O sistema tributário melhorou após 34 anos da Constituição de 1988?

Dois assuntos se destacarão na semana que hoje se inicia: o resultado do primeiro turno das eleições, que infelizmente não será analisado neste texto, pois escrito antes do resultado, e a comemoração, no dia 5 de outubro, dos 34 anos de nossa Constituição, que comento sob o prisma tributário.

Na versão original do capítulo tributário de nossa Constituição, a União tinha competência para arrecadar impostos sobre (1) importação, (2) exportação, (3) renda, (4) IPI, (5) IOF, (6) ITR e (7) Imposto sobre Grandes Fortunas (IGF). Também tinha competência para instituir taxas, contribuições de melhoria e empréstimos compulsórios, além de contribuições: sociais, de intervenção e no interesse de categorias profissionais.

Após 34 anos, constata-se que no âmbito da competência para a cobrança dos impostos pouco foi alterado, exceto: (a) a possibilidade de cobrança do ITR, que passou a ser permitia aos municípios (artigo 153, §4º, CF – EC 42/03), e (b) o IGF, que jamais foi implementado, a despeito de incontáveis projetos de lei em trâmite pelo Congresso.

Ainda no âmbito da União, não há nenhum registro relevante sobre contribuições de melhoria durante esse período, bem como sobre taxas, embora essas tenham sido cobradas em situações específicas, sem grande vulto. Houve uma experiência horrível durante o confisco do Plano Collor, que vários autores caracterizaram como empréstimo compulsório.

O problema na esfera federal ocorreu com as contribuições, que se multiplicaram e se transformaram em uma fonte de arrecadação originalmente impensável. Foram estabelecidas Cides (Contribuições de Intervenção no Domínio Econômico), com múltiplas incidências setoriais; e as contribuições sociais foram amplamente disseminadas, destacando-se o vetusto Pis, ao qual foi aliada a Cofins (sucessora do anterior Finsocial). Originalmente tinham alíquotas baixas, que foram paulatinamente aumentadas, até que foram criadas as incidências não-cumulativas, com alíquotas escorchantes e sem nenhuma organicidade, que acabaram por dinamitar o sistema, invadindo o campo de tributação sobre o consumo, reservado aos estados. O foco era arrecadar sem compartilhar com estados e municípios, quebrando a estrutura de federalismo cooperativo inicialmente organizada — projeto tristemente exitoso, a despeito de ínfima parcela de uma das Cides ter passado a ser destinada aos estados e ao DF (artigo 160, III, CF — EC 44/04).

Outra contribuição social federal que foi muito impactada foi a previdenciária referente aos servidores públicos, que originalmente incidiria apenas sobre os servidores que estivessem na ativa e passou a incidir também sobre os proventos dos aposentados e pensionistas (artigo 149, §1º, CF — EC 41/03), o que alcançou todos os entes federados.

No que se refere à competência dos estados, a Constituição originalmente previa para os impostos: (1) ITCMD, (2) ICMS e (3) IPVA, além de (4) um esdrúxulo Adicional do IR federal. Previa também a possibilidade de cobrar taxas e contribuições de melhoria, além de contribuições previdenciárias de seus servidores.

No âmbito dos impostos estaduais, o primeiro a ser limado foi o inadequado Adicional do IR (EC 3/93), que não deixou saudades. Em compensação, o ICMS passou a ser objeto de diferentes movimentos aparentemente contraditórios. Por um lado, surgiu uma guerra fiscal com arrojada renúncia de receitas de ICMS, visando a atração de investimentos, o que gerou incontáveis ADIs, que passaram por diversas fases, desde a singela concessão de liminar seguida de revogação da norma atacada e a consequente perda de objeto da ação, até a manutenção da ADI, mesmo sendo revogada a norma. Ao fim e ao cabo, a guerra fiscal foi amplamente reduzida em razão da LC 160/17. Por outro lado, como contrapartida à renúncia fiscal, foi fortemente aumentado o ICMS sobre bens essenciais, como energia elétrica, combustíveis e comunicações, violando o princípio da essencialidade, nos quais a fiscalização ocorre com muito mais facilidade e a possibilidade de sonegação é baixíssima. Isso foi encerrado pelo STF em 2022, através do RE 714.139 (Tema 745 da Repercussão Geral), concedendo prazo até 2024 para que os estados reorganizassem suas finanças, o que foi literalmente atropelado pela LC 194/22, ao determinar que tal redução ocorresse de imediato, dinamitando as finanças estaduais e, por decorrência do desarranjo federativo-fiscal ocasionado, estiolando as finanças municipais. A consequência, ainda não sentida, é que a fiscalização estadual e municipal sobre as empresas será intensificada a partir do próximo ano.

