STJ nega penhora online antes da citação do devedor em execução fiscal

A Lei 6.830/1980, rotulada como Lei de Execuções Fiscais, em seu artigo 8º, estabelece que o devedor será citado para, no prazo de cinco dias, pagar a dívida ou garantir a execução, mediante a indicação de bens à penhora.

O advento do Código de Processo Civil de 2015 fez surgir interpretação do seu artigo 854 de que seria possível a penhora em dinheiro em depósito ou em aplicação financeira por via eletrônica “sem dar ciência prévia do ato ao executado”

Desde então, as Fazendas nacional, estaduais e municipais passaram a requerer, e a obter, decisões determinando a penhora em dinheiro por meio eletrônico antes da citação do devedor na ação de execução fiscal, sob a justificativa da aplicação subsidiária do CPC/2015. 

Por oportuno, em orientação jurisprudencial uníssona, as 1ª e 2ª Turmas do Superior Tribunal de Justiça consolidaram o entendimento de que o juiz não pode determinar o bloqueio de bens do devedor, por meio do Sisbajud (sistema de penhora online de ativos financeiros), antes da sua citação na ação de execução fiscal. Por ocasião do recebimento de ação de execução fiscal, alguns juízes determinavam, simultaneamente, a citação do devedor e o bloqueio de bens, a pedido da Fazenda Pública, o que fazia com que o bloqueio dos bens do devedor se efetivasse antes da sua citação. 

Na esteira da disciplina que já fora prevista no CPC/1973, o CPC de 2015 não permite que haja o bloqueio de bens do devedor antes da sua regular citação para responder a ação de execução, em harmonia com os postulados do contraditório, da ampla defesa e do devido processo legal. 

Em julgamento realizado em 2/8/2022, em recurso especial interposto pela Fazenda Nacional, a 2ª Turma do STJ, no REsp 1.664.465, relator ministro Herman Benjamin, decidiu pela impossibilidade de se proceder à constrição de bens do executado antes da sua citação, sendo reafirmada a orientação de que deve haver a citação do executado antes da determinação da penhora ou bloqueio de bens. 

A tese sustentada pela Fazenda Nacional era que o CPC/2015 permitiria que o juiz, a pedido do exequente, antes da citação do devedor, determinasse que instituições financeiras procedessem ao bloqueio de ativos financeiros para possibilitar a penhora de dinheiro. Entretanto, o fato de a legislação processual permitir que a penhora de dinheiro possa se operar por meio eletrônico não pode conduzir, por si só, ao entendimento de que tal constrição deva ser realizada antes da citação do devedor. 

A rigor, já havia diversos pronunciamentos da 1ª Turma do STJ (AgInt no REsp 1.588.608 e AgInt no REsp 1.485.018), no sentido de que apenas quando o executado fosse validamente citado, e não pagar nem nomear bens à penhora, é que poderia ter seus ativos financeiros bloqueados por meio do sistema online, não podendo ser realizado tal bloqueio a pretexto de buscar dar efetividade à execução. 

Com o referido julgamento, tem-se que a jurisprudência das 1ª e 2ª Turmas do STJ, que compõem a Seção de Direito Público, referenda o entendimento de que o CPC/2015 não alterou a natureza do bloqueio de dinheiro via sistema eletrônico, como sendo uma providência que consubstancia a penhora, a qual somente deve ser implementada após a citação do devedor, desde que não tenha efetuado o pagamento ou nomeação de bens à penhora. 

Deve ser feita a ressalva, entretanto, de que excepcionalmente a realização de bloqueio de bens do devedor antes da sua penhora pode ser efetivada a título de pedido de medida cautelar de arresto, cuja concessão pressupõe a demonstração dos requisitos próprios (fumus boni iuris e periculum in mora) das tutelas de urgência, ou na hipótese de o devedor não ser encontrado para ser citado (AgRg no AREsp 555.536). 

Assim, trata-se de importante orientação jurisprudencial a ser seguida pelos demais órgãos do Poder Judiciário, de sorte que, a pretexto de assegurar a efetividade da ação de execução, não nos afigura lícita a determinação judicial de bloqueio de bens do devedor antes da sua citação. Para que se determine o bloqueio de bens, há a necessidade de que o executado seja regularmente citado, e deixe de pagar ou nomear bens passíveis de penhora.

Gleydson K. L. Oliveira é mestre e doutor em Direito pela PUC-SP, professor da graduação e mestrado da UFRN e advogado.

