ARTIGO DA SEMANA – Enunciados da I Jornada de Direito Tributário do Conselho da Justiça Federal

Em outubro de 2022, foi realizada a I Jornada de Direito Tributário, por meio do Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal, em parceria com o Superior Tribunal de Justiça e a Associação dos Juízes Federais do Brasil.

Por ocasião da conclusão dos trabalhos, foram aprovados 12 (doze) Enunciados agrupados em quatro temas previamente definidos: Sistema Tributário Nacional, Normas Gerais de Direito Tributário, Espécies Tributárias e Processo Tributário.

Os Enunciados não têm caráter vinculante, mas seguramente são balizadores das decisões proferidas pelos magistrados federais em matéria tributária, daí a importância de conhecê-los e estudá-los. 

SISTEMA TRIBUTÁRIO NACIONAL 

ENUNCIADO 1 – A ausência de finalidade lucrativa (art. 150, inciso VI, “c”, CF/1988), para fins de gozo da imunidade tributária das instituições de educação ou de assistência social, não se confunde com gratuidade ou com a proibição de auferir lucros, desde que haja a reversão dos seus resultados, rendas e patrimônio, à finalidade essencial, vedada a sua distribuição, a qualquer título. 

Justificativa: A ausência de finalidade lucrativa é exigência da CF/88, para que as instituições de educação e de assistência social sejam imunes aos impostos. Contudo, falta de finalidade lucrativa não implica em gratuidade e em que tais entidades não possam auferir resultados positivos. A necessidade de gratuidade, não é exigida pela Lei Maior; não se exige beneficência, apenas falta de finalidade lucrativa. Conforme Regina Helena Costa1, a imunidade pressupõe a capacidade econômica, pois despindo-se os fatos de conteúdo econômico, seriam os mesmos irrelevantes para o direito tributário, ou se estaria diante de mera não incidência. E segundo Roque Antonio Carrazza2, a gratuidade não é requisito para gozo da imunidade pois, se a gratuidade fosse conditio sine qua non ao desfrute da imunidade, praticamente estaria esvaziada em relação às escolas, a norma contida nesta alínea “c” Cf. RE 58.691/SP e 93.463/RJ. Quanto à possibilidade de auferimento de resultados positivos, a há proibição de se obter sobras, superávits, ou lucros em sentido amplo; o que a CF/88 exige é que esses resultados positivos não sejam distribuídos, devendo os mesmos serem aplicados no desenvolvimento de suas atividades.3 

[1] COSTA, Regina Helena. Aspectos da Imunidade Tributária. Tese (Doutorado em Direito) Faculdade de Direito, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP. São Paulo, 2000. 

[2] CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de Direito Constitucional Tributário. São Paulo: Malheiros Editores, 31a ed., 2017, p. 929/930. 

[3] Cf. Carrazza, p. 914/916 e BARRETO, Aires F. C. Dir. Trib. Mun. Saraiva, 75-78.

ENUNCIADO 2 – O princípio da capacidade contributiva não está limitado aos impostos. 

Justificativa: O princípio da capacidade contributiva encontra fundamento imediato no princípio da isonomia, além de outros princípios constitucionais, como o direito de propriedade, o princípio da solidariedade, entre outros. Por isso, mesmo que não estivesse positivado na CF, o dever de observância desse princípio vincularia o legislador tanto no que se refere à delimitação da hipótese de incidência tributária, quanto no que se refere à eleição dos elementos de graduação do tributo. Sucede que o dispositivo constitucional que consagrou expressamente o princípio – art. 145, § 1, da CF – apresenta redação que dá ensejo a interpretações limitadoras do alcance da capacidade contributiva, em três aspectos fundamentais: (a) o dispositivo apenas faz alusão à capacidade contributiva em sentido relativo (graduação do tributo), deixando escapar a faceta objetiva do princípio (eleição, para a hipótese de incidência tributária, de materialidades que expressem relevância econômica); (b) a expressão “sempre que possível” dá a entender que se trata de uma faculdade do legislador; (c) a referência a impostos conduz à compreensão de que o princípio da capacidade contributiva não se aplica às demais espécies tributárias. Explicitar que a capacidade contributiva não decorre exclusivamente do art. 145, § 1o, da CF, parece importante para afastar tais compreensões equivocadas, além de refletir entendimento dominante na doutrina (cf., entre outros: P. B. Carvalho; A. P. Velloso; B.T. Grupenmaceher) e uma tendência interpretativa dos tribunais (cf.: STF, RE 406.955; RE 562.045). 

ENUNCIADO 3 – A arbitragem é meio legítimo de solução de conflitos entre Fisco e contribuintes, desde que venha a ser legalmente instituída. 

Justificativa: O enunciado objetiva assentar a possibilidade de instituição da arbitragem como meio para a solução de controvérsias em matéria tributária, afastando os óbices da indisponibilidade do crédito tributário e, igualmente, do interesse público. É sabido que, no que concerne à solução das contendas no âmbito do direito público, a impossibilidade do emprego do método arbitral já foi superada, seja pela jurisprudência (STF, AI 52181), seja por força de uma positivação legal genérica (art. 1o, §1o, da Lei n. 9.307/1996, com a redação da Lei n. 13.129/2015), relacionada a direitos disponíveis, além de inúmeros permissivos legais específicos. Especialmente quanto à indisponibilidade do crédito tributário, a qual constitui uma emanação da própria indisponibilidade do interesse público, é de se notar que traduz a impossibilidade de sua disposição ao alvedrio do administrador. Não há, por óbvio, impedimento a que tal ocorra se o administrador estiver assim autorizado pelo legislador, o qual se encontra habilitado, constitucionalmente, para tanto. Nesse sentido, apropriada a visão de Pedro Gonçalves (Administração Pública e arbitragem – especial, o princípio legal da irrecorribilidade de sentenças arbitrais. InEstudos em homenagem a António Barbosa de Melo. Coimbra: Almedina, 2013, p. 784. Org.: CORREIA, Fernando Alves; SILVA, João Calvão da; ANDRADE, José Carlos Vieira de Andrade; CANOTILHO, José Joaquim Gomes; COSTA, José Manuel m. Cardoso). O enunciado, portanto, expressa a mensagem de que compete ao legislador, flexibilizando a indicada indisponibilidade, autorizar a Administração Tributária a submeter os seus litígios à arbitragem. Não se enveredou – advirta-se – aqui pela discussão sobre qual a natureza da espécie normativa exigida para tal fim. 

