Como as empresas devem lidar com as inúmeras normas tributárias no Brasil

Não é novidade que o contribuinte daqui precisa lidar com um emaranhado de normas das diversas esferas tributárias (União, estados e municípios), o que confere ao nosso sistema tributário um grau de extrema complexidade.

No Brasil sempre vivemos a inflação normativa tributária, são cerca de 831 normas tributárias criadas por dia útil, gastamos quase 1.400 horas somente para o preenchimento de obrigações acessórias com a finalidade de cumprir as normas e recolher os tributos, cuja carga chegou em 33,9% do PIB.

Estudo do Instituto Brasileiro de Planejamento e Tributação (IBPT) [1]demonstrou que para uma empresa estar em dia com suas obrigações tributárias, precisa cumprir o que consta em 4.626 normas, quantidade essa que se fossem impressas, em folha de formato A4, certamente ocupariam a avenida Paulista, ida e volta, cerca de 6,5 quilômetros de extensão!

Fora isso, no Brasil cerca de 2,21 norma tributária é editada por cada hora útil. São mais de 3 mil palavras por norma [2].

Um mesmo contribuinte, por exemplo, na maioria das vezes, tem que lidar com a legislação federal, estadual e municipal, tentando estar em compliancecom essas normas para seguir com o seu negócio. Não é uma tarefa fácil, em termos de legislação tributária e fiscal a complexidade é enorme.

As propostas de reforma e simplificação do sistema tributário e redução do contencioso tributário estão em curso, mas ainda caminham a passos de tartaruga e são muito tímidas, além de enfrentarem as costumeiras barreiras criadas pelas próprias administrações, sob o useiro e vezeiro fundamento de se evitar queda na arrecadação.

Fato é que para se chegar ao efetivo recolhimento do tributo, o contribuinte precisa passar por uma “via crucis”, cumprindo uma série de obrigações e normas acessórias para apresentar ao fisco, as quais são alteradas periodicamente dando a sensação de que se está correndo atrás do próprio rabo numa guerra sem fim.

Diante desse cenário, em que pese nossa busca contínua e incessante pela simplificação e pela reforma tributária, sabemos que tais alterações não virão da noite para o dia, de modo que a orientação consultiva e preventiva é a melhor forma de lidar com tais questões para o contribuinte não ser pego de surpresa quanto às obrigações acessórias, palco de inúmeras autuações por parte do fisco.

Estar em conformidade tributária é adotar ações internas nas empresas, com as respectivas áreas envolvidas (tributária, fiscal, compras, TI), para que a informação final que o fisco receberá esteja de acordo (em compliance) com o que ele (o fisco) espera, sob pena das “pontas” ficarem soltas originando as costumeiras autuações fiscais por inconsistências de informações e obrigações.

O cruzamento de informações, num cenário de constante inflação normativa, deve ser muito bem mapeado evitando o envio de dados equivocados que colocam o contribuinte em risco.

Neste sentido, hoje as empresas têm dois caminhos a trilhar, o corretivo e o preventivo.

No corretivo, a empresa trabalha com a autorregularização, fazendo um mapeamento das inconsistências e adotando um plano de ação percebendo o que precisa ser mitigando antes do fisco iniciar sua ação fiscal (evitando autuações desnecessárias).

Por sua vez, no preventivo, a empresa busca olhar para o futuro ao adotar as medidas de compliance como forma de um planejamento contínuo para que não incorram em erros com as mudanças na legislação, mantendo um histórico saudável.

O fato de a administração tributária ter prazo de cinco anos para fiscalizar o contribuinte, não pode ser motivo para deixar de adotar as medidas corretivas e mitigadoras, bem como as preventivas no processo de preenchimento das obrigações acessórias, evitando autuações que sempre serão retroativas, com a inclusão de juros e multas.

Ao adotar um plano de ação, com a participação das principais áreas envolvidas no cumprimento das obrigações tributárias, o contribuinte estará em conformidade, pois, além de mitigar riscos, evitando perda de recursos, existem contrapartidas interessantes, tem-se, como exemplo, o programa da Secretaria da Fazenda e Planejamento do Estado de São Paulo denominado “nos conformes”, e a recente possibilidade de apropriação de créditos acumulados do ICMS de forma mais simplificada, mas tão somente para aqueles contribuintes que estão em conformidade com as normas estaduais de ICMS.

