Mesmo sem penhora na execução fiscal, crédito tributário tem preferência na arrematação de bem do devedor

Em julgamento de embargos de divergência, a Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça (STJ) estabeleceu que a Fazenda Pública tem preferência para habilitar seu crédito na arrematação levada a efeito em processo executivo movido por terceiro, independentemente da existência de penhora na execução fiscal. 

Por unanimidade, os ministros entenderam que, não havendo penhora na execução fiscal, garante-se o exercício do direito do credor privilegiado mediante a reserva da totalidade (ou de parte) do produto da arrematação do bem do devedor ocorrida na execução de terceiros.

Com o julgamento, o colegiado pacificou entendimentos divergentes entre a Primeira e a Quarta Turmas e deu provimento aos embargos de divergência interpostos pelo Estado de Santa Catarina contra acórdão da Primeira Turma que considerou necessário haver pluralidade de penhoras sobre o mesmo bem para ser instaurado o concurso de preferências.

Em seu recurso, o embargante apontou julgado da Quarta Turma segundo o qual a Fazenda Pública deve receber de forma preferencial, sem concorrer com credor quirografário do devedor em comum, independentemente de o crédito tributário estar ou não garantido por penhora nos autos da respectiva execução fiscal (AgInt no REsp 1.328.688).

Ordem de preferência na satisfação do crédito

O relator na Corte Especial, ministro Luis Felipe Salomão, explicou que o concurso universal – concorrência creditícia que incide sobre todo o patrimônio – não se confunde com o concurso singular de credores, quando mais de um credor requer o produto proveniente de um bem específico do devedor. 

O magistrado acrescentou que, no caso analisado, o Estado de Santa Catarina possui crédito tributário que é objeto de execução fiscal, motivo pelo qual pleiteia a preferência frente aos demais credores da sociedade executada em concurso singular.

Salomão destacou que tanto o Código Civil (de 1916 e de 2002) quanto o Código de Processo Civil (de 1973 e de 2015) conferem primazia às preferências creditícias fundadas em regras de direito material (“título legal à preferência”, como diz a lei), em detrimento da preferência pautada na máxima prior in tempore potior in iure, ou seja, o primeiro a promover a penhora (ou arresto) tem preferência no direito de satisfação do crédito.

“Nessa perspectiva, a distribuição do produto da expropriação do bem do devedor solvente deve respeitar a seguinte ordem de preferência: em primeiro lugar, a satisfação dos créditos cuja preferência funda-se no direito material; na sequência – ou quando inexistente crédito privilegiado –, a satisfação dos créditos comuns (isto é, que não apresentam privilégio legal) deverá observar a anterioridade de cada penhora, ato constritivo considerado título de preferência fundado em direito processual”, afirmou.

Processo existe para concretizar o direito material

O ministro lembrou que a jurisprudência do STJ considera não ser possível sobrepor uma preferência processual a uma preferência de direito material, por ser incontroverso que o processo existe para que o direito material se concretize.

Para o relator, o privilégio do crédito tributário – artigo 186 do Código Tributário Nacional – é evidente também no concurso individual contra devedor solvente, “sendo imperiosa a satisfação do crédito tributário líquido, certo e exigível”, independentemente de prévia execução e de penhora sobre o bem cujo produto da alienação se pretende arrecadar.


EREsp 1603324

Fonte: Notícias do STJ

Desafios da simplificação das obrigações acessórias no sistema tributário

Inúmeros têm sido os debates a respeito da possibilidade e viabilidade da implementação de uma reforma tributária no Brasil, com vistas a promover uma maior simplificação do sistema tributário. Isso ocorre, porque, além de demasiadamente complexas e propícias à geração de contenciosos, as regras procedimentais atualmente aplicáveis impõem aos contribuintes custos relevantes de conformidade, já conhecidos há longa data pela comunidade internacional.

Percebemos que, nos últimos anos, além do peso da carga tributária, os contribuintes sofrem com obrigações acessórias exageradamente complexas, entre outros deveres fiscais e penalidades que crescem em volume a cada ano.

De acordo com relatório divulgado pelo Banco Mundial (Doing Business 2021), as empresas gastam em média 1.501 horas por ano para cumprir todas as regras estabelecidas pelo Fisco. Esse estudo compara 190 países e evidencia que o Brasil continua sendo o país no qual as empresas gastam mais tempo para calcular e pagar tributos. É interessante observar que a metodologia do estudo abrange o “Índice de Pós-Declaração (Postfiling)” que avalia o esforço do contribuinte em receber restituições ou ressarcimentos, tendo o Brasil uma pontuação baixíssima (7,8), recebendo a 3ª pior nota da lista, excluídos os países sem nota ou com nota zero [1].