NORMAS GERAIS DE DIREITO TRIBUTÁRIO 

ENUNCIADO 4 – A responsabilidade tributária por sucessão empresarial prevista no art. 132 do Código Tributário Nacional (CTN) se aplica aos casos de cisão previstos no art. 229 da Lei n. 6.404/1976 (Lei das S.A). 

Justificativa: O art. 132 do CTN, que trata das hipóteses de responsabilidade tributária por sucessão empresarial, não fez menção explícita à cisão, pois esse conceito apenas foi normatizado pela Lei n. 6.404/1976 (Lei das S.A.), que entrou em vigor posteriormente ao CTN. No entanto, o entendimento pacífico da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ) é que esse dispositivo determina a responsabilidade tributária solidária entre as empresas cindendas e a sociedade que foi cindida, considerando essa operação como uma espécie de transformação (REsp n. 1.682.792/SP e REsp n. 852.972/PR). A Lei das S.A. estabelece que a cisão pode ser total ou parcial (art. 229) e, em regra, ela implicará a solidariedade pelas obrigações anteriores entre as sociedades que absorverem o patrimônio da companhia cindida e a sociedade original. Ocorrida a cisão parcial, é possível estipular as obrigações que serão transferidas às sociedades cindendas; na hipótese de oposição dos credores a essa estipulação, não haverá solidariedade entre as companhias, como prevê o art. 233, parágrafo único, da Lei n. 6.404/1976. Nesse sentido, a cisão é uma operação societária com alta discricionariedade por parte dos sócios em determinar qual patrimônio é vertido à cindenda e qual permanece com a cindida. Todavia, o art. 123 do CTN veda que convenção particular possa determinar a responsabilização tributária, considerando que eventuais estipulações previstas, conforme o parágrafo único do art. 233 da Lei n. 6.404/1976, não podem ser opostas ao Fisco, sob pena de violação dos princípios da indisponibilidade e da supremacia do interesse público. 

ENUNCIADO 5 – Informações e dados relativos a incentivos fiscais, concedidos a pessoas jurídicas ou por elas fruídos, devem ser fornecidos a qualquer interessado (transparência passiva), nos termos da Lei de Acesso à Informação, além de ser divulgados no Portal da Transparência do ente federado (transparência ativa). 

Justificativa: Segundo a Receita Federal do Brasil, os incentivos fiscais destinados a promover a equalização das rendas entre diferentes regiões ou a incentivar determinado setor da economia classificam-se como “gastos tributários”, isto é, constituem “gastos indiretos do governo realizados por intermédio do sistema tributário, visando a atender objetivos econômicos e sociais e constituem-se em uma exceção ao sistema tributário de referência, reduzindo a arrecadação potencial e, consequentemente, aumentando a disponibilidade econômica do contribuinte”. Assim, trata-se de verdadeira política pública, que se utiliza não do gasto direto, mas sim do indireto, por meio da renúncia de receitas públicas, para atingir objetivos econômicos e sociais, acepção que se aplica inteiramente aos incentivos fiscais de Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS). Nesse contexto, devem ser públicas as informações sobre as pessoas jurídicas objeto dessa desoneração tributária, os valores a elas concedidos e por elas fruídos em determinado período, eventuais condições a que estejam sujeitas e outras informações pertinentes, porquanto, afinal, o Estado, em sentido amplo, é que está financiando essas pessoas jurídicas beneficiadas às custas dos demais membros da sociedade. Por isso, trata-se de informações e dados revestidos de inegável interesse público, que devem ser prestados pelas Administrações Tributárias (CRFB, art. 5o, inciso XXXIII), razão pela qual não deve ter lugar a alegação de sigilo fiscal nesse tocante (CTN, art. 198, caput); afinal, quem recebe incentivos do Poder Público deve estar sempre aberto aos mais amplos controles, inclusive social. 

ENUNCIADO 6 – A responsabilidade tributária dos terceiros elencados no rol do art. 134 do Código Tributário Nacional é subsidiária, sendo assegurado o benefício de ordem. 

Justificativa: Ainda que o caput do art. 134 do CTN preveja que “respondem solidariamente”, o instituto da solidariedade, pela definição do parágrafo único do art. 124 do próprio CTN, é incompatível com preceito de que tal responsabilidade se aplica na “impossibilidade de exigência do cumprimento da obrigação principal pelo contribuinte”, contido no mesmo dispositivo. Trata-se, portanto, de “flagrante ausência de tecnicidade legislativa” (STJ, 1a Seção, EREsp 446.955/SC, Rel. Min. Luiz Fux, julg. 9/4/2008). A Primeira Seção do STJ concluiu, na ementa do mesmo julgado, que é “cediço que o instituto da solidariedade não se coaduna com o benefício de ordem ou de excussão. Em verdade, o aludido preceito normativo cuida de responsabilidade subsidiária”. Renato Lopes Becho defende que “é possível sustentar o caráter subsidiário da responsabilidade de terceiros. Talvez o legislador, por equívoco, tenha estipulado uma aparente solidariedade apenas no intuito de manter o contribuinte no polo passivo da ação de cobrança do crédito tributário” (Desdobramentos das decisões sobre responsabilidade tributária de terceiros no STF. RDDT, n. 204, p. 45-57, set. 2012). Kiyoshi Harada tem o mesmo entendimento: “na verdade, o texto do dispositivo sob exame refere-se à responsabilidade subsidiária, pois a solidária não comporta benefício de ordem” (ITBI: doutrina e prática. São Paulo: Atlas, 2010, p. 159). 

ESPÉCIES TRIBUTÁRIAS 

ENUNCIADO 7 – A empresa vendedora, cuja comprovada boa-fé evidencie a regularidade da operação interestadual realizada com o adquirente, não pode ser objetivamente responsabilizada pelo pagamento do diferencial de alíquota de ICMS em razão de a mercadoria não ter chegado ao destino final. 

Justificativa: Trata-se de entendimento firmado pela 1a Seção, no EREsp n. 1.657.359 (Rel. Min. Gurgel de Faria) em que se verificou a divergência entre acórdãos da 1a e da 2a Turma, no qual o Tribunal privilegiou a justiça material, uma vez que, há anos, inúmeros contribuintes têm sido autuados para pagamento de tributo cujo fato gerador não se perfectibilizou por dolo ou culpa de terceiros. O paradigma segue a linha adotada pelo STJ, a fim de proteger o contribuinte que age de boa-fé (por exemplo, Súmula n. 509: “É lícito ao comerciante de boa-fé aproveitar os créditos de ICMS decorrentes de nota fiscal posteriormente declarada inidônea, quando demonstrada a veracidade da compra e venda”). 