A conformidade tributária é um investimento de suma importância para as empresas, seja na área fiscal, tributária, TI, sistemas, consultorias externas de apoio etc., pois o compliance tributário melhora a concorrência, traz transparência e aumenta a visibilidade positiva das empresas, conferindo maior competitividade ao negócio.


[1] Estudo do IBPT sobre quantidade de normas tributárias é citado em diversas matérias jornalísticas – IBPT Instituto. Acesso 13.09.2022.

[2] Em comemoração aos 33 anos da Constituição Cidadã, IBPT divulga novo estudo – IBPT Instituto. Acesso 12.09.2022.

Caio Cesar Braga Ruotolo é advogado tributarista em São Paulo, associado do escritório Luiz Silveira Sociedade de Advogados, membro do Conselho de Assuntos Tributários da Fecomércio em São Paulo, pós-graduado com Especialização em Direito Empresarial pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e em Direito Constitucional pela Escola Superior de Direito Constitucional e em Gestão de Recursos Humanos.

Revista Consultor Jurídico, 10 de outubro de 2022, 6h04

Nulidades no processo administrativo fiscal

No processo administrativo federal, a anulação, revogação e convalidação de atos administrativos encontram-se disciplinadas nos artigos 53 a 55 da Lei nº 9.784/1999,[1] dos quais se extrai a compreensão de que a anulação de atos administrativos ilegais é um dever da Administração Pública e não uma faculdade, inserindo-se, portanto, no contexto da obrigatoriedade e da vinculação à lei e não da discricionariedade.

No Processo Administrativo Fiscal (PAF), regido precipuamente, na esfera federal, pelo Decreto nº 70.235/1972, as nulidades encontram-se previstas no artigo 59 desse ato normativo,[2] em que se consideram nulas a lavratura de atos e termos por pessoa incompetente e a prolação de despacho e decisões por autoridade incompetente, bem como as decisões exaradas com preterição do direito de defesa.

Já o artigo 60 do mesmo decreto cuida das irregularidades, incorreções e omissões, diferentes das nulidades, que são passíveis de validação, por meio de saneamento, nas hipóteses de prejuízo para o sujeito passivo, salvo se este lhes houver dado causa, ou quando não influírem na solução do litígio.

Frise-se que o artigo 59 do Decreto nº 70.235/1972 versa sobre hipóteses normativas de nulidade absoluta (atos nulos), em que inexiste a possibilidade de convalidação do ato (medida essa passível de aplicação somente em relação à nulidade relativa, ou seja, aos atos anuláveis, na mesma linha do art. 60 acima referenciado),[3] situação em que a preservação da legalidade administrativa se impõe, com a retirada do ato do mundo jurídico, independentemente de provocação dos interessados, dado o poder de autotutela de que detém a Administração Pública.[4]

Nos termos da súmula do Supremo Tribunal Federal (STF) nº 346, “a Administração Pública pode declarar a nulidade dos seus próprios atos”; dessa forma, considerando-se que os fatos que servem de suporte a uma decisão administrativa integram a validade do ato, a ocorrência de motivos de fato falsos, ou seja, a utilização do ato administrativo como suporte à satisfação de finalidades alheias àquela prevista em lei (interesse público), vicia o ato de invalidade em razão do “desvio de poder”, ou do “mau uso da competência”,[5] situação em que a declaração de nulidade se impõe.

Não se pode ignorar que, em sua atuação, a Administração Pública, diversamente dos particulares, deve buscar sua legitimidade na realização de interesses públicos, sendo os meios jurídicos a ela disponibilizados veículos para o atingimento dos seus fins, inclusive, obviamente, nos atos vinculados de administração contenciosa, e nunca para a satisfação de interesses particularizados.

Quando um ato administrativo é produzido em desconformidade com a ordem jurídica, ele se evidencia inválido (nulo, anulável, inexistente, defeituoso juridicamente etc.), podendo ser assim qualificado pela própria Administração, de ofício ou por meio de provocação ou denúncia de terceiros.

