZ para reformar decisão tomada por um colegiado deve ser a exceção e só faz sentido se a decisão recorrida for absolutamente nula ou fruto de atuação fora da competência do colegiado.  Como o STJ já decidiu “a necessidade de controlar pressupõe algo descontrolado” (MS 8.810, DJ 06/10/2003). Meras irresignações, portanto, não podem dar ensejo à revisão de acórdãos pelo SEFAZ.

Também não podemos deixar de mencionar a necessidade de ser alterada a praxe adotada por diversos órgãos julgadores administrativos que, reconhecendo nulidade do processo ou de qualquer ato administrativo, não se preocupam em analisar o mérito do pedido e com isso simplesmente acolhem a nulidade, determinando que outro ato ou decisão  seja proferido em boa e devida forma.

Melhor seria, contudo, que mesmo se tratando de nulidade, as autoridades administrativas enfrentassem o mérito nos casos em que se puder decidir favoravelmente ao sujeito passivo.

A adoção desta providência, já prevista no processo administrativo fiscal federal (art. 59, § 3º, do Decreto nº 70.235/72) é medida de justiça fiscal e de evidente economia processual, abreviando a tramitação de processos que, ao fim e ao cabo, culminarão no afastamento de exigências fiscais descabidas.

Outra medida importante que precisa ser tomada está na comunicação das decisões administrativas.

Desde há muito – quem sabe até desde sempre – adotou-se como praxe no processo administrativo fiscal estadual a adoção de portarias de intimação para a comunicação de decisões de primeira ou segunda instâncias.

Nada contra a utilização das Portarias Intimação, não fosse o fato de  em todas elas constar a seguinte expressão: “O processo administrativo respectivo, contendo o inteiro teor do despacho acima mencionado, encontra-se à disposição dos interessados no endereço da repartição fiscal abaixo mencionada”.

Em razão da expressão acima transcrita, as diversas repartições simplesmente não anexam cópia integral da decisão administrativa proferida pelo Auditor-Chefe, pela Junta de Revisão Fiscal ou pelo Conselho de Contribuintes do Estado do Rio de Janeiro.

Pior ainda, sequer a ementa da decisão é transcrita na Portaria de Intimação, de modo que a expressão “do despacho acima mencionado” chega a ser falaciosa, visto que as Portarias limitam-se a informar a parte dispositiva da decisão.

Desnecessário dizer que a falta de juntada do inteiro teor da decisão administrativa caracteriza evidente prejuízo ao direito de defesa, na medida em que subtrai do contribuinte o direito de prontamente saber o conteúdo da decisão que repercute negativamente em sua esfera de interesses, fazendo-o perder precioso tempo na elaboração de seu recurso.

E nem se diga que o alerta de que o processo administrativo está à disposição na repartição competente é motivo para sanar a evidente irregularidade. Basta lembrar que, não raro, o interessado poderá estar estabelecido em outro município, mas circunscrito a uma Auditoria Especializada, por exemplo, localizada na capital. Além disso há casos em que o interessado está localizado em outro Estado, mas recebeu Portaria de Intimação dirigida por Chefe de Posto Fiscal. Portanto, é muito provável que o contribuinte perca bastante tempo até reunir condições para, deslocando-se à repartição fiscal, ter acesso ao inteiro teor da decisão.

Ademais, a utilização das Portarias de Intimação sem a devida juntada da decisão administrativa também representa violação a expressa previsão da legislação tributária estadual, precisamente ao artigo 36, parágrafo único, do Decreto nº 2.473/79, segundo o qual “A intimação de decisão será acompanhada de cópia ou resumo do ato.”

Portanto, é preciso que sejam adotadas medidas administrativas e/ou infralegais para que tais violações ao direito de defesa deixem de ser praticadas.

Como se vê, há muito trabalho pela frente. Atos legais, infralegais e administrativos podem mudar o rumo de um processo administrativo que precisa ser aprimorado para conferir maior justiça, eficácia e prestígio ao direito de defesa.

