ARTIGO DA SEMANA –  A PEC 05/2023 sobre a Imunidade dos templos

João Luís de Souza Pereira. Advogado. Mestre em Direito. Membro da Comissão de Direito Financeiro e Tributário do IAB. Professor convidado das pós-graduações da FGV/Direito Rio e do IAG/PUC-Rio.

Há uma proposta de emenda à Constituição, de autoria do Deputado Marcelo Crivella, tendente a ampliar a imunidade dos templos, que ganhou destaque na imprensa nos últimos.

Como se sabe, a Constituição confere imunidade em relação aos impostos incidentes sobre os templos de qualquer culto. 

Inequivocamente, o fundamento desta imunidade é a liberdade de expressão religiosa. O Brasil, além de não prescrever uma religião oficial, admite o culto de qualquer religião.

É evidente que o gozo desta imunidade depende da existência de um templo, ou melhor, de uma congregação regularmente constituída e que efetivamente realize uma pregação religiosa.

A iniciativa do Dep. Crivella é, na verdade, a PEC nº 05/2023, aprovada pela Comissão Especial da Câmara dos Deputados em 27/02/2024 e que aguarda inclusão na Ordem do Dia para deliberação pelo Plenário. Aprovada pelo Plenário da Câmara, a PEC seguirá para tramitação no Senado Federal.

Originalmente, a PEC 05/2023 era bem abrangente, contemplando a imunidade dos templos e aquela do art. 150, VI, “c” (entidades sindicais dos trabalhadores, partidos políticos, entidades assistenciais e educacionais sem fins lucrativos), e pretendia, via acréscimo de um §4º-A ao art. 150, estender a imunidade já existente aos impostos incidentes sobre a aquisição de bens e serviços voltados à finalidade essencial das entidades[1]

Citando vários julgados do STF, o autor da Proposta, em sua justificativa, afirma que os “tribunais superiores têm por sedimentado o entendimento de que mesmos os insumos necessários à formação do patrimônio, à prestação dos serviços e para geração de renda pelas entidades beneficiadas, gozam da imunização outorgada pelo constituinte originário”.

Após aprovação na CCJ da Câmara e tramitação pela Comissão Especial, foi aprovado o parecer do relator, Deputado Dr. Fernando Máximo, propondo a seguinte redação ao texto:

Art. 1º –  O art. 150 da Constituição Federal passa a vigorar acrescido do seguinte § 4º-A: 

“Art. 150. ……………………………………………………………………

§ 4o-A A vedação expressa na alínea “b” do inciso VI do caput compreende a aquisição dos bens ou serviços necessários à formação do patrimônio, à geração de renda e à prestação de serviços, inclusive à implantação, manutenção e funcionamento das entidades religiosas de qualquer culto e de suas creches, asilos, orfanatos, comunidades terapêuticas, monastérios, seminários e conventos, dentre outras, atendidas as condições estabelecidas em lei complementar, que deverá prever a obrigatoriedade de regras unificadas e harmônicas nacionalmente. 

……………………………………………………………………….” (NR) 

Art. 2º – Para efeito da imunidade de que trata o § 4o-A do art. 150 da Constituição Federal, com a redação dada por esta Emenda Constitucional, as entidades religiosas e organizações nele referidas farão jus, nos termos de lei complementar, ao recebimento de créditos dos tributos pagos, previstos no art. 153, incisos I, IV, V, e VIII, no art. 154, no art. 155, incisos I, II e III, no art. 156, incisos I, II e III, e no art. 156-A. 

§1º – Os tributos incidentes nas aquisições de que trata o caput deste artigo constituirão créditos a serem depositados em conta corrente de mesma titularidade do beneficiário adquirente dos bens ou serviços nele referidos.

§2º – A regulamentação das regras unificadas e harmônicas nacionalmente de que trata o §4º-A do art. 150 da Constituição Federal, com a redação dada por esta Emenda Constitucional, será́ feita por ato do Conselho Nacional de Política Fazendária (Confaz) até 31 de dezembro de 2025, e, a partir de 1º de janeiro de 2026, por ato conjunto deste Conselho e do Comitê Gestor do imposto de trata o art. 156-A da Constituição Federal. 

Art. 3º – É assegurada aos templos e entidades de que trata o §4º-A do art. 150 da Constituição Federal, com a redação dada por esta Emenda Constitucional, a qualidade de sujeito de direito e a existência de capacidade processual, inclusive para o fim da defesa de seus interesses no caso de inobservância do disposto nesta Emenda Constitucional.