Nesse contexto, diante da dimensão do chamado “custo Brasil”, era de se esperar que o tema das obrigações acessórias ganhasse visibilidade nas propostas de simplificação do sistema tributário ou, pelo menos, fosse um dos objetos centrais das propostas de reforma em debate pelo Poder Legislativo. Surpreendentemente, ocorre justamente o inverso. É forçoso reconhecer que os desafios diários dos contribuintes com o preenchimento de obrigações acessórias (emissão de notas fiscais, preenchimento de documentos, escrituração de livros, dentre outros aspectos), enquadramento de códigos e cadastros, multas diferenciadas e demais informações digitais são pouco exploradas pelos projetos já apresentados no âmbito da reforma tributária, com ausência de propostas concretas e efetivas de desburocratização.

De acordo com estudo recente realizado pela Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) e Centro das Indústrias do Estado de São Paulo (Ciesp), divulgado em setembro de 2022, o chamado “custo-Brasil” encarece os produtos nacionais em 25,4%, em média [2]

Convém aqui abrir um rápido parêntese. Com o objetivo de simplificar a estrutura de controle fiscal dos contribuintes, incluindo as obrigações acessórias, a Receita Federal tem pretendido se aproximar da sociedade, por debates e formulações conjuntas de dados com os contribuintes representados por diversas entidades de classe, com base no Programa de Conformidade Cooperativa Fiscal (Confia). Contudo essa medida é o suficiente diante da complexidade do cenário atual? Não podemos negar que é um primeiro passo que está na etapa de “Teste de Procedimentos”, nos termos da Portaria RFB nº 210, de 18 de agosto de 2022.  

É notório que as tecnologias têm desempenhado um papel fundamental no dia a dia das empresas, extinguindo a famosa “papelada” e presença física dos contribuintes, no entanto, essa informatização não trouxe necessariamente mais simplificação. Há, nesse tema, como apontado por Luís Eduardo Schoueri, um paradoxo: se, por um lado, espera-se da informatização da Administração Tributária uma racionalização e uma simplificação do processo de arrecadação, por outro, não há como ignorar que ela resultou num aumento de deveres instrumentais — e, portanto, maior complexidade —, exigindo-se novos deveres sempre que um novo passo era dado em direção à informatização [3].

Nesse caso, em particular, faz-se necessário apontar o volume de normas editadas pelos órgãos competentes no âmbito federal, estadual e municipal, que só corroboram a complexidade em manter-se atualizado para o correto cumprimento de todas as normas existentes, muitas vezes com exigências que são repetidamente demandadas, apenas por comodidade da Administração Tributária, conforme evidenciado em estudo realizado pela Associação Comercial de São Paulo (ACSP), em parceria com a empresa Pricewatercoops (PwC) [4]

Nesse contexto, menciona-se que há um projeto em debate na Comissão de Finanças e Tributação (CFT), da Câmara dos Deputados, que visa padronizar legislações e sistemas e reduzir custos para as administrações tributárias e para os contribuintes, nos termos do Projeto de Lei Complementar nº 178/21 [5], que institui o Estatuto Nacional de Simplificação de Obrigações Tributárias Acessórias. Os responsáveis pela proposta afirmam que a finalidade é possibilitar o compartilhamento de informações fiscais entre as administrações tributárias, de modo a simplificar as obrigações acessórias. A prioridade é a criação da Nota Fiscal Brasil Eletrônica (NFB-e) para operações que envolvam mercadorias e prestações de serviços, com a possibilidade de implantação de declarações pré-preenchidas.

Ainda, em recorrentes ocasiões, percebe-se a dificuldade dos contribuintes em classificar os seus produtos para fins de tributação, sendo que os prejuízos de uma possível reclassificação vão além da exigência dos tributos, compreendendo penalidades específicas. Fato é que o correto enquadramento dos produtos necessita de um conhecimento profundo sobre as mais diversas especificidades e implicações. O ponto é que nem sempre as nomenclaturas e classificações existentes auxiliam para o adequado enquadramento, gerando insegurança jurídica aos contribuintes. Esse é um desafio. 

Outro ponto que merece destaque é que, mesmo após transcorridos alguns anos da implementação do Sped (Sistema Público de Escrituração Digital), essa ferramenta permanece, ainda, como alvo de severas críticas por parte dos contribuintes no que se refere à sua complexidade e exigência de atualização incessante do profissional que opera com ela, tendo em vista a necessidade de constante adequação de blocos/registros/campos nos sistemas ERP (Sistemas de Origem do Enterprise Resource Planning) e as soluções fiscais adotadas, a duplicidade de exigência de informações, o aumento na demanda de softwares, entre outros pontos.