O momento de renovação do Executivo e Legislativo é propício para a implementação de mudanças.

A rigor, não é preciso esperar que o resultado dos trabalhos da comissão instalada pelo STF e Senado se transforme em normas legais. Cabe ao TJRJ, ALERJ e ao Governo do Estado formarem comissão com representantes do CRC, da classe dos advogados – não necessariamente da OAB/RJ – e representantes do empresariado para promover uma discussão com vistas a aprimorar o processo administrativo fiscal estadual.

Perse: direito à alíquota 0 a quem não tem Cadastur no momento da publicação da lei

É inegável o gigantesco prejuízo econômico que as empresas e os profissionais que prestam serviços essencialmente dependentes da presença física de seus clientes sofreram com as medidas de restrição de circulação de pessoas durante a pandemia do coronavírus, sobretudo durante o período de março de 2020 até o final de 2021. Como poderiam restaurantes, salões de festas, por exemplo, manterem o mesmo nível de receita que auferiam anteriormente ao período pandêmico se a recomendação mundial era para que todos permanecessem em suas casas?

Com o intuito de compensar esse rombo financeiro, que invariavelmente reflete em substancial diminuição na arrecadação de tributos, entendeu por bem o Congresso conceder alíquota zero para o Imposto de Renda, PIS/Pasep, Cofins e CSLL a todas as empresas pertencentes ao setor de eventos, bem como aos bares e restaurantes durante o período de cinco anos, contados da publicação da Lei Federal nº 14.148/2021, instituidora do denominado “Programa Perse — Programa Emergencial de Retomada do Setor de Eventos”.

Apesar das razões positivas que estruturaram essa benesse fiscal, a sensível repercussão na perda de arrecadação imediata, levou o Poder Executivo a impor resistência à implantação da medida. 

O primeiro obstáculo enfrentado pela medida foi o veto realizado pelo presidente da República, em que pese este reconhecer o motivo legítimo do benefício pretendido. Nas razões do veto presidencial argumentou que haveria óbice jurídico por não haver a estimativa de impacto orçamentário, bem como por supostamente violar a isonomia tributária [1]. Em razão disso, para o desgosto dos contribuintes que seriam beneficiados pela alíquota zero, a Lei Federal nº 14.148/2021 foi publicada em 4/5/2021 sem conceder o benefício originariamente presente no projeto de lei.

Todavia, o apelo do setor empresarial pertencente a tais setores para a criação de maiores benefícios fiscais em contrapartidas às perdas financeiras decorrentes das medidas públicas de lockdown, em razão dos efeitos da Covid-19 — que levou várias atividades empresariais à falência — provocou a movimentação do Congresso para derrubar o mencionado veto presidencial e restabelecer a alíquota zero aos referidos tributos federais.

Dessa forma, as partes vetadas da lei foram finalmente publicadas em 18/3/2022, momento no qual passou a vigorar a alíquota zero para os referidos tributos federais incidentes sobre lucro e faturamento, a serem aplicadas automaticamente a diversas empresas dos setores de eventos, bares e restaurantes, conforme códigos da Classificação Nacional de Atividades Econômicas (Cnae) a ser definidos por Ato do Ministério da Economia (artigo 2º, §2º).

Entretanto, ausentes demais mecanismos constitucionais para impedir o prosseguimento da concessão da alíquota zero a tais contribuintes, haja vista que o veto já havia sido derrubado, o Poder Executivo passou a se valer de estratégia ilegal para perseguir seu intento de obstar a concessão do benefício. É que o Poder Executivo, impondo um novo obstáculo à alíquota zero perseguida pelo Poder Legislativo, dessa vez por intermédio da Portaria nº 7.163/2021, editada pelo Ministério da Economia, resolveu restringir ilegalmente o benefício, por meio desse ato regulamentar.

Embora o §1º, do artigo 2º, da Lei nº 14.148/2021, seja expresso em listar todos aqueles que poderão se valer do benefício, o Poder Executivo optou por restringir alguns contribuintes listados no “Anexo 2” da Portaria do Ministro da Economia nº 7.163/2021, nos termos de seu artigo 1º, §2º. 