Segundo noticiado na imprensa, o texto aprovado na Comissão Especial, que excluiu as entidades sindicais dos trabalhadores, partidos políticos, entidades assistenciais e educacionais sem fins lucrativos das alterações,  é fruto de pedido da Casa Civil com vistas a reduzir o impacto financeiro da proposta.

Traduzindo o texto aprovado até o momento, o que se observa é que a imunidade dos templos poderá sofrer extensão em seu objetivo de modo a contemplar também o afastamento dos impostos incidentes sobre os bens e serviços adquiridos pelos templos e devidos por seus fornecedores.

A imunidade dos templos também passará a contemplar não apenas o patrimônio, a renda e os serviços vinculados à pregação religiosa, estendendo-se, segundo o texto, às creches, asilos, orfanatos, comunidades terapêuticas, monastérios, seminários e conventos, dentre outras entidades/atividades realizadas através dos templos.

Já prevendo a vigência do Imposto Sobre Bens e Serviços (IBS) e seu caráter nacional, propõe-se que a fruição da imunidade deverá atender as condições estabelecidas em lei complementar, que deverá prever a obrigatoriedade de regras unificadas e harmônicas a serem observadas por todos os entes da federação.

O artigo 2º e o parágrafo 1º da PEC 05/2023 criam um complicado mecanismo para a efetivação da imunidade, através de um sistema de creditamento do imposto pelas entidades e impondo ao fornecedor o ônus de realizar o depósito do imposto correspondente numa  “conta corrente de mesma titularidade do beneficiário adquirente dos bens ou serviços”.

Também merece destaque o art. 3º da PEC 05/2023, segundo o qual as entidades imunes terão legitimidade para discutir em juízo a incidência dos impostos sobre os bens e serviços adquiridos.

O texto que poderá ser aprovado pelo Plenário da Câmara deverá sofrer alterações ao longo da tramitação no Senado Federal. 

Antes de mais nada, é preciso dizer que a aprovação da PEC 05/2023 pelo Senado e sua posterior promulgação representará uma revolução acerca daquilo que o STF tem decidido sobre o tema.

Historicamente, a jurisprudência do STF não reconhece a imunidade tributária sobre os bens e serviços adquiridos por entidades imunes já que, nesta hipótese, são meras contribuintes de fato, não integrando a relação jurídica tributária.

O STF apenas admite a imunidade quando se trata de bem diretamente importado pela entidade imune, isto porque, nesta hipótese, a entidade é contribuinte de direito do Imposto de Importação e do IPI-Importação, se for o caso. 

A jurisprudência histórica do STF foi pacificada na tese firmada na compreensão do Tema 342 da Repercussão Geral, segundo a qual “A imunidade tributária subjetiva aplica-se a seus beneficiários na posição de contribuinte de direito, mas não na de simples contribuinte de fato, sendo irrelevante para a verificação da existência do beneplácito constitucional a repercussão econômica do tributo envolvido”.

De todo, ainda que mantida a ideia original do texto a ser aprovado pela Câmara, a nova imunidade dos templos precisará de aperfeiçoamentos.

A previsão de que a imunidade será estendida aos impostos incidentes sobre  bens e serviços adquiridos por “creches, asilos, orfanatos, comunidades terapêuticas, monastérios, seminários e conventos” vinculados aos templos é exagerada porque tais entidades já estão contempladas nas “organizações assistenciais e beneficentes” incluídas no art. 150, VI, “b”, pela Emenda Constitucional nº 132/2023 (Reforma Tributária do Consumo), sendo certo que não há dúvida de que os seminários e convênios sempre estiveram cobertos pela imunidade.

A concretização da imunidade quanto aos impostos sobre bens e serviços adquiridos pelos templos e demais entidades através de um crédito que corresponderá ao valor do imposto a ser depositado, pelo fornecedor, em conta corrente em nome do beneficiário (art. 2º, §1º, da PEC)  é um mecanismo por demais complicado. Muito melhor seria a previsão de que o fornecedor não deverá destacar, nem cobrar o imposto sobre tais operações, simplesmente

Uma coisa também precisa ser dita: a PEC 05/2023 é mais um daqueles exemplos de situações em que o Legislativo pretende constitucionalizar aquilo que o STF afirmou ser inconstitucional.


[1] § 4º-A – Para efeito do disposto no §4º, compreende-se como abrangida pela vedação a aquisição de bens e serviços necessários à formação do patrimônio, à geração de renda e à prestação de serviços. 