ENUNCIADO 8 – No ICMS-ST progressivo, o contribuinte-substituído também tem legitimidade ativa ad causam para pleitear a declaração de inexistência da relação jurídica tributária. 

Justificativa: O enunciado proposto sistematiza o comando do art. 10 da Lei Complementar n. 87/1996, o posicionamento do Superior Tribunal de Justiça e o majoritário entendimento doutrinário sobre o tema. 

PROCESSO TRIBUTÁRIO 

ENUNCIADO 9 – É cabível negócio jurídico processual em litígios que tenham por objeto créditos tributários não inscritos em Dívida Ativa, quer no âmbito do processo administrativo fiscal, aplicando- se, por analogia, o art. 190 do CPC, quer no âmbito de processo judicial. 

Justificativa: O cabimento de negócio jurídico processual em matéria tributária é um fato consumado, reconhecido pela Procuradoria da Fazenda Nacional, conforme portarias que regulamentam o tema e casos concretos de acordos já celebrados, mas tais normativos não preveem este tipo de pacto em processos administrativos ou em processos judiciais, envolvendo débitos não inscritos em Dívida Ativa. Entretanto, o negócio jurídico processual não vincula órgãos, mas, sim, as pessoas jurídicas em lide, sendo que tanto a Procuradoria quanto a Receita Federal são órgãos da União, razão pela qual poder-se-ia afirmar a presença da titular dos direitos e obrigações processuais em tela. Ora, se tomado como premissa que o processo judicial tributário admite composição, nos termos do art. 190 do CPC, não há nada que justifique isso ser admissível para processos envolvendo débitos inscritos, mas não para os que envolvam os não-inscritos e, por consequência, também nada obsta que se aplique ao processo administrativo fiscal, tendo por fim maior celeridade e segurança jurídica. 

ENUNCIADO 10 – É possível a antecipação da garantia de futura Execução Fiscal por meio do ajuizamento de tutela de urgência antecedente, com base nos dispositivos gerais dos arts. 300 a 302 do CPC, sendo desnecessário o aditamento para formulação de pedido principal. 

Justificativa: Após a confirmação da existência do débito tributário no Processo Administrativo, cessa a suspensão da exigibilidade do crédito. É notória a demora na inscrição do referido débito em dívida ativa e no ajuizamento da Execução Fiscal. Assim, na vigência do CPC/1973 os contribuintes passaram a ajuizar Ações Cautelares Inominadas, com o único objetivo de – oferecendo apólice de seguro garantia, carta de fiança bancária ou bens à penhora – antecipar os efeitos que seriam obtidos com a aceitação de garantia em execução fiscal pendente de ajuizamento pelas Fazendas Públicas. Sendo assim, possível a expedição de Certidões Positivas com o efeito de negativas de Quitação de Tributos. Tal entendimento era respaldado pelo julgamento do repetitivo proferido nos autos do RESP n. 1.156.668/DF: “o contribuinte pode, após o vencimento da sua obrigação e antes da execução, garantir o juízo de forma antecipada, para o fim de obter certidão positiva com efeito de negativa”. Com o atual Código de Processo Civil as ações cautelares autônomas deixaram de existir e criou-se um grande problema, pois a antecipação de garantia, por vezes, é indeferida (vide a respeito TJSP; Apelação 1010617-47.2017.8.26.0053; Relator: Ferraz de Arruda; 13a Câmara de Direito Público). Outrossim, há situações nas quais se exige o aditamento, para a formulação de pedido principal, quando na verdade a existência ou não do débito tributário não será discutida nessa ação, mas sim nos autos da Execução Fiscal e/ou nos respectivos Embargos à Execução Fiscal. Assim, mostra-se de suma importância que se possibilite a antecipação da garantia nesses casos. 

ENUNCIADO 11 – A distribuição de ação de produção antecipada de provas não importa renúncia ao poder de recorrer na esfera administrativa. 

Justificativa: O parágrafo único do art. 38 da Lei Federal n. 6.830/1980 prevê que a distribuição de ação judicial (mandado de segurança, ação anulatória etc.), visando a desconstituição do crédito tributário, implica em renúncia ao poder de recorrer na esfera administrativa. No entanto, a distribuição de ação de produção antecipada de provas não acarreta a renúncia prevista neste dispositivo. Após advento do Novo Código de Processo Civil (Lei n. 13.105/2015), a produção antecipada de provas deixou de ser mero procedimento cautelar e ganhou autonomia. Assim, considerando as três hipóteses previstas no art. 381 do CPC, poderá ser distribuída ação cujo objeto é simplesmente a produção de uma prova. A prova é produzida sob o crivo do contraditório e da ampla defesa, com a participação da parte adversa. Após produção da prova, o juízo responsável homologa a prova, mas sem realizar qualquer juízo de mérito. Como não há juízo de mérito na ação de produção antecipada de provas, é válido que o contribuinte distribua esta ação sem que isto acarrete renúncia da fase administrativa. A fase administrativa de um auto de infração pode levar anos para se encerrar. Então, em alguns casos, não é possível aguardar até a fase probatória de um processo de conhecimento para se produzir a prova necessária para defesa do contribuinte, sob pena de perecimento de documentos, circunstâncias, fatos, dentre outros. Por isso, na forma do inciso I, do art. 381, do CPC, é defeso ao contribuinte distribuir ação de produção antecipada de provas para produzir as provas necessárias antes de seu perecimento. E, por vezes, o contribuinte necessita produzir uma prova para sua defesa na própria fase administrativa. Pode-se necessitar de demarcar a área exata de um imóvel para defesa de autuação de ITR. Pode-se necessitar de uma perícia química de um produto para se defender de uma autuação de classificação fiscal. Pode-se necessitar de uma perícia contábil para análise dos demonstrativos para se defender de uma autuação de IRPJ. Assim, na forma dos incisos II e III, do art. 381, do CPC, é defeso ao contribuinte distribuir ação de produção antecipada de provas para produzir as provas necessárias para viabilizar a autocomposição (levando a própria autoridade administrativa a reconhecer o erro de eventual autuação) ou mesmo evitar o ajuizamento de futura ação judicial sobre o crédito tributário (considerando que a prova produzida antecipadamente pode levar o julgador administrativo a anular o auto de infração). Desta forma, mostra-se relevante a pacificação de que a distribuição desta ação não implicará na renúncia da fase administrativa. 

ENUNCIADO 12 – A exigência de garantia integral do crédito executado para o recebimento dos embargos à execução fiscal deve ser dispensada quando o embargante comprovar, de maneira suficiente, não possuir patrimônio para garantia do crédito. 