Isso porque essa Portaria condicionou a concessão do benefício apenas para empresas que estivesses regularmente inscritas no Cadastur (Cadastro de Prestadores de Serviços Turísticos) na data da publicação da Lei Federal nº 14.148/2021, mesmo não sendo esse cadastro uma condição para o exercício da atividade. Assim, o Poder Executivo terminou em excluir, à míngua da Lei, quem não tivesse a mencionada inscrição no Cadastur.

Sob o ponto de vista jurídico, sabe-se que os atos infralegais, ainda que normativos, só podem regular e especificar dentro da moldura legal estabelecido na Lei de referência. Por isso, sabe-se que não é cabível ao Poder Executivo dispor, condicionar, ou impor aquilo que não foi previamente delimitado pelo Poder Legislativo, sob pena daquele fazer as vezes deste, em evidente afronta ao princípio da separação de poderes consagrado no artigo 2º da CRFB/88 [2], bem como ao núcleo essencial do princípio da legalidade administrativa.

Com efeito, se o legislador não exigiu, na Lei Federal nº 14.148/2021, o requisito de prévio cadastro no Cadastur, não poderia o ministro da Economia fazê-lo, sob pena de grave violação ao sentido democrático essencial que rege o Estado de Direito, que é a legalidade.

No caso de bares e restaurantes, esse prévio cadastro sequer é obrigatório pela legislação de regência (artigo 22, da Lei 11.771/2008). Nesse sentido, de forma surpreendente, os bares e restaurantes foram informados de que aquilo que outrora era facultativo, passou a ser obrigatório, sem lhes conceder, contudo, quaisquer oportunidades de enquadramento, visto que a exigência é retroativa — nos termos do decreto, os bares e restaurantes deveriam ter o Cadastur na data da publicação da Lei Federal nº 14.148/21.

Nesse contexto de entraves institucionais criados pelo Poder Executivo para viabilizar a legítima fruição do benefício fiscal de alíquota zero por parte de certas empresas, resta saber como será a posição do Poder Judiciário frente a essa evidente violação aos limites do poder regulamentar. 

Nesse cenário, vislumbra-se o ajuizamento crescente ações judiciais visando resguardar tais empresas quanto ao direito de não recolher os referidos impostos federais pelo prazo 60 meses, a contar da publicação dessa Lei, ainda que não preencham o requisito formal e ilegal imposto pela Portaria Ministerial, qual seja, de possui inscrição regular no Cadastur quando da publicação da lei que concedeu o benefício.

Tendo em vista se tratar de matéria recente, ainda não é possível afirmar qual é o posicionamento dominante no Poder Judiciário, sobretudo pela ausência de decisões definitivas dos Tribunais sobre o tema. Todavia, já temos alguns posicionamentos em sede de tutela provisória, como do eminente tributarista e desembargador Leandro Paulsen, que nos autos do agravo de instrumento nº 5022229-45.2022.4.04.0000/RS, analisando pedido liminar de antecipação de tutela recursal, na qualidade de relator, decidiu favoravelmente aos contribuintes [3].

Por outro lado, é possível vislumbrar algumas decisões que se posicionam desfavoravelmente ao contribuinte, também em sede de tutela provisória, como a proferida pela eminente juíza federal da 14ª Vara Federal Cível da Seção Judiciária da Bahia, no âmbito do Mandado de Segurança nº 1035143-90.2022.4.01.3300 [4].

É importante acompanhar o entendimento jurisprudencial sobre o tema, reforçando sempre a evidente ilegalidade da exigência de prévia inscrição no Cadastur, especialmente para empresas do ramo de bares e restaurantes, tal como prevaleceu no entendimento exposto pelo eminente desembargador Leandro Paulsen, no sentido de que faria jus ao enquadramento no Programa Perse todos aqueles que efetivamente fazem parte do setor de turismo, independentemente do requisito de terem, ou não, o Cadastur na data da publicação da Lei Federal nº 14.148/2021.