ARTIGO DA SEMANA –  PIS/COFINS, ICMS-ST, modulação de efeitos e aumento da litigiosidade

João Luís de Souza Pereira. Advogado. Mestre em Direito. Membro da Comissão de Direito Financeiro e Tributário do IAB. Professor convidado das pós-graduações da FGV/Direito Rio e do IAG/PUC-Rio.

E sessão realizada em 13/12/2023, o Superior Tribunal de Justiça concluiu o julgamento do Recurso Especial 1.896.678/RS[1].

Na ocasião, declarou-se o direito do contribuinte substituído excluir o ICMS-ST da base de cálculo do PIS/COFINS, fixando-se a tese para o Tema 1.125 dos Recursos Repetitivos[2].

O acórdão, contendo relatório, votos, ementa e ata da sessão de julgamento foi publicado na semana passada, precisamente no dia 28/02/2024.

Com a divulgação do inteiro teor do acórdão, veio à tona decisão importante tomada pelos Ministros da Primeira Seção do STJ em 13/12/2023: a modulação dos efeitos da decisão.

O relator, Min. Gurgel de Faria, dedicou um curto capítulo do voto, um parágrafo, na verdade, acompanhado pelos seus pares, para tratar da Modulação de Efeitos e afirmou que: 

“Na linha da orientação do Supremo Tribunal Federal, firmada no julgamento da Tese 69 da repercussão geral, e considerando a inexistência de julgados no sentido aqui proposto, conforme o panorama jurisprudencial descrito neste voto, impõe-se modular os efeitos desta decisão, a fim de que sua produção ocorra a partir da publicação da ata do julgamento no veículo oficial de imprensa, ressalvadas as ações judiciais e os procedimentos administrativos em curso”.

Ou seja: apenas os contribuintes que mantinham discussões judiciais ou administrativas sobre a matéria é que poderão excluir o ICMS-ST da base de cálculo do PIS/COFINS relativamente ao período anterior a 28/02/2024.

Esta modulação de efeitos do decidido no REsp 1.896.678/RS é uma péssima notícia e tem repercussão extremamente danosa para a sociedade.

Aqui não se pretende discutir se foram preenchidos os requisitos legais para a modulação dos efeitos que, cá entre nós, não estão presentes.

O problema a se discutir diz respeito a uma questão de política judiciária, de afogamento do Judiciário pelo Judiciário.

Como é de amplo conhecimento, toda lei nasce com presunção de legalidade e constitucionalidade.

Advogados militantes no contencioso bem sabem que a presunção de legalidade e constitucionalidade das normas é um dos principais motivos adotados pelos juízes de primeira instância para afastarem a presença da “fumaça do bom direito” e, consequentemente, negarem liminares ou decisões equivalentes.

É a presunção de legalidade e constitucionalidade das leis que faz com que as normas sejam cumpridas, fazendo com que os contribuintes promovam o pagamento dos tributos instituídos por lei.

Consequentemente, o ingresso em juízo com as chamadas medidas judiciais antiexacionais, buscando o não cumprimento de normas tributárias é a exceção.

Esta conclusão é até intuitiva.

No entanto, ao proferir decisões em Repercussão Geral ou em Recursos Repetitivos com modulação de efeitos, os Tribunais Superiores estão empurrando os contribuintes para o Judiciário.

A velha estória do gato escaldado tem medo de água fria não traz boas consequências para o Judiciário, tampouco para as Fazendas.

Sabendo que é cada vez maior o risco de decisão do STF ou do STJ favorável aos contribuintes, mas com modulação dos efeitos, aquele que tinha a intenção de pura e simplesmente cumprir a lei, passará a discutir a legalidade/constitucionalidade da norma tributária em juízo.

Optando pela discussão judicial, serão mais ações distribuídas no Poder Judiciário, criando novos gargalos para que o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) promova mutirões, pactos, programas, procedimentos, iniciativas e estratégias com vistas a solucionar o problema.

O incremento no ajuizamento de medidas judiciais em matéria tributária também pode levar a uma perda de qualidade do trabalho da Justiça, que funciona melhor quando tem menos processos e mais tempo.

A opção pela discussão judicial da norma tributária também não é o melhor dos mundos para fisco porque: (a) podem ser deferidas medidas liminares, resultando no não pagamento do tributo e (b) o contribuinte pode optar pelo depósito judicial que, tecnicamente, não é receita pública, embora os recursos depositados sejam utilizados como se fosse.

Mas a pior consequência da modulação de efeitos em decisões tributárias de grande repercussão é a mitigação à presunção de legalidade e constitucionalidade das leis.