Justificativa: Os artigos 8o e 9a Lei de Execução Fiscal (LEF Lei n. 6.830/1980) informam que o executado tem o prazo de 5 dias para pagar ou garantir a execução. Garantida a execução, tem o prazo de 30 dias para oferecer embargos à execução, que não serão admitidos antes da garantia, conforme art. 16 da LEF. Os embargos à execução constituem a única possibilidade de defesa em execução fiscal, ressalvada a matéria de ordem pública. Assim, o executado que não possui patrimônio suficiente para garantir o débito, não exerce os direitos de acesso ao Judiciário, contraditório e ampla defesa, garantidos constitucionalmente (art. 5o, XXXV e LV). A Teoria do Estatuto do Patrimônio Mínimo, do Min. Luiz Edson Fachin, sustenta o resguardo de um patrimônio mínimo para preservar a dignidade da pessoa humana. Necessário mitigar a obrigatoriedade de garantia integral do crédito para o recebimento dos embargos à execução fiscal quando o devedor comprovar que não possui patrimônio para a garantia do crédito. O STJ já se posicionou: (…)resguarda a todos os cidadãos o direito de acesso ao Poder Judiciário, ao contraditório e à ampla defesa (art. 5o, CF/1988), tendo esta Corte Superior, com base em tais princípios constitucionais, mitigado a obrigatoriedade de garantia integral do crédito executado para o recebimento dos embargos à execução fiscal (…) deve ser afastada a exigência da garantia do juízo para a oposição de embargos à execução fiscal, caso comprovado inequivocadamente que o devedor não possui patrimônio para garantia do crédito (REsp n. 1.487.772/SE, Rel. Min. Gurgel de Faria, DJe de 12/6/2019). 

A restrição de acesso ao Carf é inconstitucional

Sob o discurso de que o Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) é um órgão altamente especializado, que não pode ficar a perder tempo com questões banais, aliado ao argumento de que há um elevado “estoque” de dívida a ser cobrado, há poucos dias editou-se a Medida Provisória 1.160, que levou a efeito algumas modificações no processo administrativo tributário federal. É preciso atenção quando a leitora for procurá-la, pois há outra MP 1.160, de mesmo número mas editada em 1995, que trata de outra coisa. Esta que comento é de 12 de janeiro de 2023.

Neste artigo será abordada apenas uma das modificações, que pretende restringir a competência do Carf às questões “mais complexas”, assim entendidas aquelas que envolvem quantias superiores a 1.000 salários mínimos. Questões que discutam valores inferiores a isso serão equacionadas em “instância única”.

Muitos estão a comentar a referida medida provisória, dando ênfase apenas ao retorno do “voto de qualidade”, por ela também levado a efeito. Mas é preciso atenção ao que decorre da seguinte disposição, que, pela técnica de remissões que faz, talvez não seja suficientemente clara e esteja passando despercebida:

“Art. 4º A Lei nº 13.988, de 14 de abril de 2020, passa a vigorar com as seguintes alterações:

Art. 27-B. Aplica-se o disposto no art. 23 ao contencioso administrativo fiscal de baixa complexidade, assim compreendido aquele cujo lançamento fiscal ou controvérsia não supere mil salários mínimos.”(NR)

Para entender o que isso significa é preciso conferir o artigo 23 da Lei 13.988/2020, que passa agora a ser aplicado a todo “contencioso cuja controvérsia não supere mil salários mínimos”. Seu parágrafo único dispõe:

“Parágrafo único. No contencioso administrativo de pequeno valor, observados o contraditório, a ampla defesa e a vinculação aos entendimentos do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais, o julgamento será realizado em última instância por órgão colegiado da Delegacia da Receita Federal do Brasil de Julgamento da Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil, aplicado o disposto no Decreto nº 70.235, de 6 de março de 1972, apenas subsidiariamente.”

Isso significa, por outras palavras, a pretensão de fazer com que se submetam integralmente aos termos do Decreto 70.235/72, incluindo o direito de recorrer ao Carf e, eventualmente, à Câmara Superior de Recursos Fiscais (CSRF), apenas os processos administrativos que girem em torno de quantias superiores ao citado valor de alçada, que hoje ultrapassa um milhão de reais. Todas as demais questões tributárias, que correspondem à imensa maioria, serão resolvidas no âmbito das Delegacias de Julgamento.

Existem, contudo, incontáveis problemas nessa medida.

O primeiro deles, mais evidente, é a violação ao disposto na Súmula Vinculante 21, do Supremo Tribunal Federal, segundo a qual “é inconstitucional a exigência de depósito ou arrolamento prévios de dinheiro ou bens para admissibilidade de recurso administrativo”.

Entre os fundamentos usados pelo STF para julgar as questões que culminaram com a edição da Súmula, estavam a necessidade de respeito ao devido processo legal substantivo, ao direito de defesa, e direito de interposição de recursos, malferidos quando se exige um depósito de 30% do valor da exigência como condição para admissibilidade do recurso. Vista como um embaraço, ou uma dificuldade, de acesso ao Carf, a exigência de garantias recursais foi declarada inconstitucional. Nesse contexto, a fortiori,uma vedação absoluta (para quem discute menos de mil salários mínimos) afigura-se, se é que isso é possível, ainda mais inconstitucional.

Só pelo valor envolvido, notadamente quando o parâmetro supera um milhão de reais, não se pode dizer que uma causa é mais, ou menos, complexa. O valor por certo é um dos elementos, a indicar inclusive maior responsabilidade para quem lida com o conflito, mas, quanto à complexidade da matéria, muitas vezes é reflexo apenas do porte do contribuinte. Uma mesma discussão sobre insumos de PIS ou Cofins, ou sobre a dedutibilidade de despesas na apuração do IRPJ ou da CSLL, pode ou não ultrapassar esse valor, a depender, tão somente, de se tratar de um grande contribuinte, que lucra e fatura muito, ou de um contribuinte de porte médio. Não será a complexidade, ou a relevância, mas a capacidade econômica do contribuinte que permitirá, ou cerceará, o acesso a um importante órgão de controle interno da legalidade, em clara quebra da igualdade.

Recorde-se que as Delegacias de Julgamento, diversamente do Carf, acham-se vinculadas a todas as normas infralegais editadas pela administração tributária. Decretos, portarias, instruções normativas, ordens de serviço, pareceres normativos, soluções de consulta etc. Isso torna quase inexistência a sua capacidade para realizar controle de legalidade, quanto a questões de direito, vinculadas que estão justamente às normas cuja invalidade é o cerne da controvérsia.

A inconstitucionalidade da medida, nesses termos, é bastante clara.