Revista Consultor Jurídico, 27 de agosto de 2022, 17h08

O dilema de Alice e o Gato de Cheshire: a Súmula Carf nº 97 e o caminho a se seguir

Em sua coluna de 16/8/2022, aqui no ConJur (link), Rosaldo Trevisan, com sua escrita sempre brilhantemente técnica e espirituosa, escreveu um artigo relacionando a questão do “Dano ao Erário” nas penalidades aduaneiras a trechos do livro “Alice no País das Maravilhas”, do inglês Lewis Carroll, lançada em 1865. É, sem favor e sem dúvida, uma das minhas obras literárias favoritas, que a cada releitura me apresenta uma nova camada de interpretações e reflexões.

A lembrança da obra me fez rememorar uma célebre a passagem — talvez uma das mais famosas de todo o livro — em que Alice, a protagonista, se encontra com o Gato de Cheshire, o famoso gato sorridente, e estabelecem o seguinte diálogo, adaptado para abrirmos nosso artigo [1]:

Alice: Você poderia me dizer, por favor, qual o caminho para sair daqui?

Gato: Depende muito de onde você quer chegar.

Alice: Não me importa muito onde…

Gato: Nesse caso não faz diferença por qual caminho você vá.

Alice: …desde que eu chegue a algum lugar.

Gato: Oh, esteja certa de que isso ocorrerá, desde que você caminhe o bastante.

O Lucro Arbitrado é uma das bases de cálculo possíveis do imposto de renda, ao lado do Lucro Real e do Lucro Presumido. Apesar do Lucro Real coligir a maior quantidade de elementos com a finalidade de maximizar a pessoalidade na apuração do IRPJ, o Lucro Presumido e o Arbitrado também são baseados em fatos indiciários de capacidade contributiva, ainda que menos pessoais – um se justifica pela liberdade de opção do contribuinte, o outro pela presença de situações nas quais seria impossível ou altamente difícil apurar o Lucro Real.

Em suma, o Lucro Arbitrado é uma base de cálculo possível para o IRPJ, que se justifica pela impossibilidade ou elevadíssima dificuldade para mensurar a renda daquele contribuinte que não mantém livros contábeis, ou os mantém cheios de erros que comprometem sua veracidade, e que não atendem a deveres instrumentais imprescindíveis à essa determinação, em uma evidente concessão à praticabilidade tributária. 

Trata-se, à evidência, de um meio subsidiário de apuração dos tributos sobre a renda. Nesse sentido, o Carf tem reconhecido que “o artigo 47 da Lei nº 8.981, de 1995, ao usar a expressão de que o lucro será arbitrado, nos casos que especifica, não confere faculdade à autoridade fiscal, mas sim comando impositivo quanto à forma de tributação” (acórdão nº 1402-000.728 [2]) e, mais do que isso, que “o arbitramento é medida extrema, que deve ser adotada, principalmente, quando restar impossível a apuração da base de cálculo do imposto de acordo com a forma de tributação escolhida pelo Contribuinte” (acórdão nº 1401-002.200 [3], 1401-005.924 [4]).

A adoção do Lucro Arbitrado é obrigatória diante das hipóteses legais estabelecidas no artigo 603 do RIR/2018. Não é objeto do presente artigo analisá-las, valendo mencionar apenas que se referem a situações com descumprimento de obrigações acessórias, não apresentação de dados escriturais e apresentação de escrituração imprestável — impossibilitando a apuração do lucro —, ou em caso de opção indevida pelo Lucro Presumido. Presente pelo menos uma dessas situações, e se verificando a impossibilidade de coligir elementos para calcular o Lucro Real, a Receita Federal deveráprosseguir com a apuração pelo Lucro Arbitrado.

O cálculo do Lucro Arbitrado pode se dar de duas formas: 1) em se conhecendo a receita bruta, adota-se a forma do artigo 605 do RIR/2018, através da sua multiplicação pelos percentuais utilizados na sistemática de lucro presumido, majorados em 20%, aplicando-se daí as alíquotas cabíveis de IRPJ; 2) caso a receita bruta não seja conhecida, a legislação estabelece parâmetros alternativos para esse cálculo, conforme o artigo 608 do RIR/2018, valendo-se de diversas grandezas distintas, tais como valores em contas de ativo, capital social ou patrimônio líquido, compras realizadas no mês, folha de salários, aluguel mensal etc., aplicando a cada uma um percentual próprio. 

Pois bem. É exatamente na apuração do Lucro Arbitrado, nas hipóteses em que não se conhece a receita bruta, que se situa o problema a ser enfrentado nesse texto. 

É evidente que a escolha por um dos oito métodos alternativos do artigo 608 do RIR/2018 pode conduzir a valores os mais diversos, na apuração do Lucro ArbitradoE.g. considerando uma empresa que tenha um capital social muito inferior ao seu patrimônio líquido, a adoção do primeiro elemento gerará um lucro muito menor que o segundo.