Merece destaque, neste ponto, que, inobstante o rigor conceitual adotado pelos doutrinadores administrativistas em relação à diferenciação das hipóteses de invalidade dos atos administrativos, verifica-se, nas normas tributárias, a adoção dos termos “ato administrativo nulo” e “ato administrativo anulável” de forma não muito tecnicamente diferenciada, sendo ambos tratados, em sua materialidade, como “atos inválidos”, termo esse privilegiado por Celso Antônio Bandeira de Mello ao cuidar dos atos administrativos contrários ao direito.[6]

Exemplificativamente, tem-se que, no artigo 54, § 1º, da Lei nº 9.784/1999, em que se estabelece a decadência do direito da Administração anular atos administrativos, não se faz distinção entre atos nulos e anuláveis, sendo o prazo de cinco anos ali previsto (salvo comprovada má-fé) aplicável a ambas as situações.[7]

Pelo dever de obediência à legalidade, havendo ofensa ao direito, a Administração deve eliminar os atos viciados e seus efeitos, ab initioex tunc, retroativamente, sendo que, tratando-se de vício grave (conduta criminosa ofensiva a direitos e garantias fundamentais, como à igualdade, à legalidade e à ampla defesa), jamais podem prescrever (Teoria da imprescritibilidade dos efeitos do ato nulo), por se configurarem “atos inexistentes” ou “fora do possível jurídico e radicalmente vedados pelo Direito”.[8]

Referida teoria encontra-se em consonância com o artigo 169 do Código Civil brasileiro (Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002), que estipula que o negócio jurídico nulo não é suscetível de confirmação, nem convalesce pelo decurso de tempo.

Diante de atos inválidos, inexiste discricionariedade administrativa, pois “a Administração não pode conviver com relações jurídicas formadas ilicitamente”, sendo seu dever “recompor a legalidade ferida”, fulminando o ato viciado e pronunciando sua invalidação, salvo nos casos em que, em prol dos princípios da segurança jurídica e da boa-fé, for possível a sua convalidação, mas somente em relação a atos anuláveis,[9] que podem ser refeitos sem vício, nunca a atos nulos.[10]

A impossibilidade de se convalidar um ato nulo deriva da existência de vício no motivo de sua expedição ou em sua finalidade, isto porque se trata de situação de fato, cuja alteração com efeito retroativo se inviabiliza, “não se [podendo] corrigir um resultado que estava na intenção do agente que praticou o ato”.[11]

No processo administrativo, exige-se que a Administração Pública, além do dever de observar os fins estabelecidos em lei, aja de acordo com as normas procedimentais estabelecidas para tanto, de forma a evidenciar o itinerário utilizado para se chegar ao ato decisório prolatado.

O julgador administrativo, precipuamente aquele que atua na segunda instância, tem de se ater ao princípio da imparcialidade, devendo agir, no cumprimento de seus deveres, de acordo com as formalidades estabelecidas pelo legislador, sob pena de se violar a própria finalidade do ato decisório ou algum objetivo desejado pela lei.[12]

De acordo com o artigo 37 da Constituição, a Administração Pública deve observar, dentre outros, o princípio da impessoalidade, segundo o qual deve-se manter a neutralidade de sua atividade, esta orientada, repita-se, no sentido da realização do interesse público. É a Administração a autora institucional dos atos que expede, tornando-se relevante a individualização ou personificação do agente que desempenha função pública somente quando este atua, “não como expressão da vontade do Estado, mas como expressão de veleidade, capricho ou arbitrariedade pessoal”.[13]

A “imoralidade administrativa” é “fundamento de nulidade do ato viciado”, pois a moralidade de que trata o artigo 37 da Constituição Federal (moralidade jurídica) “não é meramente subjetiva, porque não é puramente formal, porque tem conteúdo jurídico, a partir de regras e princípios da Administração”.” A lei pode ser cumprida moralmente ou imoralmente. Quando sua execução é feita, por exemplo, com o intuito de prejudicar ou de favorecer alguém deliberadamente, por certo que se está produzindo um ato formalmente legal, mas materialmente ofensivo à moralidade administrativa.”[14]