Mas não só. Ela é, além de tudo, inconveniente. Inclusive para o Fisco, que não deve agir como se a solução para a superlotação dos hospitais fosse fechar suas portas a fim de que os pacientes morram do lado de fora. Não se deve pensar que, para obter maior arrecadação, a solução é amesquinhar o devido processo legal, pois isso, quando muito, aumenta uma arrecadação que de outro modo seria considerada indevida, algo incompatível com a ideia de Estado de Direito.

Isso remete à derradeira questão, que talvez já tenha passado pela mente da leitora enquanto lia o parágrafo único do artigo 23 da Lei 13.988/2020: Mas por que essa irresignação contra a medida? Nela não se afirma “observados o contraditório, a ampla defesa e a vinculação aos entendimentos do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais”? Se os precedentes do Carf serão observados, qual o problema?

O problema é justamente esse: a forma como os precedentes do Carf (não) são observados. Nem pela fiscalização, nem pelas próprias delegacias, inclusive as de julgamento. São seguidos, naturalmente, mas só quando favorecem o Fisco. Neste caso, nem precisam ter força vinculante, qualquer acórdão serve. Mas, se favorecem a tese defendida pelo contribuinte, as autoridades tributárias, de lançamento ou de revisão em primeira instância, afirmam que, à luz do artigo 100 do CTN, só são obrigadas a cumprir os que tiverem força vinculante. E o Fisco só dá força vinculante aos precedentes do Carf que o favorecem. Os que desfavorecem são motivo para pressão às vezes explícita junto aos conselheiros do órgão para que sejam revertidos, ou para modificações legislativas como a que se comenta neste artigo.

É esse comportamento que faz com que o Carf seja assoberbado de processos. Se as DRJs seguissem os entendimentos da segunda instância favoráveis aos sujeitos passivos, simplesmente os sujeitos passivos não recorreriam, e, nas questões cujo valor fosse inferior a dois milhões de reais, tampouco haveria recurso de ofício. Caso o Fisco — todo ele — seguisse os precedentes do Carf de modo coerente, portanto, chegar-se-ia ao mesmo resultado que se alega pretender com a restrição aqui comentada, sem a necessidade de qualquer mudança legislativa, ou de qualquer violação ao direito de defesa.

Aliás, a lamentável medida irá aumentar, sem dúvida, a quantidade de processos levados ao Poder Judiciário, contrariando uma lógica, presente sempre nas palavras mas raramente nos atos das autoridades fiscais, de desjudicialização, de redução de conflitos, de “superação da cultura do litígio”. Reduzir cultura do litígio não pode ser confundido com simplesmente tolherem-se os instrumentos de defesa e de controle, para que o Fisco faça com o contribuinte o que quiser. É o caso: em vez de reconhecer na via administrativa uma ilegalidade, fecha-se ao contribuinte a via de acesso ao órgão que minimamente ainda faz isso, fazendo-se com que essas mesmas questões sejam desnecessariamente levadas ao Judiciário. E este, depois, logo começa a realizar julgamentos em massa, adotar a jurisprudência defensiva para se livrar de processos, e culpar advogados, um suposto excesso de recursos e o CPC de 2015 em geral pelo problema que, como se vê, é bem outro.

Hugo de Brito Machado Segundo é professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará (UFCE) — de cujo programa de pós-graduação (mestrado/doutorado) foi coordenador (2012/2016) —, professor do Centro Universitário Christus (graduação/mestrado), membro do Instituto Cearense de Estudos Tributários (Icet) e da World Complexity Science Academy (WCSA), advogado e visiting scholar da Wirtschaftsuniversität, em Viena (Áustria).

Revista Consultor Jurídico, 18 de janeiro de 2023, 8h00

Desmistificando e desmitificando o Carf

Nesses poucos dias de um ano cujos acontecimentos — para o bem e para o mal — receberam destaque na história deste país, ganhou o Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) reflexa luz dos holofotes. Nesta coluna, diversamente do que sói ocorrer, não cotejaremos precedentes do Tribunal Administrativo, e sim o abordaremos numa perspectiva histórico-institucional, especialmente quanto a sua basilar prerrogativa e alterações relativas ao voto de qualidade. Daremos dois passos atrás para, oxalá, andar um para frente.

Muito salutar para uma nação que se pretenda deveras republicana que conheçam os administrados não só os órgãos que compõem a estrutura de cada um dos Poderes, como também suas respectivas formas de atuação. Justamente por isso, necessário que enfrentemos a difícil tarefa de desmistificar e desmitificar o órgão responsável pelo julgamento em segunda instância de todo o contencioso administrativo fiscal federal.

Embora as expressões eleitas pareçam sinônimas, até mesmo porque exibem grafia quase idêntica, não o são. Ambas, entretanto, por ostentarem o prefixo latino des-, denotam o desfazimento de algo. Se é verdade que toda reconstrução é precedida de uma desconstrução, parece ser bem este o caminho a ser trilhado. O verbo desmistificar carrega como significado desmascarar, aclarar uma situação repleta de mistérios; por outro lado, desmitificar é retirar o caráter de mito atribuído a algo ou a alguém.

No próximo dia 14 de setembro, o Carf, órgão que sucedeu os antigos Conselhos de Contribuintes, completará 98 anos de história, sendo responsável por realizar o controle de legalidade do lançamento tributário. Ou seja, ao Carf cabe averiguar a conformidade da autuação com a legislação aplicável, não gozando de competência para declarar a ilegalidade ou a inconstitucionalidade da lei, tarefa esta atribuída exclusivamente ao Poder Judiciário [1].

Do artigo 1º do Anexo I do Regimento Interno do Carf (RICarf), extraímos que “o Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) (…) tem por finalidade julgar recursos de ofício e voluntário de decisão de 1ª (primeira) instância, bem como os recursos de natureza especial, que versem sobre a aplicação da legislação referente a tributos administrados pela Secretaria da Receita Federal do Brasil (RFB)”. O Carf, portanto, embora integre a estrutura do Ministério da Fazenda, desempenha atípica função judicante.

Urge desmistificar a atribuição de uma suposta finalidade arrecadatória ao Carf. Quando uma julgadora (esteja ela em âmbito administrativo, esteja ela na seara judicial) analisa um auto de infração podem ocorrer as seguintes situações: 1) o lançamento ser considerado procedente, mantendo-se a integralidade da exigência tributária; 2) a exigência fiscal ser tida como parcialmente procedente, permanecendo incólume apenas uma fração do crédito tributário; ou, 3) o lançamento ser declarado insubsistente, com o afastamento da integralidade da exigência tributária. Ora, o fato de a julgadora aferir a (in)subsistência do lançamento, decidindo, em última análise, sobre se verterá ou não dinheiro aos cofres públicos, não a torna uma autoridade fazendária [2].