Diante de nova lei tributária, e a Reforma da EC 132/2023 prevê várias delas, o contribuinte pode achar que a norma surgiu dentro da política do “se colar, colou” e simplesmente deixar de acreditar que toda lei nasce presumivelmente legal e constitucional.   


[1] TRIBUTÁRIO. RECURSO ESPECIAL REPETITIVO. ICMS-ST. SUBSTITUIÇÃO TRIBUTÁRIA PROGRESSIVA. SUBSTITUÍDO. CONTRIBUIÇÃO AO PIS. COFINS. BASE DE CÁLCULO. EXCLUSÃO.

1. O Supremo Tribunal Federal decidiu, em caráter definitivo, por meio de precedente vinculante, que os conceitos de faturamento e receita, contidos no art. 195, I, “b”, da Constituição Federal, para fins de incidência da Contribuição ao PIS e da COFINS, não albergam o ICMS (RE 574.706/PR, Rel. Ministra CÁRMEN LÚCIA, Tribunal Pleno, julgado em 15/03/2017, DJe 02/10/2017), firmando a seguinte tese da repercussão geral: “O ICMS não compõe a base de cálculo para a incidência do PIS e da COFINS” (Tema 69).

2. No tocante ao ICMS-ST, contudo, a Suprema Corte, nos autos do RE 1.258.842/RS, reconheceu a ausência de repercussão geral: “É infraconstitucional, a ela se aplicando os efeitos da ausência de repercussão geral, a controvérsia relativa à inclusão do montante correspondente ao ICMS destacado nas notas fiscais ou recolhido antecipadamente pelo substituto em regime de substituição tributária progressiva na base de cálculo da contribuição ao PIS e da COFINS” (Tema 1.098).

3. O regime de substituição tributária – que concentra, em regra, em um único contribuinte o dever de pagar pela integralidade do tributo devido pelos demais integrantes da cadeia produtiva – constitui mecanismo especial de arrecadação destinado a conferir, sobretudo, maior eficiência ao procedimento de fiscalização, não configurando incentivo ou benefício fiscal, tampouco implicando aumento ou diminuição da carga tributária.

4. O substituído é quem pratica o fato gerador do ICMS-ST, ao transmitir a titularidade da mercadoria, de forma onerosa, sendo que, por uma questão de praticidade contida na norma jurídica, a obrigação tributária recai sobre o substituto, que, na qualidade de responsável, antecipa o pagamento do tributo, adotando técnicas previamente estabelecidas na lei para presumir a base de cálculo.

5. Os contribuintes (substituídos ou não) ocupam posições jurídicas idênticas quanto à submissão à tributação pelo ICMS, sendo certo que a distinção entre eles encontra-se tão somente no mecanismo especial de recolhimento, de modo que é incabível qualquer entendimento que contemple majoração de carga tributária ao substituído tributário tão somente em razão dessa peculiaridade na forma de operacionalizar a cobrança do tributo.

6. A interpretação do disposto nos arts. 1º das Leis n. 10.637/2002 e 10.833/2003 e 12 do Decreto-Lei n. 1.598/1977, realizada especialmente à luz dos princípios da igualdade tributária, da capacidade contributiva e da livre concorrência e da tese fixada em repercussão geral (Tema 69 do STF), conduz ao entendimento de que devem ser excluídos os valores correspondentes ao ICMS-ST destacado da base de cálculo da Contribuição ao PIS e da COFINS devidas pelo substituído no regime de substituição progressiva.

7. Diante da circunstância de que a submissão ao regime de substituição depende de lei estadual, a indevida distinção entre ICMS regular e ICMS-ST na composição da base de cálculo das contribuições em tela concederia aos Estados e ao Distrito Federal a possibilidade de invadir a competência tributária da União, comprometendo o pacto federativo, ao tempo que representaria espécie de isenção heterônoma.

8. Para os fins previstos no art. 1.036 do CPC/2015, fixa-se a seguinte tese: “O ICMS-ST não compõe a base de cálculo da Contribuição ao PIS e da COFINS, devidas pelo contribuinte substituído no regime de substituição tributária progressiva.”

9. Recurso especial conhecido em parte e, nessa extensão, provido.

(REsp n. 1.896.678/RS, relator Ministro Gurgel de Faria, Primeira Seção, julgado em 13/12/2023, DJe de 28/2/2024.)

[2] O ICMS-ST não compõe a base de cálculo da Contribuição ao PIS e da COFINS devidas pelo contribuinte substituído no regime de substituição tributária progressiva.