Diante desse cenário, se a simplificação é um objetivo a ser buscado por todos — em especial no que tange às obrigações acessórias —, as propostas de reforma tributária não têm sido convincentes em cumprir esse propósito. Como é sabido, no âmbito da reforma tributária tem se debatido sobre uma possível simplificação no que tange as diversas obrigações acessórias atualmente existentes. No entanto, de acordo com as manifestações aventadas em entrevistas e apresentações oficiais, essa simplificação não traz no seu bojo propostas efetivas de desburocratização.

A título exemplificativo, foi apresentada ao Congresso no segundo semestre de 2020 a primeira parte da reforma tributária com a unificação do PIS e da Cofins (Contribuição sobre a receita decorrente de operações com Bens e Serviços — CBS), nos termos do Projeto de Lei nº 3.887/20. Entre as diretrizes que fundamentam essa proposta, o Ministério da Economia destacou a redução dos custos de conformidade, no entanto, dispôs somente sobre a redução de: 1) 52 para nove campos na Nota Fiscal e de 2) 70% das obrigações acessórias, sem adentrar nas medidas a serem implementadas nos tipos de nota fiscal, sem falar na ausência de qualquer medida para o Sped.

A esse respeito, cumpre mencionar que no âmbito do Sped existem três principais espécies de documentos fiscais eletrônicos: 1) Nota Fiscal Eletrônica (NF-e), para operações realizadas entre contribuintes; 2) Nota Fiscal ao Consumidor Eletrônica (NFC-e), para operações com consumidor final; e 3) Conhecimento de Transporte Eletrônico (CT-e), para operações de transporte de cargas. No mais, fora do âmbito do Sped, temos a Nota Fiscal de Serviços Eletrônica (NFS-e), para prestações de serviços. Desse modo, verifica-se que o governo federal se limitou em mencionar apenas uma redução numérica de campos, sem adentrar na necessidade de unificação desses documentos (discursos e justificativas por vezes rasos, que não enfrentam o tema no seu âmago ou propõem soluções efetivas). 

Fato é que o Sped ocasionou investimentos relevantes no âmbito privado na última década, e, ainda assim, os contribuintes não conseguem lidar adequadamente com a complexidade das obrigações acessórias e sofrem de imposição de penalidades pelas autoridades fiscais, muitas vezes aplicadas com violação ao princípio da proporcionalidade, razoabilidade e não-confisco. Com efeito, averígua-se no cenário atual um grande volume de autuações por erros e inconsistências no preenchimento, que abrange até mesmo interpretações um tanto quanto discutíveis por parte da autoridade fazendária, sem qualquer fundamentação legal expressa. 

Sob o manto da responsabilidade objetiva do artigo 136 do CTN (Lei nº 5.172/66), a complexidade se tornou um improvável aliado à arrecadação tributária por intermédio de multas por erros, omissões e inconsistências no Sped. Também as infrações relacionadas às obrigações acessórias têm sido utilizadas como instrumento para impedir, muitas vezes, o exercício regular de direito pelo contribuinte, como no caso da inobservância do controle em subcontas exigido pela Lei nº 12.973/14 como requisito para diversas considerações necessárias para a tributação do IRPJ e da CSLL em conformidade com a capacidade contributiva.

Feitas essas breves considerações, é possível afirmar que os Fiscos desconsideram de plano a tríplice dimensão do princípio da proporcionalidade (adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito), que atua como importante instrumento para estabelecer os critérios de pertinência entre os meios e os fins no nosso ordenamento. 

Como resolver essa questão?
Temos a opinião de que o sistema tributário brasileiro é demasiadamente complexo, sendo indispensável para o seu bom funcionamento reformas e políticas públicas que busquem estimular maior simplicidade e justiça tributária. Mais do que nunca, propostas de reforma legislativa são bem-vindas! Contudo, deve-se incluir na pauta da reforma tributária uma perspectiva urgente de cooperação construtiva entre os entes federados para fins de desburocratização, para o qual todos se aproveitarão.