O RICarf determina, no inciso I do seu artigo 41, serem deveres dos conselheiros, dentre outros, “exercer sua função pautando-se por padrões éticos, no que diz respeito à imparcialidade, integridade, moralidade e decoro, com vistas à obtenção do respeito e da confiança da sociedade”. Portanto, quando uma auditora fiscal deixa seu posto na Receita Federal e passa integrar os quadros do Carf, há que se desincumbir da tarefa de obter recursos financeiros ao Estado, passando a desempenhar, com imparcialidade, seu papel de julgadora. Sob uma perspectiva institucional, é essa a atuação que o Carf espera de suas conselheiras e de seus conselheiros, sejam eles servidores da Receita Federal, sejam eles indicados pelas entidades sindicais e confederações patronais que têm assento no órgão.

Da leitura do RICarf é possível extrair elementos para livrar de mistificação suposta discrepância entre precedentes emanados do Carf e aqueles proferidos pelos tribunais pátrios. Como dito, o escopo de atuação do Carf é infinitamente mais limitado do que o do Poder Judiciário, porquanto não se pode, em esfera administrativa, afastar lei com base em argumentos de ilegalidade e de inconstitucionalidade.

Tal vedação é excepcionada em algumas hipóteses, todas trazidas no artigo 62 do RICarf, que, em suma, versam sobre declarações de inconstitucionalidade em decisão definitiva proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, súmulas vinculantes, teses firmadas sob a sistemática de recursos repetitivos, bem como no caso de dispensa legal de constituição ou ato declaratório da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, parecer do advogado-geral da União aprovado pelo presidente da República e súmula da Advocacia-Geral da União.

Destacamos ainda que o §2º do artigo 62 do RICarf impõe aos seus conselheiros e às suas conselheiras a reprodução das decisões definitivas de mérito, proferidas tanto pelo Supremo Tribunal Federal quanto pelo Superior Tribunal de Justiça, quando firmadas na apreciação de recursos extraordinário e especial repetitivos. A sanção aplicada em caso de inobservância do disposto no artigo 62 do RICarf é das mais graves: a perda de mandato — ex vi do inciso VI do artigo 45 do RICarf. Torna-se, dessa forma, remota, para não dizer impossível — exceto pelo exercício do distinguishing —, o julgamento contrário às teses tributárias judicialmente sedimentadas naqueles termos, tão menos a utilização de quaisquer critérios de desempate para sua reversão em âmbito administrativo.

Se até o momento tratamos de mistificações, chegada a hora de, sem a intenção de exaurir a temática, tecermos algumas linhas sobre o que nos parece ter sido alçado à categoria de mito: o impacto do critério de desempate adotado no Carf. Antes disso, façamos uma brevíssima digressão histórico-comparativa.

O Carf, como já pontuamos, é órgão quase secular. Isso, contudo, não o isenta de receber críticas, tampouco aprimoramentos. O modelo de composição paritária, inicialmente previsto no Decreto nº 20.305/1931, que perdura até o momento, de fato, não guarda similaridade com o paradigma de nenhum outro país. Tal constatação, por si só, não significa ser o formato aqui edificado equivocado, tampouco atenta para a realidade além-mar na fase pré-contenciosa, que é bastante diversa da brasileira, conforme sinaliza minudente estudo realizado por pesquisadores do Núcleo de Tributação do Insper (aquiaqui e aqui[3]. De bom alvitre lembrar que transplantes acríticos de normas e modelos costumam apresentar falhas, caso não sejam levadas em consideração as particularidades de cada jurisdição.

Como já alertamos (aqui), vez e outra contada a lenda de que a primeira e a segunda instâncias do contencioso administrativo federal apenas replicariam os achados das autoridades fiscalizadoras, falhando ainda em resguardar os princípios da ampla defesa e do contraditório. O Tribunal de Contas da União, ao analisar o período compreendido entre 2012 e 2019, anterior à modificação da regra de desempate estabelecida pela Lei nº 13.988/20, demonstrou que “em termos quantitativos, 47% das autuações tributárias objeto de litígio foram canceladas total ou parcialmente nas DRJ e 45%, no Carf” [4].

As disputas se acirraram com a controversa alteração do critério de desempate em 2020: se antes quem dava o voto de minerva era o presidente de cada Turma, cadeira sempre ocupada por julgadora oriunda dos quadros da Receita Federal, até o dia 12 de janeiro p.p. a resolução do impasse se dava a priori em desfavor da Fazenda Pública [5].

Contra a modificação do critério de desempate favorável aos contribuintes interpostas três ações diretas de inconstitucionalidade [6]. A despeito de já se ter formado maioria no Supremo Tribunal Federal pela constitucionalidade da norma, superando-se até mesmo as alegações de vício de natureza formal, o julgamento ainda não teve seu fim. A excrescência causada pelo desempate pró-contribuinte é o que parece, inclusive, ter motivado o ministro Barroso propor a tese de que, malgrado constitucional a extinção do voto de qualidade do presidente das turmas julgadoras do Carf, no caso de empate em decisão favorável ao contribuinte, poderia a Fazenda Pública ajuizar ação visando a restabelecer o lançamento tributário.

Ora, a atividade exercida pelos órgãos julgadores em âmbito administrativo, por ser função atípica, não pode ser confundida com a atividade judicante. Por ser o Carf um revisor de atos administrativos, em franca manifestação do exercício do poder de autotutela estatal, deve o processo administrativo fiscal guardar compatibilidade com a presunção dos atos administrativos, vedando que, em caso de afastamento do lançamento pela Carf, possa a Fazenda Pública socorrer ao Poder Judiciário. Daí o porquê de o critério de desempate pró-contribuinte ter deturpado a lógica do contencioso administrativo fiscal federal.

Como já antecipado em coluna (aqui) escrita em coautoria pelos colegas CARLOS AUGUSTO DANIEL e DIEGO DINIZ RIBEIRO, “[a] defesa da existência do voto de qualidade, por outro lado, não significa que o processo administrativo-fiscal federal não necessite de ajustes: o que se critica aqui é uma alteração isolada e oportunista que deturpa todo um sistema existente há quase 90 anos, ao invés de um debate democrático, técnico e dialético, essencial para mudanças coerentes e vocacionadas a se perpetuarem”.