ARTIGO DA SEMANA –  CARF: um órgão arrecadador

João Luís de Souza Pereira. Advogado. Mestre em Direito. Membro da Comissão de Direito Financeiro e Tributário do IAB. Professor convidado das pós-graduações da FGV/Direito Rio e do IAG/PUC-Rio.

Duas notícias veiculadas nesta semana informam que o CARF, após o restabelecimento do voto de qualidade em favor do fisco, foi responsável pela manutenção de exigências fiscais bilionárias. Veja aqui e aqui.

Na verdade, o restabelecimento do voto de qualidade pró-fisco foi medida adotada pelo Governo Federal com um propósito bem definido: aumentar a arrecadação e alcançar o déficit zero.

Não foi à toa que, no bojo do voto de qualidade em favor da Fazenda, surgiu um pacote de vantagens para estimular o pagamento pelo contribuinte que não teve seu recurso acolhido, que poderá pagar o débito com a exclusão de multas e juros, parcelado em 12 meses e com a utilização de prejuízo fiscal e base de cálculo negativa da CSLL.

O CARF, então, passou a ser instrumento de arrecadação com a institucionalização do voto de bancada.

Esta nova função atribuída ao CARF é lamentável.

O órgão, antes independente e tecnicamente impecável, transformou-se num longa manus da Receita Federal. 

Há consequências extremamente danosas decorrentes da função arrecadatória do CARF.

Um primeiro ponto a se considerar é que, priorizando julgamentos de processos de alto valor para que sejam resolvidos pelo voto de qualidade, o CARF perde sua independência e, o que é pior, toda a credibilidade construída ao longo de anos.

Outra questão relevante que deve ser vista é que, diante de um órgão revisor parcial, as Delegacias de Julgamento sentir-se-ão totalmente à vontade para manter exigências fiscais, desestimulando-se a busca da verdade material e deixando de fazer Justiça. Como se diz, o exemplo vem de cima e a instância superior está decididamente inclinada, quase torta, em favor do fisco.

Ao fim e ao cabo, fazer do CARF um órgão arrecadador desprestigia o processo administrativo fiscal, que sempre foi entendido como uma importante ferramenta de revisão das autuações promovida pela fiscalização da Receita Federal.

Além de proporcionar decisões justas, com discussões técnicas em alto nível, o processo administrativo fiscal sempre foi prestigiado pela garantia da suspensão da exigibilidade do crédito tributário, desde que as impugnações e recursos sejam apresentadas nos prazos da lei.

No entanto, a partir do momento em que cresce a expectativa decisão final desfavorável ao contribuinte, o processo administrativo fiscal se tornará um ritual de passagem para a discussão judicial.

Consequentemente, há uma clara tendência de aumento das medidas judiciais em matéria tributária de iniciativa dos contribuintes.

Portanto, além de não resolver o problema do contribuinte, o CARF arrecadador vai criar um novo gargalo no Poder Judiciário. 

ARTIGO DA SEMANA –  O SEFAZ/RJ precisa respeitar a colegialidade das decisões

João Luís de Souza Pereira. Advogado. Mestre em Direito. Membro da Comissão de Direito Financeiro e Tributário do IAB. Professor convidado das pós-graduações da FGV/Direito Rio e do IAG/PUC-Rio.

O Diário Oficial do Estado do Rio de Janeiro do dia 20/02/2024 trouxe mais de 30 decisões do Secretário de Fazenda reformando ou anulando monocraticamente decisões proferidas pelo Conselho de Contribuintes do Estado, ora pelo Pleno, ora pelos órgãos fracionários.

Estas decisões foram proferidas na apreciação de Recursos interpostos pela Representação Geral da Fazenda – RGF (art. 266, II, do Código Tributário Estadual[1]) e também em avocatórias (art. 232, caput, do Código Tributário Estadual[2]), mediante prévia representação da RGF neste sentido.

Entre as mais de 30 decisões publicadas em 20/02/2024, há casos em que as decisões colegiadas foram reformadas/anuladas para: (a) restabelecer créditos tributários extintos pela decadência e (b) afastar a irretroatividade benigna sobre as multas pelo atraso na entrega de GIA-ICMS. 

Decisões de Secretário de Fazenda reformando acórdãos do Conselho de Contribuintes causam preocupação e merecem reflexão porque não é razoável que uma decisão colegiada seja reformada por decisão singular.

Não se pode esquecer que, no processo administrativo fiscal, o Estado, através da SEFAZ, está na peculiar posição de ser ao mesmo tempo parte e julgador, tendo em vista que os órgãos julgadores compõem a estrutura da Secretaria de Fazenda.