A redução de duplicidades na exigência de uma mesma informação no Sped; a superação da equivocada premissa de que não cabe denúncia espontânea no tema das obrigações acessórias; a constante e crescente simplificação de leiautes de sistema informatizados; maior transparência e auxílio ao contribuinte por parte da Administração Tributária; a unificação e tratamento em âmbito nacional de obrigações acessórias; a aprovação do chamado estatuto do contribuinte, dentre outros aspectos, são algumas medidas, há tanto tempo, clamadas pelo setor produtivo, que produziriam um efeito muito maior como instrumento de segurança e simplificação, do que uma ambiciosa proposta de reforma tributária ampla que, ao prometer na sua exposição de motivos mudar completamente o paradigma atual, o pressupõe e o aceita nas suas regras positivadas.

Há um longo caminho a ser percorrido, mas plenamente possível. Ao nosso ver, é necessária a consciência dos nossos governantes para iniciar esse percurso fundamental para um sistema tributário mais racional e eficiente, uma vez que tudo depende de decisão política. Simplicidade e tributação devem caminhar juntos, pois só assim é possível desenvolver uma consciência fiscal da população, ao mesmo tempo em que se promove uma arrecadação mais eficiente e geradora de recursos públicos. Se algum grau de complexidade é inevitável como decorrência da busca de equidade na tributação — por exemplo, em decorrência de isenções, progressividade etc —, cabe a comunidade jurídica apontar para a complexidade que não reverte qualquer benefício para a sociedade e pleitear por uma reforma que seja eficiente para sua redução.


[1] Doing Business Subnacional Brasil 2021. Disponível em: https://subnational.doingbusiness.org/pt/reports/subnational-reports/brazil. Acesso em: 22 ago. 2022.

[2] O Custo Brasil encarece os produtos industriais brasileiros, em média, em 25,4%. A conclusão é de um estudo elaborado pela Fiesp/Ciesp que mensurou o impacto do Custo Brasil nos preços dos bens industriais nacionais, comparativamente a 15 dos principais parceiros comerciais do país, no período de 2008 a 2019. (…) O Custo Brasil nada mais é do que a diferença entre o custo sistêmico de se produzir no país em relação a outros países”. Para chegar a esse resultado, o estudo compara a diferença de custos de produção entre uma empresa no Brasil e outra com características similares operando no exterior. Disponível em: https://www.fiesp.com.br/noticias/custo-brasil-encarece-os-bens-industriais-brasileiros-em-254/. Acesso em: 12 set. 2022.

[3] Cf. SCHOUERI, Luís Eduardo. Direito tributário. 5ª Edição. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 500.

[4] Cf. BIFANO, Elidie Palma. Análise das obrigações acessórias. Estudo inédito realizado pela Associação Comercial de São Paulo em parceria com a PricewaterhouseCoopers — PwC. São Paulo: Janeiro 2012, p. 38.

[5] PLP 178/2021 — O Projeto de Lei Complementar 178/21 institui o Estatuto Nacional de Simplificação de Obrigações Tributárias Acessórias, cria a Nota Fiscal Brasil Eletrônica (NFB-e) e a Declaração Fiscal Digital (DFD). Em análise na Câmara dos Deputados, o texto também unifica cadastros fiscais no Registro Cadastral Unificado.

Caio Augusto Takano é advogado, professor de Direito Tributário da Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie e doutor e mestre em Direito Econômico, Financeiro e Tributário pela Universidade de São Paulo (USP).

Claudia Abrosio é advogada tributarista no escritório Ayres Ribeiro Advogados, mestre em Direito Constitucional e Processual Tributário pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e especialista em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (Ibet).

Revista Consultor Jurídico, 26 de setembro de 2022, 15h13

Inconstitucionalidade do tratamento dado à Tusd/Tust pela LC n° 194/2022

Como já defendi em artigo publicado nesta ConJur[1], acerca de alterações promovidas pela Lei Complementar n° 194, de 2022, e que se configuram como um verdadeiro golpe à federação brasileira, neste artigo passarei a analisar a questão relativa ao tratamento a ser conferido aos valores pagos a título de Tusd, Tust e encargos setoriais, especificamente no que pertine à incidência do ICMS.

Não se pode perder de vista que se trata de questão há muito conflituosa e que mereceu entendimentos absolutamente dissonantes no âmbito do STJ: em um primeiro momento, dentre todos cite-se o REsp 1.649.658, define-se que tais tarifas não integrariam a base de cálculo do ICMS e, mais recentemente, em 2017, muda-se o entendimento, afirmando-se que tais valores devem compor a base de cálculo do imposto estadual (Resp 1.163.020). Na atualidade, em sede de repetitivos (Resp 1.692.023 e 1.699.851 e EResp 1.163.020), encontram-se centenas de processos, com cifras astronômicas em jogo, e fruto de uma questão jamais resolvida definitivamente, por um motivo fundamental: aqui se tem, em verdade, legítima controvérsia constitucional, pelos motivos a seguir dispostos.