Nesse sentido, desde muito, a Administração já se encontra obrigada pelo ordenamento jurídico a declarar a nulidade de seus atos quando eivados de ilegalidade ou prolatados em desfavor do interesse público, vindo o artigo 80 do Anexo II do Regimento Interno do Carf (Ricarf), em prol dos direitos fundamentais à ampla defesa e ao contraditório, a disciplinar, pormenorizadamente, o rito a ser adotado no âmbito do Processo Administrativo Fiscal (PAF) para se declarar a nulidade de uma decisão do colegiado, evitando-se dessa forma a prolação de uma lacônica declaração de nulidade do ato decisório, passível de contestação por parte dos interessados somente pela via do Poder Judiciário.

Nesse sentido, em conformidade com o referido artigo 80 do Ricarf, havendo a prolação de um acórdão de segunda instância com a participação no colegiado, devidamente comprovada, de conselheiro impedido (artigo 42 do Anexo II do Ricarf) ou com inobservância inequívoca das normas tributárias válidas e vigentes (artigo 62 do Anexo II do Ricarf), o colegiado deverá declarar a nulidade de sua decisão, observando-se as regras contidas nos artigos 53 e 54 da Lei nº 9.784/1999, dentre elas a nulidade imprescritível do ato administrativo prolatado com má-fé.

Concluindo, ressalta-se que admitir a preservação de uma decisão administrativa colegiada exarada em desconformidade com as regras processuais garantidoras da imparcialidade, ampla defesa e contraditório fulmina o processo administrativo fiscal em sua substancialidade, ruindo os objetivos imanentes às normas administrativas processuais, dentre elas a “proteção dos direitos dos administrados e [o] melhor cumprimento dos fins da Administração” (artigo 1º, caput, da Lei nº 9.784/1999) e a garantia da efetividade dos “princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência” (artigo 37 da Constituição Federal).


[1] Art. 53. A Administração deve anular seus próprios atos, quando eivados de vício de legalidade, e pode revogá-los por motivo de conveniência ou oportunidade, respeitados os direitos adquiridos.

Art. 54. O direito da Administração de anular os atos administrativos de que decorram efeitos favoráveis para os destinatários decai em cinco anos, contados da data em que foram praticados, salvo comprovada má-fé.

§ 1º No caso de efeitos patrimoniais contínuos, o prazo de decadência contar-se-á da percepção do primeiro pagamento.

§ 2º Considera-se exercício do direito de anular qualquer medida de autoridade administrativa que importe impugnação à validade do ato.

Art. 55. Em decisão na qual se evidencie não acarretarem lesão ao interesse público nem prejuízo a terceiros, os atos que apresentarem defeitos sanáveis poderão ser convalidados pela própria Administração. (destaques nossos)

[2] Art. 59. São nulos:

I – os atos e termos lavrados por pessoa incompetente;

II – os despachos e decisões proferidos por autoridade incompetente ou com preterição do direito de defesa.

§ 1º A nulidade de qualquer ato só prejudica os posteriores que dele diretamente dependam ou sejam conseqüência.

§ 2º Na declaração de nulidade, a autoridade dirá os atos alcançados, e determinará as providências necessárias ao prosseguimento ou solução do processo.

§ 3º Quando puder decidir do mérito a favor do sujeito passivo a quem aproveitaria a declaração de nulidade, a autoridade julgadora não a pronunciará nem mandará repetir o ato ou suprir-lhe a falta.

Art. 60. As irregularidades, incorreções e omissões diferentes das referidas no artigo anterior não importarão em nulidade e serão sanadas quando resultarem em prejuízo para o sujeito passivo, salvo se este lhes houver dado causa, ou quando não influírem na solução do litígio.

Art. 61. A nulidade será declarada pela autoridade competente para praticar o ato ou julgar a sua legitimidade.

[3] Hely Lopes Meirelles não admite a ocorrência de atos anuláveis na esfera administrativa, mas apenas de atos nulos (NEDER, Marcos Vinicius; LÓPEZ, Maria Teresa Martínez. Processo administrativo fiscal federal comentado: de acordo com a Lei nº 11.941, de 2009, e o Regimento Interno do CARF. 3. ed. São Paulo: Dialética, 2010, p. 556).