Esta peculiar posição do Estado no processo administrativo fiscal lhe impõe um profundo dever de observância dos valores Justiça e Segurança Jurídica, assim como os princípios que lhes são decorrentes.

Ao tomar decisões nos processos administrativos fiscais, o Estado precisa ser justo e afastar a pecha de parcialidade que surge naturalmente quando se está na incômoda posição de decidir sobre atos que, ao fim e ao cabo, têm impacto direto na arrecadação. 

Proferindo decisões nos processos administrativos fiscais, o Estado precisa garantir a estabilidade nas relações jurídicas, sob pena dos contribuintes nunca saberem quando o processo termina e/ou se a decisão colegiada prevalecerá.

As decisões finais em processos administrativos fiscais proferidas pelo Secretário de Fazenda levam inevitavelmente à discussão sobre o princípio da colegialidade das decisões, que assegura o direito de revisão de julgados por órgão(s) composto(s) por mais de uma pessoa.

De fato, o sistema processual brasileiro foi estruturado para que as decisões monocráticas sejam revistas por órgãos colegiados.

No Código de Processo Civil, decisões monocráticas de segunda instância apenas poderão ser proferidas pelos relatores em situações específicas e excepcionais. E mesmo aquelas proferidas individualmente por relatores são passíveis de revisão por órgão colegiado. 

Por aí já se vê que a reforma ou anulação de decisão colegiada por julgador singular  importa em completa subversão do Direito Processual e, porque não dizer, da ordem natural das coisas.

O prestígio das decisões colegiadas ganha espacial importância nos processos administrativos fiscais em razão da composição paritária dos órgãos de segunda instância e de instância especial.

A opção do legislador pela composição paritária dos órgãos de revisão de decisões de primeira instância administrativa busca conferir equilíbrio, pluralidade de pontos de vista e dialeticidade para que as decisões revisoras sejam de maior qualidade.

Consequentemente, a decisão final proferida pelo Secretário de Fazenda suprime a colegialidade, causa injustiça e abala a segurança jurídica.

Também não se pode perder de vista os problemas decorrentes dos meios utilizados pela RGF para levar os processos administrativos fiscais à apreciação do Secretário de Fazenda.

Os recursos amparados pelo art. 266, II, do CTE, são exemplos gritantes de violação à isonomia e à paridade de armas. Não há argumento juridicamente sustentável para defender a existência de recurso administrativo privativo da Fazenda, sobretudo quando o principal requisito para seu cabimento é o quorum da decisão recorrida, já que decisões contrárias à lei e à evidência da prova tem a seu favor forte carga de subjetividade.

A avocatória, embora prevista na legislação estadual, não pode ser utilizada indiscriminadamente, sob pena de ser entendida como mero instrumento de capricho ou revanche do mau perdedor.

Não se pode perder de vista que a legislação estadual assegura à Fazenda o direito de ingressar em juízo para discutir a decisão administrativa final que lhe for desfavorável, como afirma o art. 269[3], do CTE – de discutível legalidade.

Mas a RGF, em vez de correr os riscos de um processo judicial – de cabimento duvidoso, é verdade – prefere recorrer ao Chefe na certeza de que ele, constatando a derrota no jogo, irá furar a bola. 


[1] Art. 266. Das decisões do Conselho cabe recurso:

II – para o Secretário de Estado de Fazenda, quando a decisão de Câmara, ou a decisão acordada por menos de ¾ (três quartos) do Conselho Pleno, desfavorável à Fazenda, for contrária à legislação tributária ou à evidência da prova constante no processo, e não couber o recurso previsto no inciso anterior, mantido o princípio do contraditório.

[2] Art. 232. O Secretário de Estado de Economia e Finanças poderá avocar processo administrativo-tributário, para efeito de decisão ou de novo encaminhamento.

[3] Art. 269. As decisões irrecorríveis ou irrecorridas, referidas nos artigos anteriores, poderão ser impugnadas judicialmente tanto pelo Estado como pelo interessado, quer em processo de iniciativa do vencido, quer em defesa, em processo de iniciativa do vencedor.

ARTIGO DA SEMANA –  CBS das entidades beneficentes: inconstitucionalidade da Reforma Tributária

João Luís de Souza Pereira. Advogado. Mestre em Direito. Membro da Comissão de Direito Financeiro e Tributário do IAB. Professor convidado das pós-graduações da FGV/Direito Rio e do IAG/PUC-Rio.