Diante disso, alguns contribuintes alegam que a fiscalização deveria adotar o parâmetro que gere o menor ônus tributário, em um raciocínio construído por analogia do modelo brasileiro de preços de transferência, que adota a regra do melhor método (best method rule), em favor da liberdade do contribuinte em escolher aquele que lhe dê o resultado mais favorável, com base no artigo 20-A da Lei nº 9.430/96.

Por outro lado, esse pleito tem sido rejeitado peremptoriamente com fundamento na Súmula Carf nº 97, que dispõe, verbis:

“Súmula CARF nº 97: O arbitramento do lucro em procedimento de ofício pode ser efetuado mediante a utilização de qualquer uma das alternativas de cálculo enumeradas no art. 51 da Lei nº 8.981, de 20 de janeiro de 1995, quando não conhecida a receita bruta.”

Em diversos acórdãos que analisaram questionamentos dos contribuintes quanto à eleição da base de cálculo, tem se consignado que essa súmula facultaria à fiscalização a escolha de qualquer um dos critérios previstos no artigo 51 da Lei nº 8.981 (equivalente ao artigo 608 do RIR/2018), de formadiscricionária, para o cálculo do Lucro Arbitrado (e.g. acórdãos nº 1402-005.648 [5] e 1201-002.669 [6]).

Nenhum dos lados parece estar correto nessa discussão.

Por um lado, não entendemos que o contribuinte tenha direito ao método menos oneroso, como pleiteado, e tampouco há semelhanças o suficiente para aplicar, por analogia, o regime de preços de transferência.

Entendemos que a escolha do critério não é discricionária, como de resto o artigo 608, §1º, do RIR/2018 [7] já sinaliza, ao determinar a aplicação dos critérios dos incisos V, VI e VII do artigo 608 às atividades comerciais, industriais e de prestação de serviços, respectivamente. Esse dispositivo sinaliza, com acerto, que mesmo no procedimento de apuração do Lucro Arbitrado, a fiscalização deve sempre buscar a eleição de índices de riqueza que estejam mais adequados ao caso.

Nessa linha, a escolha do critério nunca pode ser discricionária. Pelo contrário, cabe à fiscalização demonstrar que o parâmetro escolhido é o mais fidedigno, à luz do caso concreto, para refletir a capacidade econômica do contribuinte, atendendo à determinação do artigo 145, §1º, da CF/88. Para isso, o fiscal deve justificar, no auto de infração, a escolha por determinado método, considerando as características do contribuinte e a informação disponível. 

Mais ainda, a escolha do critério não deve ser voltada nem a maximizar e nem a minimizar o ônus tributário, mas sim buscar estabelecer uma conexão por proximidade com a forma como a empresa aufere suas receitas

Por exemplo, ao se fiscalizar uma empresa de tecnologia, cujos rendimentos sejam majoritariamente derivados da exploração de intangíveis, não faz sentido se optar pela folha de salários ou pelo aluguel mensal devido como índices, pois gerarão um lucro distorcido. Em uma situação como essa, deve-se buscar a soma do valor dos ativos, ou o seu patrimônio líquido, como critérios mais fidedignos.

Em suma: a escolha do critério dentre os listados no artigo 608 do RIR/2018 não é discricionária, devendo guardar um grau relevante de conexão com a própria atividade da pessoa jurídica, podendo ser objeto de contestação pelo contribuinte, caso a opção se demonstre arbitrária.

E quanto ao teor da Súmula nº 97?

Com a devida vênia, analisando os acórdãos precedentes da referida súmula [8], parece-nos que aplicá-la para validar essa suposta discricionariedade é um equívoco

A tônica dos precedentes se relaciona à obrigação do Fisco apurar o Lucro Arbitrado, com base em um dos critérios do artigo 51 da Lei nº 8.981/95, nos casos em que a receita bruta do contribuinte não seja conhecida, e não a respeito da existência de liberdade da fiscalização na escolha de qual método utilizar. 

Compulsando todas as decisões, se verifica que em nenhuma delas os contribuintes argumentavam pela utilização de um ou outro critério dentre os previstos no referido artigo, mas contra a própria realização do arbitramento. Não há, nos precedentes, qualquer discussão acerca da existência de discricionariedade ou não da fiscalização na eleição dos métodos arrolados no artigo 608 do RIR/2018.

É curioso comparar a redação da súmula com a ementa do acórdão nº 101-94.964, de onde ela foi “extraída”, que dispõe: “Cabível o arbitramento do lucro através de procedimento de ofício, mediante a utilização de uma das alternativas de cálculo enumeradas no art. 51 da Lei nº 8.981, de 20 de janeiro de 1995, quando não conhecida à receita bruta“. 