[4] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 35. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2022, p. 250.

[5] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 15. ed. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 363 a 372.

[6] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 15. ed. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 420 a 426.

[7] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 15. ed. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 439.

[8] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 15. ed. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 424 a 427.

[9] Exemplos de atos anuláveis: atos editados com vício de vontade ou com defeito de formalidade.

[10] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 15. ed. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 431 a 433.

[11] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 35. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2022, p. 252.

[12] NEDER, Marcos Vinicius; LÓPEZ, Maria Teresa Martínez. Processo administrativo fiscal federal comentado: de acordo com a Lei nº 11.941, de 2009, e o Regimento Interno do CARF. 3. ed. São Paulo: Dialética, 2010, p. 558 a 561.

[13] SILVA, José Afonso de. Comentário contextual da Constituição. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 335 a 336.

[14] SILVA, José Afonso de. Comentário contextual da Constituição. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 336.

Hélcio Lafetá Reis é presidente da 1ª Turma Ordinária da 2ª Câmara da 3ª Seção do Carf; auditor fiscal da Receita Federal desde 4 de julho de 1995; mestre em Direito Público pela PUC-MG (2012) e graduado em Direito pela UFMG (2005); pós-graduado em Gestão de Direito Tributário pela FGV (2006) e em Filosofia e Teoria do Direito pela PUC-MG (2017).

Revista Consultor Jurídico, 7 de outubro de 2022, 6h01

STF invalida lei do Maranhão que reduziu ICMS para cerveja à base de mandioca

Para o Plenário, o benefício fiscal não segue as regras da Constituição Federal.

O Supremo Tribunal Federal (STF) declarou inconstitucional norma do Estado do Maranhão que estabelecia alíquota reduzida (12%) do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) para as operações com cervejas que contenham, no mínimo, 15% de fécula de mandioca em sua composição. Na sessão virtual encerrada em 30/9, o colegiado, por unanimidade, julgou procedente o pedido formulado na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 6152.

A ação foi proposta pela Associação Brasileira de Bebidas (Abrabe) contra dispositivos da Lei estadual 11.011/2019 que acrescentaram a regra à Lei estadual 7.799/2002. Entre outros argumentos, a entidade alegava que a norma estabelecia condições tributárias desiguais para contribuintes em situação equivalente.

Impacto

Em seu voto, o relator, ministro Edson Fachin, verificou que a lei foi instruída sem a estimativa do seu impacto financeiro e orçamentário, como exige o artigo 113 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT). Segundo Fachin, essa exigência deve ser observada para dar conformidade ao devido processo legislativo.

Convênio

Ele constatou, ainda, que não houve autorização em convênio celebrado no Conselho Nacional de Política Fazendária (Confaz) para concessão do benefício fiscal, exigência do artigo 155 da Constituição Federal.

Seletividade

O relator também avaliou que a norma maranhense acarreta desigualdade inconstitucional e desequilíbrio concorrencial, pois não aponta um critério de discriminação ao estabelecer a renúncia fiscal em razão da matéria-prima, o que, a seu ver, parece ter um destinatário específico.

Por fim, para Fachin, a lei também ofende o princípio da seletividade, que busca beneficiar as camadas menos favorecidas da população, que têm parte mais significativa da renda comprometida com mercadorias e serviços essenciais. Em seu entendimento, porém, não parece ser o caso das cervejas com fécula de mandioca em sua composição. A seu ver, a medida visa fomentar a atividade econômica e a geração de emprego, “o que, entretanto, não guarda especificidade com a operação subsidiada”.

Ressalvas

Os ministros Luís Roberto Barroso, Gilmar Mendes e Nunes Marques acompanharam o relator com ressalvas na fundamentação. Eles só acolheram a alegação de inconstitucionalidade referente à ofensa ao 113 do ADCT e à ausência de autorização em convênio pelo Confaz. 