A Emenda Constitucional nº 132/2023, que aprovou a Reforma Tributária com foco na tributação sobre o consumo, contém flagrante inconstitucionalidade no artigo 149-B[1], parágrafo único, introduzido à Constituição.

Este dispositivo teve o nítido propósito de, através de seus quatro incisos, uniformizar as normas do Imposto Sobre Bens e Serviços (IBS) e da Contribuição Sobre Bens e Serviços (CBS), dispondo que a ambos serão aplicadas as mesmas regras em relação a fatos geradores, bases de cálculo, hipóteses de não incidência, sujeitos passivos, imunidades, regimes especiais de tributação, não cumulatividade e creditamento.

Consequentemente, a definição dos fatos geradores do IBS serão os mesmos da CBS, assim como bases de cálculo, contribuintes, responsáveis e etc…

Mas o que chama atenção, do ponto de vista da constitucionalidade, é o parágrafo único do art. 149-B, segundo o qual “Os tributos de que trata o caput observarão as imunidades previstas no art. 150, VI, não se aplicando a ambos os tributos o disposto no art. 195, § 7º”.

Significa dizer que ao IBS e à CBS são aplicáveis as imunidades recíproca, dos templos, dos partidos políticos, suas fundações, entidades sindicais dos trabalhadores, entidades assistenciais e educacionais sem fins lucrativos, a chamada imunidade dos livros e aquela que protege os fonogramas e videogramas musicais.

Mas não o IBS e a CBS não observarão a imunidade do artigo 195, §7º[2], da Constituição, vale dizer, aquela que protege as entidades beneficentes de assistência social.   

Ao afirmar que a CBS não observará a imunidade das entidades beneficentes de assistência social, a EC nº 132/2023 incorre em grave inconstitucionalidade.

As imunidades, inclusive aquela do art. 195, §7º, conforme o Supremo Tribunal Federal já afirmou diversas vezes, são direitos e garantias dos contribuintes[3].

E as emendas constitucionais não podem suprimir direitos e garantias do contribuinte, sob pena de serem inconstitucionais por violação ao artigo 60, § 4°, IV, da CF, como já decidiu o Plenário do STF[4].

Consequentemente, é inconstitucional o art. 149-B, parágrafo único, introduzido pela EC 132/2023, naquilo que afasta a imunidade das entidades beneficentes de assistencial social em relação à CBS.


[1] Art. 149-B. Os tributos previstos nos arts. 156-A e 195, V, observarão as mesmas regras em relação a:     

I – fatos geradores, bases de cálculo, hipóteses de não incidência e sujeitos passivos

II – imunidades;

III – regimes específicos, diferenciados ou favorecidos de tributação;

IV – regras de não cumulatividade e de creditamento.      

Parágrafo único. Os tributos de que trata ocaputobservarão as imunidades previstas no art. 150, VI, não se aplicando a ambos os tributos o disposto no art. 195, § 7º.

[2] Art. 195. A seguridade social será financiada por toda a sociedade, de forma direta e indireta, nos termos da lei, mediante recursos provenientes dos orçamentos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, e das seguintes contribuições sociais:

I – do empregador, da empresa e da entidade a ela equiparada na forma da lei, incidentes sobre:

a) a folha de salários e demais rendimentos do trabalho pagos ou creditados, a qualquer título, à pessoa física que lhe preste serviço, mesmo sem vínculo empregatício;

b) a receita ou o faturamento; 

c) o lucro; 

II – do trabalhador e dos demais segurados da previdência social, podendo ser adotadas alíquotas progressivas de acordo com o valor do salário de contribuição, não incidindo contribuição sobre aposentadoria e pensão concedidas pelo Regime Geral de Previdência Social; 

III – sobre a receita de concursos de prognósticos.

IV – do importador de bens ou serviços do exterior, ou de quem a lei a ele equiparar.         

V – sobre bens e serviços, nos termos de lei complementar.

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§ 7º São isentas de contribuição para a seguridade social as entidades beneficentes de assistência social que atendam às exigências estabelecidas em lei.