Com a Constituição de 1988 são desenhados os contornos constitucionais das materialidades que podem ser afetadas pelos entes políticos o que, para os impostos, é feito por meio dos artigos 153, 155 e 156. Nas lições de Roque Carrazza (2015, p. 36), “as competências tributárias das pessoas políticas foram desenhadas, com retoques à perfeição, por grande messe de normas constitucionais”, o que implica que os contornos dos critérios da Regra-Matriz de Incidência Tributária são de índole constitucional, derivando-se no estabelecimento das regras gerais para cada um dos tributos, por meio de leis complementares nacionais exaradas pelo Congresso Nacional, bem como por cada um dos entes políticos, a partir de leis ordinárias aprovadas em suas casas legislativas respectivas, mas sempre em consonância com o texto maior.

E até antes da LC nº 194/2022, no que pertine ao ICMS, todo o processo de derivação se deu de forma harmônica e respeitosa com a autonomia administrativa e financeira dos estados e do DF. Como restou delimitado no texto constitucional, o ICMS incide sobre “operações relativas à circulação de mercadorias” (artigo 155, in. II, CF), sendo a sua base de cálculo, como afirma Geraldo Ataliba (2008, p. 108), “a perspectiva dimensível do aspecto material da h.i [hipótese de incidência]” e, em assim sendo, mera decorrência desse critério material desenhado na CF/88: no caso do ICMS, a base de cálculo só pode ser o valor dessa operação relativa à circulação de mercadoria, não cabendo ao legislador nacional, a pretexto de estabelecer normas gerais, usurpar a competência plena do legislador estadual e, por conseguinte, vilipendiar a arrecadação potencial, como ocorreu, recentemente, a partir da publicação do artigo 7º da LC nº 192/2022 [2].

E foi o próprio legislador constitucional, na transição para a nova constituição de 1988, que encerrou as discussões relativas à energia elétrica, ao deixar assente no artigo 34, §9º, do ADCT, que “até que lei complementar disponha sobre a matéria, as empresas distribuidoras de energia elétrica, na condição de contribuintes ou de substitutos tributários, serão responsáveis, por ocasião da saída do produto de seus estabelecimentos, ainda que destinado a outra unidade da Federação, pelo pagamento do imposto sobre operações relativas à circulação de mercadorias incidentes sobre energia elétrica, desde a produção ou importação até a última operação, calculado o imposto sobre o preço então praticado na operação final e assegurado seu recolhimento ao Estado ou ao Distrito Federal, conforme o local onde deva ocorrer essa operação”.

A lei complementar que se seguiu, LC nº 87/1996, manteve, como não poderia de deixar de ser, a mesma base de cálculo nestas mesmas operações, isto é, o valor da operação de circulação de energia elétrica, em estrito alinhamento ao desenho constitucional originário. 

Isso fica evidenciado por Carrazza (2016, p. 337) ao afirmar que “a base de cálculo possível do ICMS incidente sobre energia elétrica é o valor da operação da qual decorra a entrega desta mercadoria (a energia elétrica) ao consumidor. Noutro giro, é o preço da energia elétrica efetivamente consumida, vale dizer, o valor da operação da qual decorra a entrega desta mercadoria ao consumidor final. Isto corresponde, na dicção do art. 34, §9º, do ADCT, ao ‘preço então praticado na operação final'”.

A despeito de tudo isso, traduzo que a LC nº 194/2022 nada mais representa do que o resultado dos arroubos autoritários do Congresso Nacional que aprovou, sem prévio diálogo com os Estados e com o DF, e sem qualquer estudo técnico estruturado sobre as consequências do quanto decidira, bem como de seus fundamentos, alterações gravíssimas no ICMS. E o mote central, que parecia ser o conceito de essencialidade, acabou se revelando ainda mais grotesco, com a inserção desse “cavalo de troia”, que é a eliminação da TUSD/TUST da base de cálculo do ICMS Energia.

Mas por que a lei complementar não é o locus adequado para a solução desse problema, consubstanciando mais uma inconstitucionalidade promovida pelo Poder Legislativo? Porque, ao inserir no artigo 3º da LC nº 87/1996, que trata da não incidência do ICMS, o legislador derivado feriu o desenho constitucional da redação originária da CF/88. E uma lei complementar, a pretexto de estabelecer normas gerais, não poderia ultrajar esse desenho. E isso pode ser evidenciado a partir da diferenciação dos conceitos de não incidência, de isenção, e da proibição constitucional de concessão de isenção heterônoma.