Deve ainda ser destacado sobre o ICMS que a necessária desoneração das exportações permanece inconclusa, pois houve a vedação à cobrança desse imposto na exportação, mas não foi assegurada “a manutenção e o aproveitamento do montante do imposto cobrado nas operações e prestações anteriores (artigo 155, §2º, X, “a”, CF – EC 42/03), o que deve ser deliberado pelo STF, à míngua de deliberação dos estados.

No que se refere ao IPVA, o ponto de destaque é a decisão do STF (RE 134.509 e RE 255.111, ambos de 2002), desconsiderando a possibilidade de sua incidência sobre aeronaves e embarcações, o que merece ser reanalisado pela corte. 

Outro aspecto da tributação estadual a ser destacado é o uso abusivo das taxas, várias delas declaradas inconstitucionais, porém outras ultrapassando o crivo do STF, como ocorreu nas taxas minerárias

No âmbito dos municípios, a Constituição, em sua versão original, previa que eles poderiam cobrar os seguintes impostos: (1) IPTU, (2) ITBI, (3) IVVC — imposto sobre a venda a varejo de combustíveis líquidos e gasosos, exceto diesel, e (4) ISS), além de taxas e contribuições de melhoria.

O primeiro a ser cortado foi o IVVC (EC 3/93), o que revela o desacerto da tributação sobre os combustíveis na versão original da Constituição, pois o sistema de impostos únicos, previsto na Constituição anterior (1967/1969) deveria ter sido mantido, evitando assim diversos problemas também com o ICMS.

O destaque foi a criação de outra tributação esdrúxula, a CIP — Contribuição para o Custeio de Iluminação Pública (artigo 149-A, CF – EC 39/02), cujo enquadramento teórico permanece sendo objeto de acirradas discussões jurisprudenciais e acadêmicas. Isso trouxe consequências positivas por um lado, pois possibilitou que as cidades se tornassem mais iluminadas; porém com um aspecto negativo, uma vez que gerou empoçamento de recursos, uma vez que o montante arrecadado não pode ser usado em outra finalidade.

Em síntese: após 34 anos de vigência do sistema constitucional tributário, algumas alterações foram efetuadas, mas ele permanece íntegro e funcionando. Existem muitos problemas, sem dúvidas, mas não exatamente no âmbito constitucional, pois este sistema nos permitiu ser a sétima economia mundial em 2011, aspirando chegar à sexta posição; hoje estamos em 13º lugar

Essa constatação aponta para dois aspectos: (1) o grande problema não está no âmbito constitucional, mas no infraconstitucional, seja no legal, seja no infralegal. Estes âmbitos devem ser aperfeiçoados, com respeito à segurança jurídica dos envolvidos (contribuintes e entes federados). E (2) as atuais reformas constitucionais em debate visam criar outro sistema tributário, o que não é ruim em si, embora as propostas em curso sejam péssimas — para seu aproveitamento será necessária uma enorme cirurgia nos textos que tramitam no Congresso (PEC 45 e PEC 110).

Embora não conheça os resultados das eleições no momento em que este texto está sendo escrito, grande parte dos próximos governos já foram eleitos no domingo, 2/10/22. Temos nova composição na Câmara dos Deputados, em um terço do Senado e nas Assembleias Legislativas, e grande número de chefes do Poder Executivo foram eleitos no primeiro turno de votação. Esse grupo de pessoas, incumbentes da administração pública brasileira, terão muito a discutir e a fazer, inclusive no âmbito tributário. Espero que também sejam capazes de ouvir a sociedade na urgente tarefa de (re)organizar o Brasil, que é de todos nós.

Fernando Facury Scaff é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP), advogado e sócio do escritório Silveira, Athias, Soriano de Mello, Bentes, Lobato & Scaff Advogados.