Em que pese o restabelecimento do voto de qualidade pela Medida Provisória nº 1.160, de 12 de janeiro de 2023 melhor se coadunar com a estrutura do processo administrativo fiscal em terras brasileiras, mitos ainda o circundam.

A análise dos dados fornecidos pelo próprio Conselho fragiliza as fábulas sobre a determinabilidade da aplicação dos critérios de desempate para a definição do resultado do julgamento [7]. Nos anos de 2017, 2018, 2019 e 2020 foram decididos pelo voto de qualidade 7,2%, 6,8%, 5,3% e 1,9% dos casos, respectivamente. Além de baixo o percentual, sequer possível precisar se o desempate foi contra ou a favor do contribuinte. O presidente de Turma, no exercício de sua imparcialidade, não tem qualquer impedimento para desempatar em prol do provimento do recurso apresentado pelo autuado. A título exemplificativo, confira-se os seguintes julgados, todos proferidos pelo Carf no período acima mencionado, em que dado provimento ao recurso voluntário pelo voto de qualidade: Acórdãos nºs 2001-000.799, 2001-000.965, 2001-000.562, 2002-003.742, 3301-000.742, 1301-004.759, 1402-003.829, 2202-005.728 [8].

Registramos que, no banco de dados disponibilizado pelo Carf, tampouco é possível saber qual o valor dos créditos tributários mantidos pela aplicação do voto de qualidade. Acostada à ADI nº 6.415, que sustenta a inconstitucionalidade da lei que pôs fim ao voto de qualidade, consta uma série de esclarecimentos oferecidos pelo Serviço de Informações ao Cidadão do antigo Ministério da Economia. Quando indagado qual seria o valor do crédito tributário e quantitativo de processos decididos pelo voto de qualidade no Carf nos últimos três anos, respondido o seguinte:

“Nos anos de 2017, 2018, 2019 e 2020 (até março) foram julgados, por voto de qualidade, 4026 recursos, correspondente a R$ 248.093.219.299,54. Vale ressaltar que os créditos tributários informados acima correspondem ao valor total cadastrado no processo, não significando, portanto, valores mantidos ou exonerados, haja vista que o Conselho Administrativo de Recursos Fiscais — CARF não liquida decisões. Em virtude do acima exposto, e pelo fato de a votação ser por recurso, o valor total do processo foi utilizado por cada recurso cuja votação tenha sido por qualidade.”

No que tange aos processos decididos pelo critério de desempate pró-contribuinte, o percentual é ainda menor: 0,4%, 1,6% e 1,9%, em cada ano de sua vigência. Tampouco existem dados oficiais disponibilizados acerca do montante exonerado e estudos que apontem como formado o empate — teriam todos os “conselheiros dos contribuintes” votado pelo cancelamento da autuação e todos os “conselheiros fazendários” pela manutenção da exigência? Ou parte dos “conselheiros dos contribuintes” se convenceram pela higidez da cobrança e parcela dos “conselheiros fazendários” não? São perguntas carentes de respostas.

A despeito das espinhosas dúvidas, além dos necessários ajustes à utopia do modelo ideal de um tribunal administrativo federal tributário, nesses tempos de mudança é essencial desmistificar — e também desmitificar — o papel e a forma de atuação do Carf. Mirando para o futuro, chegada a hora de reconstruir, unificar, dinamizar e modernizar o processo administrativo fiscal [9]. Os novos ventos são mais do que aguardados e bem-vindos. Só há de se acautelar para “não jogar fora o bebê junto com a água do banho”.

Este texto não reflete a posição institucional do CARF, mas, sim, uma análise dos seus precedentes publicados no site do órgão, em estudo descritivo, de caráter informativo, promovido pelos seus colunistas.


[1] O Carf editou súmula, a de nº 02, justamente para asseverar que “não é competente para se pronunciar sobre a inconstitucionalidade de lei tributária”. Em mesmo sentido, o art. 62 do RICarf prevê que “fica vedado aos membros das turmas de julgamento do CARF afastar a aplicação ou deixar de observar tratado, acordo internacional, lei ou decreto, sob fundamento de inconstitucionalidade”.

[2] Vale advertir que, com o término do contencioso administrativo, não vertem os recursos automaticamente ao erário, eis que dependerá do adimplemento voluntário do contribuinte administrativamente derrotado ou de um processo de cobrança judicial que seja eficaz. 

[3] Prestamos agradecimentos ao integrante do grupo de pesquisadores do Insper, professor Breno Vasconcelos, pelo compartilhamento de informações e documentos imprescindíveis para a elaboração desta coluna. 

[4] Cf. Acórdão nº 336/2021 do TCU. 

[5] Cf. Medida Provisória nº 1.160, de 12 de janeiro de 2023. 

[6] Cf. ADIs nºs 6.399, 6.403 e 6.415. 

[7] Os Dados Abertos do Carf podem ser consultados em: http://idg.carf.fazenda.gov.br/dados-abertos/dados-abertos-202212-final.pdf. Acesso em: 17 jan. 2023.

[8] São inúmeros acórdãos, o que inviabiliza a transcrição. Foi utilizado como parâmetro de pesquisa “voto de qualidade” e “dar provimento ao recurso voluntário”, aplicando-se o filtro correspondente aos julgados proferidos nos anos de 2017, 2018, 2019 e 2020. Disponível em: https://acordaos.economia.gov.br/solr/acordaos2/browse/. Acesso em: 17 jan. 2023. 

[9] Calha mencionar, nesse sentido, a atuação da Subcomissão de Processo Administrativo, órgão fracionário da Comissão de Juristas presidida pela ministra Regina Helena Costa, bem como da Comissão Especial de Direito Tributário do Conselho Federal da OAB, encabeçada pela professora Misabel Abreu Machado Derzi.

Ludmila Mara Monteiro de Oliveira é doutora em Direito Tributário pela UFMG, com período de investigação na McGill University, conselheira titular integrante da 2ª Turma Ordinária da 2ª Câmara da 2ª Seção do Carf e professora de Direito Tributário da pós-graduação da PUC-Minas.

Mariel Orsi Gameiro é conselheira do Carf, professora de Direito Tributário e Aduaneiro em cursos de pós-graduação e graduação, responsável executiva do GT de Direito Aduaneiro da FGV-SP, mestre em medicina pela Unesp e doutoranda em Direito Tributário na UFMG.