A priori, apesar de custoso, entendo necessário aqui, como forma de clarificar a questão, perpassar os fundamentos de cada um dos incisos constantes do artigo 3º da LC nº 87/1996, constatando o óbvio: cada um deles é mera repetição de imunidades trazidas na redação originária da CF/88 ou, quando muito, pertinem a situações que desde sempre reconhece-se como fora da incidência do ICMS. Um a um, os incisos do artigo 3º da LC nº 87/1996, atualmente vigentes, que tratam da não incidência do ICMS: 

a) Inciso I – operações com livros, jornais, periódicos e o papel destinado a sua impressão: decorrência da imunidade cultural, prevista no artigo 150, inciso IV, alínea d, CF/88;

b) Inciso II – operações e prestações que destinem ao exterior mercadorias, inclusive produtos primários e produtos industrializados semi-elaborados, ou serviços: decorrência da imunidade prevista no artigo 155, §2º, inciso X, alínea a, CF/88;

c) Inciso III – operações interestaduais relativas a energia elétrica e petróleo, inclusive lubrificantes e combustíveis líquidos e gasosos dele derivados, quando destinados à industrialização ou à comercialização: decorrência da imunidade prevista no artigo 155, §2º, inciso X, alínea b, CF/88;

d) Inciso IV – operações com ouro, quando definido em lei como ativo financeiro ou instrumento cambial: decorrência da imunidade prevista no artigo 155, §2º, inciso X, alínea c, CF/88;

e) Inciso V – operações relativas a mercadorias que tenham sido ou que se destinem a ser utilizadas na prestação, pelo próprio autor da saída, de serviço de qualquer natureza definido em lei complementar como sujeito ao imposto sobre serviços, de competência dos municípios, ressalvadas as hipóteses previstas na mesma lei complementar: evitar conflitos de competência com os municípios, conforme disposto no artigo 146, inciso I, CF/88; 

f) Inciso VI – operações de qualquer natureza de que decorra a transferência de propriedade de estabelecimento industrial, comercial ou de outra espécie: fora do âmbito de incidência do ICMS pelo fato destes estabelecimentos não poderem ser enquadrados no conceito de mercadoria;

g) Inciso VII – operações decorrentes de alienação fiduciária em garantia, inclusive a operação efetuada pelo credor em decorrência do inadimplemento do devedor: fora do âmbito de incidência do ICMS pelo fato de que a alienação fiduciária não promove efetiva operação de circulação;

h) Inciso VIII – operações de arrendamento mercantil, não compreendida a venda do bem arrendado ao arrendatário: fora do âmbito de incidência do ICMS pelo fato de que a alienação fiduciária não promove efetiva operação de circulação; e

i) Inciso IX – operações de qualquer natureza de que decorra a transferência de bens móveis salvados de sinistro para companhias seguradoras: estes bens salvados não se enquadram no conceito de mercadoria quando são transferidos dos seus legítimos proprietários, que não os vendem às seguradoras.

Neste elenco, fica claro que todas as hipóteses de não incidência previstas até antes da LC nº 194/2022 decorrem direta ou indiretamente do Texto Constitucional, seja por meio de imunidades nele previstas, seja porque estão fora do desenho do critério material estabelecido no artigo 155, inciso II, CF/88.

A seguir, o outro conceito importante para compreender o equívoco do Congresso Nacional relaciona-se ao desconhecimento do que representa a isenção tributária. Trata-se de mera retirada do âmbito de abrangência do imposto, por meio da mutilação de um dos critérios da Regra-Matriz de Incidência Tributária (CARVALHO, 2015), e o mais importante: realizada pelo próprio ente competente para instituí-lo, dado que o legislador constitucional deixou assente a impossibilidade das chamadas isenções heterônimas, tão comuns antes da CF/88: é vedado à União, por meio do Congresso Nacional, instituir isenções de tributos de competência dos estados, do Distrito Federal ou dos municípios (artigo 151, inciso III), isto é, diminuir o campo de abrangência dos impostos destes entes, sob pena de flagrante ofensa ao princípio federativo, o que nos afigura como sendo a alteração engendrada pela LC nº 194/2022, relativamente à Tusd/Tust.

Assim, dado que os valores relativos à Tusd/Tust e encargos setoriais vinculados às operações com energia elétrica compõem o preço final desta mercadoria, a sua retirada do campo de incidência do ICMS só poderia se dar por aprovação unânime dos Estados e do DF no âmbito do Conselho Nacional de Política Fazendária (Confaz), nos termos do artigo 155, §2º, inciso XII, alínea g, CF/88. 