SP/AD//CF

Fonte: Notícias do STF

ARTIGO DA SEMANA – Base de cálculo do ITBI: solução para o problema é o lançamento por homologação

João Luís de Souza Pereira. Advogado. Mestre em Direito. Professor convidado da Pós-graduação da FGV Direito Rio. Professor convidado do IAG/PUC-Rio

De acordo com o artigo 38, do CTN, a base de cálculo do ITBI é o valor venal dos bens ou direitos transmitidos.

A legislação dos municípios detalha o conceito de valor venal. O art. 14, parágrafo único, da Lei Municipal do Rio de Janeiro nº 1.364/88, por exemplo, afirma que Entende-se por valor venal o valor corrente de mercado do bem ou direito.

Não raro, os municípios adotam, para efeito de ITBI, o mesmo valor venal utilizado como base de cálculo do IPTU, daí resultado grave problema.

O Superior Tribunal de Justiça, através do Tema 1.113 dos Recursos Repetitivos, analisando as controvérsias acerca da base de cálculo do imposto, definiu que a) a base de cálculo do ITBI é o valor do imóvel transmitido em condições normais de mercado, não estando vinculada à base de cálculo do IPTU, que nem sequer pode ser utilizada como piso de tributação; b) o valor da transação declarado pelo contribuinte goza da presunção de que é condizente com o valor de mercado, que somente pode ser afastada pelo fisco mediante a regular instauração de processo administrativo próprio (art. 148 do CTN); c) o Município não pode arbitrar previamente a base de cálculo do ITBI com respaldo em valor de referência por ele estabelecido unilateralmente.

Portanto, para o Tribunal da Cidadania a base de cálculo do ITBI é o valor da operação declarado pelas partes, cabendo, obviamente, avaliação contraditória pelo município mediante regular processo administrativo.

Todavia, em razão de tratar-se de imposto submetido ao lançamento por declaração, a orientação decorrente do Tema 1.113 não tem resolvido o problema.

Nos termos do art. 13, da Lei nº 1.364/88, “O Lançamento do imposto será efetuado na repartição fazendária competente”. Embora possa parecer que o ITBI no Rio de Janeiro será lançado de ofício, a verdade é que a emissão da guia de recolhimento depende de prévias informações prestadas pelo contribuinte ou por terceiros, daí não havendo dúvida de que se trata de imposto sujeito ao lançamento por declaração.

À luz do que restou pacificado no Tema 1.113, uma vez recebidas as informações/declarações do interessado, cabe ao fisco ao municipal tomar uma das seguintes providências: (a) emitir a guia do ITBI calculando o imposto pelo exato valor da base de cálculo informada ou (b) dar início a procedimento de ofício, assegurando ampla defesa e contraditório, com vistas a arbitrar a base de cálculo do imposto.

Porém, para os municípios nada mudou. O valor declarado pelo interessado para efeito de cálculo do ITBI continua sendo ignorado pela municipalidades e as guias do imposto continuam a ser emitidas por valor diverso daquele objeto da declaração.

É bem verdade que, não concordando com a base de cálculo adotada pelo município por ocasião da emissão da guia de pagamento do ITBI, o contribuinte pode apresentar impugnação com o objetivo de ser revista da base de cálculo.

Mas o problema é que a impugnação, que suspende a exigibilidade do ITBI (art. 151, III, do CTN) e por isso mesmo viabiliza a expedição de certidão de regularidade fiscal (art. 206, do CTN), não permite que o contribuinte obtenha o registro da escritura pública junto ao Cartório competente. 

Isto porque os oficiais de registro, numa interpretação equivocada do artigo 289[1] da Lei de Registros Públicos (Lei nº 6.015/73), entendem que a “rigorosa fiscalização do pagamento dos impostos devidos por força dos atos que lhes forem apresentados em razão do ofício” não lhes permite realizar o registro mediante a prova de que o lançamento do ITBI está sendo objeto de tempestiva impugnação.

Os oficiais de registro dão a mesma interpretação, restritiva e equivocada, ao art. 30, XI, da Lei nº 8.935/94: 

Art. 30. São deveres dos notários e dos oficiais de registro:

XI – fiscalizar o recolhimento dos impostos incidentes sobre os atos que devem praticar;

Para piorar, o caput do art. 20[2], da Lei nº 1.364/88, contrariando jurisprudência histórica do STF, estabelece como regra o pagamento antecipado do ITBI e o arts. 23, I[3] e 24[4], impõem solidariedade do tabelião, escrivão e demais serventuários pelo pagamento do imposto e imposição de multa de 50%.