Resta agora aguardar para ver se o Poder Judiciário seguirá o caminho da proteção da legalidade administrativa, pilar do Estado de Direito, ou se favorecerá entendimentos que buscam apenas homenagear as razões políticas e financeiras do Poder Público.


[1] Conforme contou nas razões de veto: “[…] apesar de meritória a intenção do legislador, a medida encontra óbice jurídico por acarretar renúncia de receita, sem o cancelamento equivalente de outra despesa obrigatória e sem que esteja acompanhada de estimativa do seu impacto orçamentário e financeiro, por violar o inciso II do artigo 150 da Constituição da República, uma vez que institui tratamento desigual entre os contribuintes em afronta à isonomia tributária e, também, por contrariar o artigo 113 do ADCT, o artigo 14 a 16 da Lei Complementar nº 101, de 2000 (LRF) e os artigo 125 e 126 da Lei nº 14.116, de 2020 (LDO/2021)”.Mensagem nº 186, de 3 de maio de 2021. Link disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2021/Msg/VEP/VEP-186.htm. Acesso em 26/08/2022.

[2] “Artigo 2º São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário”.

[3] Na ocasião, fundamentou-se o seguinte: “Logo, a Lei 14.148/2021 delegou ao ato do Ministério da Economia apenas a designação dos códigos da Classificação Nacional de Atividades Econômicas (CNAE), sendo que a exigência de situação regular no Cadastur foi estipulada somente pelo ato infralegal, ao arrepio do princípio da legalidade que rege as normas tributárias. No caso, a exigência de cadastro regular no Ministério do Turismo pegou a agravante de surpresa, pois estipula um requisito temporal retroativo, exigindo condição que era facultativa para a agravante até então e que tal condição estivesse cumprida em 03/05/2021, data da publicação da lei que instituiu o Perse. Tanto é que a agravante já obteve o cadastro no Ministério do Turismo, mas é impedida de ingressar no programa de benefícios, pois não o teria feito antes, sendo que só tomou ciência da obrigatoriedade com a publicação da Portaria, em 21/06/2021. Assim, estando o código Cnae da agravante previsto na Portaria, inquestionável que suas atividades vinculam-se ao setor de turismo. Assim, a impetrante faz jus à adesão ao Perse, de modo que sua exclusão de programa especialmente criado para tal setor, em razão da ausência de um cadastro facultativo até a publicação da Portaria ME, viola o princípio da isonomia tributária. Criado um programa de benefícios fiscais para o setor turístico, os contribuintes vinculados a tal setor devem ser tratados igualitariamente, não se sustentando a recusa da autoridade coatora em realizar a adesão ao respectivo programa”. (TRF-4 – AG: 50222294520224040000 5022229-45.2022.4.04.0000, relator: LEANDRO PAULSEN, Data de Julgamento: 03/06/2022, PRIMEIRA TURMA. Link de acesso:  https://consulta.trf4.jus.br/trf4/controlador.php?acao=consulta_processual_resultado_pesquisa&selForma=NU&txtValor=50222294520224040000&chkMostrarBaixados=S&todasfases=&todosvalores=&todaspartes=&txtDataFase=&selOrigem=TRF&sistema=&txtChave=. Acesso em 31/08/2022.)

[4] Segue trecho da decisão: “Infere-se, a princípio, que a intenção da norma era atender ao setor que foi fragilizado pelos efeitos da retração econômica acarretados pela Covid-19, mas atribuindo ao ato infralegal a possibilidade de indicar de forma mais especificada aqueles que efetivamente se enquadrassem nesta situação. Na portaria vergastada pelo impetrante ficou regulamentado: ‘Artigo 1º Definir os códigos da Classificação Nacional de Atividades Econômicas — Cnae que se consideram setor de eventos nos termos do disposto no §1º do artigo 2º da Lei nº 14.148, de 3 de maio de 2021, na forma dos Anexos I e II. §1º As pessoas jurídicas, inclusive as entidades sem fins lucrativos, que já exerciam, na data de publicação da Lei nº 14.148, de 2021, as atividades econômicas relacionadas no Anexo I a esta Portaria se enquadram no Programa Emergencial de Retomada do Setor de Eventos – Perse. §2º As pessoas jurídicas que exercem as atividades econômicas relacionadas no Anexo II a esta Portaria poderão se enquadrar no Perse desde que, na data de publicação da Lei nº 14.148, de 2021, sua inscrição já estivesse em situação regular no Cadastur, nos termos do artigo 21 e do artigo 22 da Lei nº 11.771, de 17 de setembro de 2008′.