E este colegiado, por meio do Convênio ICMS nº 16/2015, já reconheceu este poder ao criar norma isentiva do ICMS incidente sobre a energia elétrica fornecida pela distribuidora à unidade consumidora, na quantidade correspondente à soma da energia elétrica injetada na rede de distribuição pela mesma unidade consumidora com os créditos de energia ativa originados na própria unidade consumidora no mesmo mês, em meses anteriores ou em outra unidade consumidora do mesmo titular (cláusula primeira), mas expressamente exclui desta isenção o custo de disponibilidade, à energia reativa, à demanda de potência, aos encargos de conexão ou uso do sistema de distribuição, e a quaisquer outros valores cobrados pela distribuidora (inciso II, §1º, Cláusula Primeira).

Um exemplo simples pode ajudar na visualização deste equívoco do Congresso: o caso do frete cobrado em virtude da circulação física das mercadorias. Trata-se de valor individualizado ou individualizável nas notas fiscais, e que normalmente aparece destacado do custo das mercadorias. Nas aquisições destas mercadorias, não é incomum que o preço das mesmas contemple não apenas o do valor relativo ao objeto da mercancia, mas os custos necessários para que esta mercadoria alcance o seu destinatário (frete). 

Assim, desde sempre e em obediência ao desenho constitucional do ICMS que deve incidir sobre operações de circulação de mercadoria e os valores componentes no preço final desta operação, o frete compõe a base de cálculo do ICMS. 

Identicamente, tem-se nas operações com energia elétrica, pois esta de nada serve ao seu adquirente se não for “distribuída” e “transmitida” a ele. No que pertine ao frete, que normalmente é valor baixo em comparação ao preço do item, jamais pairou qualquer dúvida de que deve integrar a base de cálculo do ICMS, o que é cristalino desde a redação original da LC nº 87/1996: a se admitir a inserção promovida no inciso XI do artigo 3º da LC 87/1996, poder-se-ia admitir que semelhante iniciativa pudesse ser aprovada pelo Congresso Nacional, de forma a diminuir o campo de incidência do ICMS, indicando que os valores do frete estariam fora do campo de incidência do ICMS? Jamais!

Por fim, nas experiências internacionais de impostos semelhantes ao ICMS, incidentes sobre energia elétrica, tem-se que todas as taxas, despesas, custos, que sejam computados no preço final, devem ser inseridos na composição da base de cálculo dos respectivos impostos (veja o exemplo do IVA canadense).

Na atualidade o assunto encontra-se em debate no âmbito do Acordo de Cooperação na ADPF nº 984 e na ADI nº 7.191, de relatoria do ministro Gilmar Mendes, bem como na ADI nº 7.195, de relatoria do ministro Luiz Fux, ambos no STF.

O que justifica tamanha sede da Tust/Tusd é algo extremamente simples: apostou-se em uma construção de tese jurídica para esgotar quase metade das arrecadações estaduais relativas à energia elétrica, sem que qualquer base constitucional houvesse para isso, e em afronta ao desenho do imposto que foi feito em 1988. O que está em jogo? R$ 34 bilhões por ano, com a possibilidade de restituição de cinco vezes esse valor, caso a tese se sagre vitoriosa e um tremendo golpe nos estados, por meio da redução radical da materialidade do ICMS, inserta na redação originária na CF/88. Esta, contudo, não tem preço!


Referências:
ATALIBA, Geraldo. Hipótese de incidência tributária. São Paulo: Malheiros, 2008.
CARRAZZA, Roque Antonio. ICMS. São Paulo: Malheiro, 2015.
CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributário: fundamentos jurídicos da incidência. São Paulo: Saraiva, 2015.


[1] Disponível em: https://www.conjur.com.br/2022-jun-29/fernanda-pacobahyba-maior-golpe-federacao-brasileira. Acesso em 25 set. 2022.

[2] “LC 192/2022. Art. 7º A base de cálculo do imposto, para fins de substituição tributária em relação às operações com diesel, será, até 31 de dezembro de 2022, em cada Estado e no Distrito Federal, a média móvel dos preços médios praticados ao consumidor final nos 60 (sessenta) meses anteriores à sua fixação”. Tal redação, no entendimento dos Estados, é inconstitucional, visto que fere o desenho da materialidade impresso na CF/88 e seu correlato critério quantitativo, o que está sendo objeto de apreciação por parte do STF, na ADI nº 7191, de relatoria do min. Gilmar Mendes.

Fernanda Mara Macedo Pacobahyba é doutora em Direito Tributário pela PUC-SP, secretária de Fazenda do Estado do Ceará e professora do Ibet.