Como se vê, enquanto a ementa falava em “utilização de uma das alternativas“, o texto da súmula ficou “utilização de qualquer uma das alternativas“, explicitamente dando a entender que o seu conteúdo se relacionaria à discricionariedade da fiscalização, induzindo os aplicadores em erro, ao ostentar uma redação que não está em conformidade com seus precedentes.

Portanto, entendemos que a súmula Carf nº 97 não poderia ser aplicada aos casos em que o contribuinte questione a escolha do critério de arbitramento do lucro, nas hipóteses de receita bruta não conhecida, com base no artigo 608 do RIR/2018.

Por meio da aplicação equivocada do referido enunciado sumular, o Carf tem permitido aos auditores-fiscais reproduzir, de forma distorcida, o dilema daAlice: ao alegarem não saber onde pretendem chegar, a súmula faz as vezes do Gato de Cheshire, avisando que qualquer caminho serve, para quem não se importa com o destino.

Trata-se de um falso dilema, pois a fiscalização possui, sim, um objetivo: a mensuração — da melhor forma possível — da capacidade econômica do contribuinte, mesmo nas hipóteses em que se recorra a elementos indiciários para apuração da base de cálculo. O Lucro Arbitrado é uma base de cálculo subsidiária em relação ao Lucro Real, mas essa concessão à praticabilidade não confere ao arbitramento natureza punitiva nem implica uma supressão absoluta do princípio da capacidade contributiva na eleição do critério adotado.

Ora, se há um destino a alcançar, o dilema se desfaz, pois nem todos os caminhos passam a ser igualmente válidos, e o conselho da nossa Súmula-Gato, de que “qualquer uma das alternativas de cálculo” poderia ser utilizada, perde qualquer sentido.

Trata-se, em rigor, de mais uma súmula cujo teor discrepa do conteúdo dos precedentes que a formaram, contribuindo para uma confusão no momento de sua aplicação e, ao final, no bloqueio de um possível e legítimo argumento de defesa dos contribuintes, na hipótese de arbitramento dos lucros. 

Em outra passagem da obra de Carroll, Alice vê o Gato desaparecendo devagar, da ponta do rabo até sobrar apenas o seu sorriso, e exclama: Epa! Eu já vi muitos gatos sem sorriso, mas nunca um sorriso sem gato! É a coisa mais curiosa que já vi em toda a minha vida!“. Parafraseando a primeira parte da afirmação, posso dizer que já vi muitos precedentes sem súmulas que os resumissem, mas nunca espero ver por aí súmulas que não sejam de acordo com seus precedentes. Quanto à segunda parte da frase, fica difícil parafraseá-la, quando tem se tornado cada vez menos curiosa a identificação desse fenômeno nas súmulas do Carf.

Temos nos esforçado em demonstrar, ao longo de diversos artigos desta coluna, que as súmulas do Carf têm muitos problemas na sua formação e na sua aplicação, por exemplo, no caso das Súmulas 11 (link), 169 (link) e 172 (link)que demandam uma revisitação crítica e urgente por parte da doutrina e do próprio tribunal, institucionalmente e por seus conselheiros. Àquelas que não atenderem aos standards jurídicos de criação e aplicação, deve valer a ordem preferida da Rainha de Copas: Cortem-lhe a cabeça!“.


[1] Adaptado a partir de: CARROLL, Lewis. Alice no País das Maravilhas, 2ª ed. São Paulo: Objetivo, 2000, p.81.

[2] Rel. Moisés Giacomelli, j. 29/9/2011.

[3] Rel. Luiz Augusto de Souza, j. 21/2/2018.

[4] Redator Designado André Severo Chaves, j. 18/10/2021.

[5] Rel. Evandro Correa Dias, j. 17/6/2021.

[6] Rel. Gisele Bossa, j. 21/11/2018.

[7] Art. 608. (…) § 1º. As alternativas previstas no inciso V ao inciso VII do caput , a critério da autoridade lançadora, poderão ter a sua aplicação limitada, respectivamente, às atividades comerciais, industriais e de prestação de serviços e, na hipótese de empresas com atividade mista, ser adotados isoladamente em cada atividade

[8] Acórdãos Precedentes: Acórdão nº 107-07.325, de 10/9/2003; Acórdão nº 105-14.330, de 18/03/2004; Acórdão nº 101-94.964, de 18/5/2005; Acórdão nº 107-08419, de 25/1/2006; Acórdão nº 1202-00.074, de 17/6/2009; Acórdão nº 1803-001.578, de 07/11/2012

Carlos Augusto Daniel Neto é sócio do escritório Daniel & Diniz Advocacia Tributária, em estágio pós-doutoral em Direito Tributário na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), doutor em Direito Tributário pela Universidade de São Paulo (USP), mestre em Direito Tributário pela PUC-SP, ex-conselheiro titular da 1ª e 3ª Seções do Carf, pesquisador do NEF/FGV e do Nupem/IBDT e professor permanente do mestrado profissional do Cedes e de diversos cursos de pós-graduação.