Revista Consultor Jurídico, 3 de outubro de 2022, 8h00

Publicado acórdão do STJ afirmando que o proprietário de imóvel gravado com usufruto é contribuinte do IPTU


15 de agosto de 2022 | AREsp 1.566.893/SP | 1ª Turma do STJ
A Turma, por unanimidade, entendeu que, no caso de imóvel gravado com usufruto, tanto o proprietário, que remanesce com o domínio indireto, quanto o usufrutuário, que exerce a posse direta e detém o domínio útil, são contribuintes do IPTU, podendo a lei municipal disciplinar a sujeição passiva de qualquer um deles ou, ainda, de ambos. À luz do entendimento jurisprudencial fixado no Tema 122/STJ – segundo qual o art. 34 do CTN elenca como contribuintes do IPTU tanto o proprietário quanto o detentor de domínio útil e o possuidor da coisa, este desde que tenha animus domini, cabendo à lei local de regência eleger sobre quem irá recair a sujeição passiva do imposto no âmbito daquela municipalidade –, os Ministros cassaram o acórdão recorrido, com a determinação de retorno dos autos ao Tribunal de origem, para que, em novo julgamento da apelação, seja verificada a sujeição passiva à luz da lei municipal. Por fim, os Ministros destacaram que a definição de contribuinte é matéria reservada à lei complementar (art. 146, III, “a”, da CF/1988) e, por isso, o art. 1.403, II, do CC/2002 não pode ser considerado como norma excludente de sujeição passiva para fins tributários.

Fonte: Sacha Calmon – Misabel Derzi Consultores e Advogados.

TJ-SP anula lei de isenção tributária em troca de adoção de animais abandonados

A concessão de qualquer isenção só pode se dar mediante lei específica, sendo vedado ao Poder Legislativo conferir ao chefe do Executivo a prerrogativa extraordinária de dispor, normativamente, sobre tais categorias temáticas.

Assim entendeu o Órgão Especial do Tribunal de Justiça de São Paulo ao anular uma lei de Registro, de iniciativa parlamentar, que autorizava a prefeitura a conceder isenção de tributos municipais, como IPTU e ISS, a pessoas físicas ou jurídicas que adotassem animais.

Ao propor a ADI, a Prefeitura de Registro alegou afronta aos princípios da separação dos poderes, da legalidade tributária estrita, da razoabilidade, proporcionalidade e igualdade, além de atentar contra a autonomia financeira do município. Por unanimidade, o colegiado julgou a ação procedente.

Conforme o relator, desembargador Décio Notarangeli, trata-se de lei específica que define o beneficiário e os requisitos para a concessão e manutenção da isenção de tributos. Ficaria, porém, a critério do Executivo a definição de quantos e quais tributos seriam objeto da isenção e a extensão da renúncia fiscal, o que deveria ser feito por decreto em até 60 dias.

“Está claro, pois, que a referida lei padece de inconstitucionalidade pela abdicação, pelo Poder Legislativo, de sua competência institucional em favor do Poder Executivo, o que atenta contra a separação de poderes e a reserva legal estrita em matéria tributária”, explicou o magistrado, destacando que a isenção tributária não poderia ser concedida por meio de decreto do prefeito.

Para Notarangeli, sem a completa definição dos elementos da isenção fiscal, não seria possível nem afirmar se o benefício era, ou não, desproporcional: “Como é fácil de perceber, um desconto de 3% no IPTU, costumeiramente concedido como estímulo para a quitação do tributo à vista em uma única parcela, não se equipara a isenção de 75% ao contribuinte adotante”.

O relator também afirmou que a lei impôs diretrizes ao Poder Executivo e a seus órgãos, como o centro de controle de zoonoses e os canis públicos, em ofensa à competência de auto-organização administrativa do município. Além disso, ele disse que a norma não foi antecedida de estimativa de impacto orçamentário e financeiro, como determina o artigo 113 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias.

“Não consta que o projeto de renúncia fiscal tenha sido acompanhado de estimativa de impacto orçamentário, apesar de a questão ter sido suscitada antes da votação que derrubou o veto integral do prefeito. Nada obstante louvável a iniciativa parlamentar de incentivar a adoção responsável de animais abandonados, a Lei 2.000/2021, do município de Registro, padece de vício insanável de inconstitucionalidade”, concluiu.

Clique aqui para ler o acórdão
2275813-83.2021.8.26.0000

Fonte: Conjur – 23/08/2022

×