Revista Consultor Jurídico, 26 de setembro de 2022, 19h21

União estima possível perda de R$ 1,46 trilhão com ações tributárias

Dentre as ações contra a União classificadas como de risco possível ou provável de derrota nos tribunais superiores, 68% são tributárias. As demandas equivalem a R$ 1,46 trilhão, ou 75% da receita prevista no orçamento do governo federal deste ano.

Quase 90% do valor se refere ao eventual impacto de sete processos que tramitam no Supremo Tribunal Federal e envolvem PIS e Cofins. As informações são da Folha de S.Paulo.

Os números estão no Anexo de Riscos Fiscais da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) para 2023. Os dados levam em conta o valor estimado no final de 2021.

A exclusão do ICMS da base de cálculo do PIS e da Cofins — a chamada “tese do século”, definida pelo STF em 2017 e modulada no último ano — possui um impacto estimado de R$ 533 bilhões com compensações e restituições.

Em seguida, a ação com o maior valor em discussão é a que discute quais despesas podem ser enquadradas no conceito de insumos para fins de créditos de PIS e Cofins. O governo federal estima uma perda de R$ 473 bilhões com a demanda. Ela chegou a ser pautada para julgamento virtual no último ano, mas foi retirada.

Além disso, os riscos fiscais abrangem alguns julgamentos derivados da “tese do século”, ainda sem previsão de resolução. Os principais são a inclusão de PIS e Cofins na sua própria base de cálculo (estimativa de impacto de R$ 65,7 bilhões) e a inclusão do ISS na mesma base (possível impacto de R$ 35,4 bilhões).

A proposta de reforma tributária apresentada ao Congresso pelo Ministério da Economia em 2020 prevê a substituição do PIS e da Cofins pela Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), sem as restrições questionadas atualmente na Justiça. O projeto determina que ICMS, ISS e a própria CBS não compõem a base de cálculo do tributo.

Já as propostas de reforma tributária da Câmara e do Senado, que tramitam desde 2019, buscam a incorporação do PIS e da Cofins em um novo imposto sobre consumo, que incluiria também ICMS, ISS e IPI. Todas as mudanças estão paradas, por falta de acordo.

Revista Consultor Jurídico, 26 de setembro de 2022, 16h48

DECISÃO: Incide contribuição previdenciária sobre os proventos de militares inativos

A 7ª Turma do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1) acolheu os pedidos formulados pela Fazenda Nacional (FN) para reconhecer a exigência da contribuição previdenciária incidente sobre a parcela dos proventos de inatividade dos militares.

A apelação foi contra a sentença que havia suspendido a cobrança de contribuição previdenciária sobre os valores dos proventos do militar inativo que não ultrapassem o teto máximo do benefício do Regime Geral da Previdência Social (RGPS). A sentença também havia assegurado a restituição dos valores indevidamente recolhidos.

Ao analisar o processo, o relator, desembargador federal Hercules Fajoses, explicou que a Emenda Constitucional (EC) 18/1998 excluiu os militares do gênero “servidores públicos”. Assim, prosseguiu, não se estende aos militares as disposições da EC 41/2003 no que diz respeito à incidência de contribuição previdenciária sobre seus proventos por serem normas destinadas à aposentadoria de servidores civis.

Já o Supremo Tribunal Federal (STF) firmou entendimento (Tema 160) no sentido de que “é constitucional a cobrança de contribuições sobre os proventos dos militares inativos, aqui compreendidos os Policiais Militares e o Corpo de Bombeiros dos Estados e do Distrito Federal e os integrantes das Forças Armadas, ainda que no período compreendido entre a vigência da Emenda Constitucional 20/98 e da Emenda Constitucional 41/03, por serem titulares de regimes jurídicos distintos dos servidores públicos civis e porque a eles não se estende a interpretação integrativa dos textos dos artigos 40, §§ 8º e 12, e artigo 195, II, da Constituição da República”.

Segundo o relator, “dessa forma, a contribuição para a pensão militar exigida mediante descontos em seus vencimentos tem por finalidade e destinação a promoção e manutenção das pensões, sendo legítima a cobrança com as alíquotas de 7,5% (sete e meio por cento) e 1,5% (um e meio por cento), a incidir sobre os proventos dos inativos”.

O Colegiado, acompanhando o voto do relator, reconheceu a exigibilidade da contribuição previdenciária incidente sobre o valor da parcela dos proventos de inatividade dos autores.

Processo: 0020046-10.2012.4.01.3400

RS/CB

Assessoria de Comunicação Social

Tribunal Regional Federal da 1ª Região  

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