Revista Consultor Jurídico, 24 de agosto de 2022, 8h01

Filtros de conteúdo para o processo administrativo tributário

Como no judicial, também o processo administrativo sofre com o paradoxo da ampla acessibilidade versus o volume daí resultante — e, por derivação, a ampliação do tempo para sua solução.

Há, por certo, oscilações — a ideia de inafastabilidade, no plano judicial, é sabidamente mais intensa que em nível administrativo; há recortes (temporais, por exemplo) que fazem o acesso à jurisdição administrativa mais estreito etc.

A lógica, em sua essência é a mesma, porém: historicamente, operamos com a dominante interpretação (por momentânea conveniência, para alguns; por convicção intransponível, para outros) de que é desejo constitucional que a jurisdição, quer a administrativa, quer a convencionalmente exercida pelo Judiciário, seja amplamente acessí(á)vel, aspecto que selaria uma das faces do Estado de Direito, sobretudo no pós-ditadura [revalidamos, com essa breve observação, nossa particular convicção de que o percurso histórico, marcadamente o que foi vivido pelos grandes autores que fizeram as bases do Direito Público brasileiro, diz muito sobre a interpretação que carregamos sobre certos institutos, mesmo que não conheçamos ou que não tenhamos vivido a passagem de uma para outra dessas frações da história jurídica nacional (antecedente e posterior à Constituição de 1988)].

Podemos (ou melhor, devemos) reconhecer, no entanto, que o processo de amadurecimento democrático a que nos submetemos, passados mais de trinta anos, talvez já seja suficiente para nos colocar numa posição menos “absolutista” quanto ao “tamanho” que seguiremos dando à ideia de inafastabilidade de jurisdição — uma reflexão que nos agita a todos no ambiente tributário judicial e que deve ser transposta, da mesma forma, para o administrativo.

Mas não queremos falar, aqui, de acessibilidade no plano formal, senão material, de conteúdo, numa perspectiva que poderia colaborar para a minimização do problema de estoque processual e de tempo de duração, por conseguinte.

Em tempos como os atuais, em que tanto falamos — às vezes, inapropriadamente — de “precedente”, sabemos que certos temas podem e devem ser desde logo tomados como jurisdicionalmente acertados.

Sem entrar no debate (para nós estéril) sobre se essa premissa vale para o intercâmbio de “precedentes” do Judiciário para o plano do processo administrativo [mas já admitindo que, se o que nos faceia é decisão de caráter vinculante (premissa, pensamos, para a manutenção da unidade do sistema), existiria, sim, essa intercambialidade], é preciso inferir: há um campo da experiência jurisdicional que, na medida de sua evolução, vai tornando certos temas alheios a debate (o tema em si, frisemos, não as particularidades fáticas do caso), daí sobrevindo uma espécie de camada apta a reter a formação de processos “novos” sobre bases temáticas “velhas”.

Essa espécie de raciocínio — plenamente viável com as peças normativas de que dispomos hoje — constituiria um tipo de juízo de delibação prévio, com caráter conteudístico e não meramente formal, podendo significar um bom caminho na solução do problema a que antes nos referíamos — do volume de processos e do derivado alongamento em seu tempo de duração.

Essa providência foi inicialmente pensada, em nível judicial, já há tempos, especificamente em 2006, com a introdução do artigo 285-A no Código de Processo Civil então vigente (o de 1973) [1]. Se não foi escandalosamente aplicado em ambiente tributário, dada a formatação não tão interessante das hipóteses ali vertidas, o fato é que esse passo histórico não pode ser esquecido: não é nova a preocupação de nosso sistema processual com o estabelecimento de um filtro preliminar de natureza conteudística-material.

Plantada naquela ocasião, a ideia avançou várias casas no “jogo” da operatividade prática com o Código de 2015, diploma que a reescreveu de modo a assentar, agora sim, hipóteses muito bem delineadas. O fez em seu artigo 332, disposição cuja leitura vale muito à pena refazer:

“Art. 332. Nas causas que dispensem a fase instrutória, o juiz, independentemente da citação do réu, julgará liminarmente improcedente o pedido que contrariar:

I – enunciado de súmula do Supremo Tribunal Federal ou do Superior Tribunal de Justiça;

II – acórdão proferido pelo Supremo Tribunal Federal ou pelo Superior Tribunal de Justiça em julgamento de recursos repetitivos;

III – entendimento firmado em incidente de resolução de demandas repetitivas ou de assunção de competência;

IV – enunciado de súmula de tribunal de justiça sobre direito local.

§ 1º O juiz também poderá julgar liminarmente improcedente o pedido se verificar, desde logo, a ocorrência de decadência ou de prescrição.