Consequentemente, o comprador que tenha a intenção e o justo direito de ver a escritura rapidamente registrada não tem a apresentação de impugnação do ITBI como uma opção.

Prevalecendo a orientação do Tema 1.113 e as equivocadas interpretações dadas pelos oficiais de registro às leis federais, a solução é o ingresso no Judiciário, submetendo o contribuinte ao pagamento de Taxa Judiciária, Custas Judiciais e, eventualmente, honorários periciais.

No entanto, há solução muito mais simples que depende exclusivamente do legislador municipal e do Poder Executivo: basta que a Lei nº 1.364/88 passe a dispor que o imposto será submetido ao lançamento por homologação e, ato contínuo, que a Secretaria Municipal de Fazenda adote as providências necessárias para que a guia de pagamento do ITBI seja preenchida e paga pelo próprio contribuinte/interessado, por sua conta e risco, sempre ressalvada a possibilidade de arbitramento da base de cálculo pelo Município, mas após o pagamento e sempre respeitados a ampla defesa e o contraditório.


[1] Art. 289. No exercício de suas funções, cumpre aos oficiais de registro fazer rigorosa fiscalização do pagamento dos impostos devidos por força dos atos que lhes forem apresentados em razão do ofício. 

[2] Art. 20 – O imposto será pago antes da realização do ato ou da lavratura do instrumento, público ou particular, que configurar a obrigação de pagá-lo, exceto nos seguintes casos:

[3] Art. 23 – O descumprimento das obrigações previstas nesta lei sujeita o infrator às seguintes penalidades:

I – de 50% (cinqüenta por cento) do valor do imposto devido, na prática de qualquer ato relativo à transmissão de bens ou de direitos sobre imóvel, sem o pagamento do imposto nos prazos legais;

[4] Art. 24 – Os tabeliões, escrivães e demais serventuários de ofício respondem solidariamente com o contribuinte pelos tributos devidos sobre os atos praticados por eles e perante eles, em razão de seu ofício, quando seja impossível exigir do contribuinte o cumprimento da obrigação principal.

O que gera tantos litígios tributários?

Não raro ouvimos especialistas a apontar o excesso de processos em matéria tributária, aludindo a uma “cultura do litígio” que os incentivaria. Aproveita-se para sugerir soluções ao problema, a exemplo do uso de métodos alternativos à jurisdição, como a transação e a arbitragem. É o contexto em que surgem, também, os defensores de uma execução fiscal administrativa.

Como todo problema complexo, por certo há várias causas, mas neste texto se pretende examinar basicamente uma, que é central: o desrespeito aos precedentes. E, ao cabo, avaliar se da premissa decorrem os diagnósticos e as soluções propostas.

Quanto à principal causa para o excesso de processos judiciais, sabe-se que a maioria das questões que pendem no âmbito dos Tribunais têm a Fazenda Pública como parte. União, Estados, Distrito Federal, Municípios, e entes da administração indireta. Além das questões tributárias, que são muitas, há ainda as relativas a servidores públicos, e ao Direito Previdenciário.

Grande parte dessas questões seriam evitáveis. Bastaria que a Administração Pública em geral, e a Tributária em particular, respeitasse os precedentes. Mas nem as Delegacias Regionais de Julgamento da Receita Federal respeitam os precedentes do Carf — quando favoráveis ao contribuinte. Invocam o artigo 100 do CTN para alegar que as decisões dos órgãos de julgamento só integram a legislação tributária quando têm força vinculante, ignorando todas as demais. Decisões judiciais, só se proferidas em sede de recursos repetitivos, ou repercussão geral, e ainda assim às vezes se encontram caminhos para “interpretá-las” e assim reduzir seu alcance.

É bem provável que você, leitora, já tenha passado por isso: comparecer a uma repartição pública do Poder Executivo, na tentativa de ver uma pretensão acolhida, e escutar do servidor o seguinte: “A senhora até pode ter razão. Se for à Justiça, vai ganhar. Mas eu não posso fazer nada, porque a orientação é negar, e eu tenho que me preservar”.