Revista Consultor Jurídico, 18 de janeiro de 2023, 9h49

OAB repudia volta do voto de qualidade no Carf

Na última sexta-feira, o presidente Lula assinou a MP 1.160/23, que determina a volta do voto de qualidade no Carf – Conselho Administrativo de Recursos Fiscais. Desde 2020, havia uma regra que favorecia o contribuinte em eventuais empates em julgamentos no Conselho. Após a publicação da medida provisória, o Conselho Federal da OAB veio a público para repudiar a atitude. Veja a íntegra da nota abaixo:

O Conselho Federal da OAB manifesta seu mais contundente repúdio à MP 1.160/23, que revoga o artigo 28 da lei 13.988/20, alterando a lei 10.522/02.
A mitigação da regra do voto de qualidade no Carf procurou, apenas e tão somente, equacionar uma situação de iniquidade no processo administrativo tributário federal, impedindo que, havendo empate entre os julgadores do Carf, a solução fosse a favor da Fazenda Pública.
O art. 112 do CTN determina interpretação favorável ao contribuinte em caso de dúvida sobre o fato tributário. Essa norma foi objeto das ADIns 6.399, 6.403 e 6.415, no STF. Foram proferidos seis votos pela constitucionalidade da regra (ministros Marco Aurélio, Roberto Barroso, Alexandre de Moraes, Edson Fachin, Cármen Lúcia e Ricardo Lewandowski). O ministro Marco Aurélio, relator das ADIns, acolheu a inconstitucionalidade formal e, caso superado o ponto, entendeu pela constitucionalidade material da lei. O julgamento foi suspenso por pedido de vista do Ministro Nunes Marques.
A revogação desta lei, pela excepcional via da MP vai de encontro à superior intenção do Poder Legislativo, que foi a de modernizar a regra de julgamento no âmbito do Carf, alinhando-a aos ditames constitucionais. Além disso, faz retornar ao ordenamento jurídico uma norma incompatível com as garantias fundamentais dos contribuintes.
Como salientado pelo ministro Roberto Barroso, em voto proferido nas três ADIs, “reconhecer a constitucionalidade da norma questionada não causa necessariamente perda de arrecadação, pois, se o lançamento tributário foi impugnado, o Fisco possui somente uma expectativa de obtenção de receitas, e não um direito a crédito tributário determinado. Este só estará definitivamente constituído com a notificação do sujeito passivo para tomar ciência da decisão final desfavorável a ele no âmbito do processo administrativo fiscal”.
O CFOAB reitera não ser possível que uma norma regular e amplamente debatida e votada pelo Congresso Nacional seja revogada por medida provisória. A tributação no Brasil deve ser fiel aos inalienáveis parâmetros da CF.

Entenda
O Carf integra o ministério da Economia e é responsável pelo julgamento administrativo de segunda instância do contencioso administrativo fiscal na esfera Federal. As turmas do órgão são compostas paritariamente por representantes dos contribuintes e da Fazenda Pública, reservada a representante desta última a função de presidente, ao qual era conferido o voto de qualidade em caso de empate.
Em 2020, esse voto havia sido extinto na conversão em lei (13.988/20) da MP do contribuinte legal, que acrescentou o art. 19-E à lei 10.522/02, prevendo que os empates seriam decididos a favor do contribuinte. O dispositivo foi incluído na MP pelo Congresso e mantido pelo ex-presidente Jair Bolsonaro.
O assunto foi levado ao STF. No Tribunal, já há maioria formada contra o voto de qualidade, mas o caso está suspenso por pedido de vista do ministro Nunes Marques, sem data para voltar à pauta.
Com o caso parado no Supremo, o presidente Lula assinou a MP 1.160/23, que retoma o voto de desempate da Fazenda, medida já recomendada pelo TCU, no julgamento de conflitos tributários.

Fonte: https://www.migalhas.com.br/quentes/380051/oab-repudia-volta-do-voto-de-qualidade-no-carf

ARTIGO DA SEMANA – MP 1.160/2023 e o fim do julgamento empatado no CARF em favor do contribuinte

João Luís de Souza Pereira. Advogado. Mestre em Direito. Professor convidado das pós-graduações da FGV-Direito Rio e do IAG/PUC-Rio.

O art. 1º, da Medida Provisória nº 1.160/2023, que restabelece o voto de qualidade em favor do fisco nos julgamentos do contencioso administrativo fiscal federal, não é boa notícia.

Antes de mais nada, é preciso dizer que a manutenção do chamado “voto de qualidade” não é medida de esquerda ou de direita, mas de centro, precisamente do fiel da balança.

Entre as diversas críticas que são feitas ao processo administrativo fiscal, prevalece aquela – típica do senso comum e nada técnica – que afirma que “não vale pena discutir uma autuação da Receita Federal junto à própria Receita”. 

Aqueles que militam no contencioso administrativo sempre insistiram no contrário, sobretudo porque sabem que a segunda instância no processo administrativo fiscal é mais arejada, fruto da convivência dos representantes dos contribuintes com os representantes do fisco.

A paridade na composição de órgãos julgadores de segunda instância não é um capricho, mas uma necessidade.

Ainda que se reconheça as críticas quanto à figura do Quinto Constitucional nos Tribunais de Justiça e demais órgãos jurisdicionais, o fato é que a presença de julgadores oriundos da advocacia e do Ministério Público faz muito bem aos julgamentos Colegiados, trazendo ao debate pontos de vistas multifacetados, enriquecendo as conclusões da prestação da tutela jurisdicional.

A composição paritária dos órgãos administrativos de função judicante tem o mesmo propósito: enriquecer o debate na tomada de decisão numa relação jurídica que nasce compulsoriamente com a ocorrência do fato gerador.

A previsão da solução do litígio em favor do contribuinte nos casos de empate nos julgamentos do CARF, tal qual previsto no art. 28, da Lei nº 13.988/2020, que introduziu o art. 19-E na Lei nº 10.522/2002, já foi objeto de apreciação recente pelo STF, que concluiu por sua constitucionalidade.

A reintrodução do voto qualidade em favor do fisco só traz insegurança. Afinal, como esperar estabilidade numa relação processual se a regra do jogo muda circunstancialmente e em menos de 3 (três) anos?

Além disso, esta alteração casuística na norma reguladora do processo administrativo fiscal, por ato normativo de iniciativa do Chefe do Poder Executivo, parece mandar um recado estranho aos litigantes: este processo não existe para ter um desfecho imparcial, mas para atender o interesse do fisco.

Também é preciso observar que o fim da previsão do desfecho do julgamento empatado em favor do contribuinte só irá aumentar o número de medidas judiciais em matéria tributária. Será o que o Ministro da Fazenda supôs que o contribuinte derrotado, ao final de um processo administrativo com julgamento acirrado, irá correr   para pagar ou parcelar o crédito tributário?

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