§ 2º Não interposta a apelação, o réu será intimado do trânsito em julgado da sentença, nos termos do art. 241.

§ 3º Interposta a apelação, o juiz poderá retratar-se em 5 (cinco) dias.

§ 4º Se houver retratação, o juiz determinará o prosseguimento do processo, com a citação do réu, e, se não houver retratação, determinará a citação do réu para apresentar contrarrazões, no prazo de 15 (quinze) dias.”

Pensando em nível pragmático, é nosso particular interesse realçar o tanto que esse dispositivo pode funcionar, sobretudo quando lidos com atenção os incisos de seu caput, como importante filtro processual — não por aspectos formais, insistamos, mas pela eventual inconsistência do mérito articulado, uma decorrência que há de (ou deveria) ser vista como natural, para sistemas que prestigiam a força de determinados atos decisórios (caso em que o Brasil se coloca).

No âmbito federal, o assunto já gravitava sobre nossas cabeças antes mesmo da introdução do artigo 285-A no Código de Processo Civil de 1973, em razão da Lei nº 10.522/2002, cujo artigo 19, em sua redação original, autoriza(va) a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional a deixar de interpor recurso ou a desistir do interposto, desde que inexista outro fundamento relevante, na hipótese de a decisão “recorrenda” versasse sobre matérias que, por exemplo, estivessem pacificadas no Supremo Tribunal Federal ou no Superior Tribunal de Justiça.

O dispositivo em questão ganhou (e segue ganhando) renovada redação, mas sempre mantida a mesma lógica — válida tanto para a atuação da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, como para a da Receita, sobretudo no que se refere à constituição do crédito tributário —, a saber, de que os “precedentes” impactam (ou podem impactar) positivamente, como filtros de mérito, retendo a formação de novas lides tributárias (aí incluídas, realcemos, as administrativas), assim como o desenvolvimento das que já se instauraram.

Em termos práticos, sem prejuízo do que se contém na Lei nº 10.522/2002, a operação de que falamos poderia ser perfeitamente desenvolvida pelos julgadores administrativos em geral (não só no plano federal) à conta do artigo 332 do Código de Processo Civil de 1973, dada a aplicabilidade preconizada pelo artigo 15 do mesmo codex [2], vale dizer, proposta “demanda” administrativa fundada em tese vencida por decisão tal qual as descritas nos incisos do dispositivo, seria possível o julgamento liminar de mérito do caso, medida que, a um só tempo, (1) tenderia a colocar as jurisdições de que falamos (a judicial e a administrativa) em desejável harmonia, (2) romperia o uso do processo administrativo apenas para fins de adiamento, (3) sem imprimir, a par dessas “vantagens”, um rompimento com o devido processo legal, dado o encaminhamento preconizado nos parágrafos 4° e 5°, preceitos que, além de garantirem a óbvia recorribilidade da decisão (que no caso de um órgão colegiado seria preferencialmente emitida, porque liminar, pelo relator), ainda asseguram o anômalo emprego pelo mesmo julgador, do juízo de retratação — a ser naturalmente utilizado quando constatado que o julgamento liminar se deu fora da pressuposta adequação do caso presente com caso “precedente”.


[1] Art. 285-A. Quando a matéria controvertida for unicamente de direito e no juízo já houver sido proferida sentença de total improcedência em outros casos idênticos, poderá ser dispensada a citação e proferida sentença, reproduzindo-se o teor da anteriormente prolatada.

§ 1º Se o autor apelar, é facultado ao juiz decidir, no prazo de 5 (cinco) dias, não manter a sentença e determinar o prosseguimento da ação.

§ 2º Caso seja mantida a sentença, será ordenada a citação do réu para responder ao recurso.

[2] Art. 15. Na ausência de normas que regulem processos eleitorais, trabalhistas ou administrativos, as disposições deste Código lhes serão aplicadas supletiva e subsidiariamente.

Fonte: Conjur – 21/08/2022

Como funciona a tributação monofásica de PIS/Cofins para empresas do Simples

O regime monofásico de PIS/Cofins, instituído pela Lei nº 10.485 de 3 de julho de 2002, consiste em uma sistemática semelhante à substituição tributária, em que a lei elege, entre os participantes da cadeia produtiva de um produto, aquele que será o responsável pelo recolhimento dos tributos. Nessa sistemática, diferente do que ocorre no regime comum de PIS/Cofins, essas contribuições terão incidência concentrada em uma das etapas de circulação do produto, com encerramento de tributação, uma vez que no regime monofásico as alíquotas praticadas são maiores, para que nas etapas subsequentes o produto passe a circular com alíquota zero.