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[3] MANDADO DE SEGURANÇA – CONTRIBUIÇÃO PREVIDENCIÁRIA – QUOTA PATRONAL – ENTIDADE DE FINS ASSISTENCIAIS, FILANTRÓPICOS E EDUCACIONAIS – IMUNIDADE ( CF, ART. 195, § 7º)- RECURSO CONHECIDO E PROVIDO . – A Associação Paulista da Igreja Adventista do Sétimo Dia, por qualificar-se como entidade beneficente de assistência social – e por também atender, de modo integral, as exigências estabelecidas em lei – tem direito irrecusável ao benefício extraordinário da imunidade subjetiva relativa às contribuições pertinentes à seguridade social . – A cláusula inscrita no art. 195, § 7º, da Carta Política – não obstante referir-se impropriamente à isenção de contribuição para a seguridade social – , contemplou as entidades beneficentes de assistência social, com o favor constitucional da imunidade tributária, desde que por elas preenchidos os requisitos fixados em lei. A jurisprudência constitucional do Supremo Tribunal Federal já identificou, na cláusula inscrita no art. 195, § 7º, da Constituição da República, a existência de uma típica garantia de imunidade (e não de simples isenção) estabelecida em favor das entidades beneficentes de assistência social. Precedente: RTJ 137/965 . – Tratando-se de imunidade – que decorre, em função de sua natureza mesma, do próprio texto constitucional -, revela-se evidente a absoluta impossibilidade jurídica de a autoridade executiva, mediante deliberação de índole administrativa, restringir a eficácia do preceito inscrito no art. 195, § 7º, da Carta Política, para, em função de exegese que claramente distorce a teleologia da prerrogativa fundamental em Referência, negar, à entidade beneficente de assistência social que satisfaz os requisitos da lei, o benefício que lhe é assegurado no mais elevado plano normativo.

(STF – RMS: 22192 DF, Relator: Min. CELSO DE MELLO, Data de Julgamento: 28/11/1995, Primeira Turma, Data de Publicação: DJ 19-12-1996 PP-51802 EMENT VOL-01855-01 PP-00154)

[4] Direito Constitucional e Tributário. Ação Direta de Inconstitucionalidade de Emenda Constitucional e de Lei Complementar. I.P.M.F. Imposto Provisório sobre a Movimentação ou a Transmissão de Valores e de Créditos e Direitos de Natureza Financeira – I.P.M.F. Artigos 5., par. 2., 60, par. 4., incisos I e IV, 150, incisos III, “b”, e VI, “a”, “b”, “c” e “d”, da Constituição Federal. 1. Uma Emenda Constitucional, emanada, portanto, de Constituinte derivada, incidindo em violação a Constituição originaria, pode ser declarada inconstitucional, pelo Supremo Tribunal Federal, cuja função precípua e de guarda da Constituição (art. 102, I, “a”, da C.F.). 2. A Emenda Constitucional n. 3, de 17.03.1993, que, no art. 2º., autorizou a União a instituir o I.P.M.F., incidiu em vício de inconstitucionalidade, ao dispor, no parágrafo 2º desse dispositivo, que, quanto a tal tributo, não se aplica “o art. 150, III, “b” e VI”, da Constituição, porque, desse modo, violou os seguintes princípios e normas imutáveis (somente eles, não outros): 1. – o princípio da anterioridade, que é garantia individual do contribuinte (art. 5., par. 2., art. 60, par. 4., inciso IV e art. 150, III, “b” da Constituição); 2. – o princípio da imunidade tributária recíproca (que veda a União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios a instituição de impostos sobre o patrimônio, rendas ou serviços uns dos outros) e que é garantia da Federação (art. 60, par. 4., inciso I, e art. 150, VI, “a”, da C.F.); 3. – a norma que, estabelecendo outras imunidades impede a criação de impostos (art. 150, III) sobre: “b”): templos de qualquer culto; “c”): patrimônio, renda ou serviços dos partidos políticos, inclusive suas fundações, das entidades sindicais dos trabalhadores, das instituições de educação e de assistência social, sem fins lucrativos, atendidos os requisitos da lei; e “d”): livros, jornais, periódicos e o papel destinado à sua impressão; 3. Em consequência, é inconstitucional, também, a Lei Complementar n. 77, de 13.07.1993, sem redução de textos, nos pontos em que determinou a incidência do tributo no mesmo ano (art. 28) e deixou de reconhecer as imunidades previstas no art. 150, VI, “a”, “b”, “c” e “d” da C.F. (arts. 3., 4. e 8. do mesmo diploma, L.C. n. 77/93). 4. Ação Direta de Inconstitucionalidade julgada procedente, em parte, para tais fins, por maioria, nos termos do voto do Relator, mantida, com relação a todos os contribuintes, em caráter definitivo, a medida cautelar, que suspendera a cobrança do tributo no ano de 1993.

(ADI 939, Relator(a): SYDNEY SANCHES, Tribunal Pleno, julgado em 15-12-1993, DJ 18-03-1994 PP-05165  EMENT VOL-01737-02 PP-00160 RTJ  VOL-00151-03 PP-00755)

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