Observa-se, portanto, que a exigência de prévia inscrição no Cadastur está em consonância com o objetivo visado pela Lei 14.148/2021, não se extraindo, em juízo sumário, qualquer ilegalidade que possa ser erigida ao seu teor”.

Lucas Teixeira Muro é acadêmico em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e integrante da equipe de Direito Tributário do escritório Tavernard advogados.

Murilo Melo Vale é doutor e mestre em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), pós-graduado em Direito Público e Tributário, professor na área de Direito Público, advogado, sócio do escritório Tavernard Advogados e coordenador da área de Direito Público e Tributário Contencioso.

Revista Consultor Jurídico, 15 de setembro de 2022, 13h14

Aspectos controvertidos da falsidade na compensação tributária

O artigo 89, § 10, da Lei nº 8.212/91 prevê: “Na hipótese de compensação indevida, quando se comprove falsidade da declaração apresentada pelo sujeito passivo, o contribuinte estará sujeito à multa isolada aplicada no percentual previsto no inciso I do caput do art. 44 da Lei no 9.430, de 27 de dezembro de 1996, aplicado em dobro, e terá como base de cálculo o valor total do débito indevidamente compensado”.

Apesar de prever a conduta ilícita (falsidade na declaração) e a sanção correspondente (multa isolada de 150% sobre o valor do débito indevidamente compensado), o referido dispositivo é uma norma em branco, pois não dispõe quais atos praticados pelo contribuinte são considerados como falsidade na declaração. Isso tem repercutido, nos casos concretos, em subjetivismos e arbitrariedades das autoridades fiscais na análise das contribuições previdenciárias.

Em geral, a auditoria previdenciária tende a considerar “falsidade na declaração” todo aquele crédito utilizado pelo contribuinte que não decorra de previsão legal expressa e cristalina, sendo falsas as informações prestadas em razão de ter se valido de crédito “sabiamente inexistente”. Contudo, há diversas possibilidades de o contribuinte utilizar créditos não tão evidentes sem que, com isso, cometa qualquer ilicitude.

Alguns exemplos são esclarecedores.

O artigo 19, VI, a c/c art.igo 19-A, III, da Lei nº 10.522/01 prevê que as matérias definidas pelo Supremo Tribunal Federal sob a sistemática da repercussão geral e pelo Superior Tribunal de Justiça em sede de recurso repetitivo devem ser observadas pela Secretaria da Receita Federal do Brasil, que ficará impedida de exigir, a qualquer título, créditos tributários contrários à decisão, cabendo à Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional manifestar-se quanto às matérias abrangidas pelo precedente. Sem o pronunciamento da PGFN, a Receita Federal continua a entender exigível a obrigação tributária correspondente e, via de consequência, a não compensar as compensações realizadas.

Isso significa que caso o STJ tenha firmado precedente vinculante favorável aos contribuintes em determinada matéria, mas houve a interposição de recurso extraordinário pela Fazenda Nacional de modo a evitar o trânsito em julgado da sentença, se alguém vier a apurar créditos fundamentados neste pronunciamento, corre o risco de ter a sua compensação considerada fraudulenta, visto que o crédito, além de não ser cristalino — tanto que houve a necessidade de propositura de demanda judicial para reconhecê-lo —, a discussão sobre este direito permanece sub judice, sendo necessário aguardar o posicionamento do STF.