Em outras palavras, o PIS/Cofins monofásico incide uma única vez na cadeia de circulação do produto até chegar no consumidor final, e o nascimento do fato gerador é unicamente na origem, ou seja, na saída do produto da fábrica, sendo o responsável pelo recolhimento do tributo o industrial, e no caso de produto importado, o importador. Isso significa que aqueles que ocupam as etapas subsequentes, como os atacadistas e varejistas, estão desobrigados de pagar PIS/Cofins sobre a receita dos produtos com incidência monofásica dessas contribuições.

Essa forma de tributação monofásica de PIS/Cofins, se aplica à alguns produtos farmacêuticos e de higiene pessoal, produtos cosméticos e de toucador, bebidas frias e autopeças, que podem ser identificados nos Anexos I e II, da Lei citada acima, que lista os NCM — Nomenclatura Comum do Mercosul dos produtos classificados como monofásicos. A criação dessa sistemática tem como finalidade facilitar a arrecadação e a fiscalização, tendo em vista que, há um número bem maior de atacadistas e varejistas do que de importadores e industriais para serem fiscalizados. Além disso, a tributação concentrada na origem abastece o caixa público de forma antecipada, porém, prejudica o fluxo de caixa das empresas sujeitas a esse regime.

Não obstante, apesar da própria Lei 10.485 de 2002, reduzir a zero as alíquotas de PIS/Cofins relativamente à receita bruta auferida por comerciantes atacadistas e varejistas, as empresas optantes pelo Simples Nacional, fatalmente acabam pagando novamente essas contribuições, seja por não fazerem a segregação das receitas, seja por não realizarem a correta classificação tributária dos produtos que revendem.

Ademais, o desconhecimento gera uma certa confusão acerca do Simples Nacional, que por possibilitar, dentre outras vantagens, a emissão de apenas uma guia para pagamento, muitos acreditam tratar-se de um único tributo, quando na verdade trata-se de um regime compartilhado de arrecadação, cobrança e fiscalização, abrangendo todos os entes federados (União, estados e municípios), bem como todos os tributos (IRPJ, CSLL, PIS, Cofins, ICMS, ISS e CPP).

Veja que, há o pagamento de apenas uma guia, mas o valor do Simples Nacional é distribuído proporcionalmente entre os entes federados de acordo com o percentual de cada um dos tributos de suas respectivas competências, incluindo PIS/Cofins que são tributos federais de competência da União. Desse modo, se os tributos já foram recolhidos por antecipação tributária com encerramento de tributação, o contribuinte deve segregar as receitas decorrentes de operações sujeitas à tributação concentrada em uma única etapa, conforme estabelecido na Lei nº 123 de 14 de dezembro de 2006.

Ocorre que, essa segregação não é algo automático e demanda uma série de ajustes, a começar pela atualização do NCM de cada produto, do cadastro da empresa, e o acompanhamento das alterações legislativas, o que nem sempre é uma tarefa fácil, em função da complexidade da legislação fiscal e de suas constantes alterações.  Assim, essas empresas ficam demasiadamente prejudicadas, uma vez que o pagamento duplicado de PIS/Cofins, além de aumentar a carga tributária, se reflete no preço final do produto, tornando-o menos competitivo. 

A despeito dessa situação, a Instrução Normativa RFB nº 2055, de 06 de dezembro de 2021, regulamenta que o crédito relativo a tributos administrados pela Receita Federal é passível de reembolso e será restituído ou compensado acrescido de juros equivalentes à taxa referencial do Sistema Especial de Liquidação e de Custódia (Selic), acumulados mensalmente. Nesse sentido, as empresas que estão pagando PIS/Cofins a maior em decorrência da monofase, podem fazer pedido administrativo de restituição dos valores pagos a título de tributos indevidos.

O pedido administrativo de restituição é feito no portal do e-Cac, e deve ser efetivado após a retificação da declaração, com a devida segregação das receitas, mas é importante atentar para o apontamento correto das receitas com incidência monofásica de PIS/Cofins. Após a efetivação do pedido administrativo, o prazo médio para a restituição dos créditos de PIS/Cofins é de 60 dias, sendo possível pedir o reembolso dos últimos cinco anos, que é o prazo legal de prescrição do crédito tributário.

Salienta-se que, caso a empresa tenha débitos fiscais, a Receita Federal irá propor a compensação de ofício, ou seja, um ajuste de contas entre o crédito e o débito, sendo o eventual crédito remanescente restituído. A compensação de ofício poderá ser impugnada, mas nesse caso o crédito do contribuinte fica retido até que o débito existente seja integralmente quitado.


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Daniele Barcelos de Albuquerque é advogada, especialista em Direito Fiscal e MBA em Planejamento Tributário Estratégico pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC/RJ).