Se preservar, no contexto do serviço público, parece ser, muitas vezes, negar a pretensão de um cidadão, ainda que de modo ilegal, desde que isso não favoreça terceiros, beneficiando apenas os interesses da própria Administração Pública.

São condutas assim que tornam o Judiciário repleto de processos que não precisariam existir, ocupando o tempo de magistrados, servidores e demais profissionais do Direito, que se poderiam estar dedicando a questões relevantes, ainda pendentes de solução definitiva. Incrementa-se, ainda, a possibilidade de se proferirem decisões discrepantes, ou de pessoas — as que vão e as que não vão ao Judiciário — receberem tratamentos diferentes para situações semelhantes, maltratando o princípio da igualdade e reclamando, no futuro, a reabertura de questões, e de novas polêmicas, com a que o Supremo Tribunal Federal está agora a deslindar, relativa à coisa julgada em questões tributárias diante de decisões definitivas contrárias à jurisprudência dominante. Jurisprudência defensiva e o bloqueio de recursos com o uso de critérios totalmente irrazoáveis, além do uso de algoritmos para apreciação de processos em massa, com a consequente perda da qualidade dessas apreciações, são sequelas também.

Quando o Supremo Tribunal Federal reconhece a ilegitimidade de uma exigência tributária, mas limita temporalmente os efeitos de sua decisão, “modulando-os” para o futuro, dá outra forte sinalização no sentido de que se ajuízem ações que poderiam ser evitadas. Isso porque o instituto da modulação, além de estar sendo usado, em matéria tributária, com frequência talvez superior à razoável, não raro ressalva o direito daqueles que já haviam movido ações até determinada data. Ou seja, na dúvida sobre se o STF declarará, ou não, uma exigência constitucional, o recado que se dá ao cidadão é: mova a sua ação individual, o quanto antes, pois se deixar para se movimentar depois da decisão, pode ser prejudicado por uma atribuição de efeitos ex nunc. O correto, nesse cenário, seria não só não se proceder à modulação, como também a Fazenda respeitar, de ofício, os efeitos da decisão, com a devolução do tributo indevidamente pago a todos os contribuintes, independentemente de pedido. A redução no número de feitos — totalmente desnecessários — seria enorme.

E, por último, a leitora pode estar pensando: e o que tudo isso tem a ver com transação, arbitragem, e execução administrativa, institutos citados no começo deste artigo? Nada. É incompreensível, por isso mesmo, que o suposto excesso de demandas seja usado como fundamento para defender tais institutos. A principal causa de insucesso das execuções fiscais é não se localizar o devedor, ou não se localizarem bens penhoráveis. Nesse caso, transação, arbitragem, e execução administrativa, seriam igualmente malsucedidas. Sem entrar nos méritos de tais institutos, o fato é que não dá para transacionar ou fazer arbitragem com quem não é encontrado, ou executar administrativamente quem não tem nada. 

Na verdade, talvez as execuções judiciais não sejam tão ineficazes assim, pois é preciso colocar na estatística aquelas que sequer precisam ser movidas, porque os contribuintes, não querendo ser executados, pagam espontaneamente. Esse número é bem grande. Aliás, sobre a criação de uma execução fiscal administrativa, o entendimento do STF sobre a chamada “averbação pré-executória” dá fortes indicativos de que a Corte — se mantiver a coerência com seus precedentes — não consideraria constitucional a constrição patrimonial, diretamente pelo Fisco, sem a necessária interveniência do Judiciário. Mas, de uma forma ou de outra, o excesso de processos, e o alegado insucesso das execuções que tramitam junto ao Judiciário, não tem nada a ver com isso.

Hugo de Brito Machado Segundo é mestre e doutor em Direito, professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará, professor do Centro Universitário Christus (graduação/mestrado), membro do Instituto Cearense de Estudos Tributários (Icet) e da World Complexity Science Academy (WCSA), advogado e visiting scholar da Wirtschaftsuniversität de Viena (Áustria).

Revista Consultor Jurídico, 5 de outubro de 2022, 10h43

×