Em outro exemplo, o STJ, no REsp 1.230.957/RS, afetado como recurso repetitivo, firmou precedente de que não incide contribuição previdenciária sobre o valor pago pela empresa a título de aviso prévio indenizado. Apesar de não ter havido qualquer modulação desta decisão, o artigo 6º, parágrafo único, I, da IN RFB nº 925/09, em sentido totalmente contrário, mantém hígida a incidência tributária até a competência 05/2016, sujeitando o contribuinte à imposição da multa de 150% caso tenha apurado crédito, espontaneamente, para além deste limite estabelecido, por violar legislação expressa.

Ainda, há créditos que, embora não previstos expressamente na legislação, decorrem de interpretação das normas aplicáveis, de forma que, se por um lado não são autorizados, de outro também não são vedados. Nada obsta que o contribuinte opte por travar a discussão envolta à tese tributária perante a Administração Pública em detrimento do Poder Judiciário — desde que não se revista de caráter constitucional —, mormente porque o Carf é um órgão judicante com autonomia para decidir, podendo acatá-la.

Assim, como está evidente, o simples fato de a legislação não prever determinado crédito de forma límpida não impede que o contribuinte, sob o seu entender e interpretação da legislação, o apure e compense, sem que essa conduta consubstancie qualquer falsidade.

Em verdade, o próprio artigo 89, § 10, da Lei nº 8.212/91 traz alguns elementos que direcionam a sua interpretação para preenchimento da lacuna apontada.

Primeiro. Como qualquer conduta penal tipificada, a modalidade culposa deve ser expressamente prevista; no silêncio, somente a modalidade dolosa configura crime. No caso da Lei nº 8.212/91 não há qualquer previsão de que a “falsidade da declaração” deve decorrer de ato intencional do contribuinte. O sujeito passivo deve, propositalmente, realizar a compensação mediante informação falsa.

Segundo. O dispositivo exige a comprovação da falsidade; logo, não ela pode ser presumida. O dever da prova cabe ao Fisco.

Esses dois pressupostos acabam por excluir a falsidade de uma série de condutas possíveis do contribuinte. O erro não intencional, por exemplo, é livre de dolo, portanto não configura falsidade. À sua vez, divergência na interpretação da legislação também não configura fraude, pois aqui, igualmente, não se verifica o intuito de escamotear o adimplemento da obrigação tributária por meio de compensação indevida.

Reforça essa ideia a circunstância de que, atualmente, toda a pragmática tributária é organizada de modo a atribuir ao contribuinte toda a responsabilidade pela apuração e recolhimento da grande maioria dos tributos. É o contribuinte quem deve, a partir das suas escriturações fiscais, contábeis e trabalhistas, efetuar classificações ficais, apurar o fato gerador das obrigações tributárias, calcular os tributos devidos, preencher um sem-número de declarações fiscais e entregá-las ao Fisco (artigo 150, caput, do CTN). Mesmo na compensação, o contribuinte deve apurar o crédito, por sua conta e risco, e informá-lo ao Fisco, que somente após, irá validá-lo. O dever de o contribuinte interpretar a legislação tributária configura hoje o cerne de toda a prática tributária brasileira.

Nesse contexto, é válido afirmar que falsidade da declaração é aquela na qual se utiliza crédito falso, ou seja, inexistente, que o contribuinte sabe não possuir e, ainda assim, o compensa deliberadamente. Por exemplo, realiza compensação expressamente vedada pela legislação, ou informa valor decorrente de pagamento indevido ou a maior que sabe não possuir. Não se confunde com divergências na interpretação da lei — que, se muito, podem levar apenas e tão-somente à não homologação da compensação, mas não à multa isolada qualificada —, mormente quando esta é atribuída ao contribuinte.

Estes parâmetros devem ser observados pela Secretaria da Receita Federal do Brasil ao analisar as compensações previdenciárias, cabendo aos contribuintes se atentarem para eventuais autuações de modo a evitar que sofram a imposição arbitrária de multas indevidas.

Fellipe Fortes é tributarista do Balera, Berbel e Mitne Advogados.

Revista Consultor Jurídico, 14 de setembro de 2022, 16h09

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