Fonte: Conjur – 15/08/2022

STJ admite equidade para fixar honorários em execução extinta por CDA cancelada

A necessidade de fixação de honorários advocatícios nos casos de extinção de execução fiscal devido ao cancelamento administrativo da dívida, apesar de não estar prevista em lei, não pode causar ônus excessivo ao poder público.

Com esse entendimento, a 1ª Turma do Superior Tribunal de Justiça negou provimento ao recurso especial ajuizado contra acórdão que usou a técnica da equidade para reduzir os honorários devidos aos advogados de uma empresa de comércio de alimentos.

A empresa em questão foi alvo de execução fiscal, e os advogados interpuseram uma exceção de pré-executividade. A própria Fazenda municipal, então, cancelou administrativamente a Certidão da Dívida Ativa (CDA), e, por causa desse ato, a execução foi extinta sem resolução do mérito.

Pela Lei de Execução Fiscal, um caso como esse não geraria honorários de sucumbência. O artigo 26 prevê que, se antes da decisão de primeira instância a inscrição de divida ativa for, a qualquer título, cancelada, não haverá ônus para qualquer das partes.

No entanto, o STJ fixou jurisprudência segundo a qual é justo remunerar a defesa técnica apresentada pelo advogado do executado em momento anterior ao cancelamento administrativo da CDA. O entendimento gerou a Súmula 153 da corte.

Assim, a fixação de honorários no caso obedeceria a regra do artigo 85, parágrafo 3º, inciso II, do Código de Processo Civil de 2015, que prevê entre 8% e 10% sobre o valor da condenação ou do proveito econômico obtido.

Isso significaria, para os advogados da empresa de alimentos, R$ 107, 2 mil. O Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, porém, considerou esse montante abusivo, principalmente porque a extinção da execução fiscal sequer considerou a exceção de pré-executividade ajuizada pelos patronos.

Para evitar o enriquecimento sem causa dos advogados e verba honorária demasiadamente excessiva em desfavor da Fazenda, o tribunal de segundo grau deu provimento à apelação do município e reduziu o valor para R$ 25 mil.

Ônus excessivo
Relator no STJ, o ministro Gurgel de Faria observou que, apesar de o CPC de 2015 ter inaugurado uma exauriente disciplina para fixação de honorários, não foi capaz de evitar que sua aplicação, em algumas situações, acabe gerando distorções.

É esse o caso dos autos. Quando a Fazenda cancelou a CDA, toda a argumentação feita pela defesa do contribuinte perdeu qualquer utilidade e sequer pôde ser considerada na decisão de extinguir a execução fiscal.

“Não há, pois, objetiva e direta relação de causa e efeito entre a atuação do advogado e o proveito econômico obtido pelo seu cliente a justificar que a verba honorária seja necessariamente deferida com essa base de cálculo”, concluiu o ministro Gurgel de Faria.

Por isso, segundo ele, é cabível o uso da equidade para fixação de honorários. Não seria razoável impor à Fazenda municipal, bem menos poderosa economicamente do que a Fazenda Nacional, um ônus financeiro tão grande por espontaneamente informar o juízo sobre o cancelamento da CDA.

Entender diferente, segundo o relator, vai apenas incentivar as Fazendas municipais a manter a litigiosidade mesmo nos casos em que, prematuramente, perceber que a dívida fiscal é infundada. Haveria, ainda, o esvaziamento completo do artigo 26 da Lei de Execução Fiscal.

Distinguishing
“Esses casos em que o trabalho prestado pelo advogado da parte vencedora tenha se mostrado absolutamente desinfluente para o resultado do processo, tenho que a sua remuneração não deve ficar atrelada aos percentuais mínimos e máximos estabelecidos no parágrafo 3º, devendo ser arbitrada por juízo de equidade do magistrado”, afirmou o ministro Gurgel de Faria.

O voto destacou que isso não significa declaração de inconstitucionalidade ou negativa de vigência do parágrafo 3º do artigo 85 do CPC, mas apenas interpretação sistemática de regra do processo civil orientada conforme os princípios constitucionais da razoabilidade e da proporcionalidade.

O ministro também apontou que o caso não se enquadra na hipótese de aplicação da tese fixada pela Corte Especial do STJ que vedou o uso da equidade para fixação de honorários fora das hipóteses do artigo 85, parágrafo 8º, do CPC.

“A solução adotada no caso concreto decorre da interpretação do art. 26 da LEF, aspecto não tratado no precedente obrigatório, o que justifica a distinção. Diante desse contexto, deve ser mantido o valor dos honorários advocatícios estabelecidos mediante apreciação equitativa realizada pelo tribunal de origem”. A votação na 1ª Turma foi unânime.

Clique aqui para ler o acórdão
AREsp 1.967.127

Fonte: Conjur – 12/08/2022

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